Paulo Freire e a matemática do oprimido
Educação

Paulo Freire e a matemática do oprimido



Recentemente um amigo meu mencionou a respeito de uma tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP), sobre a influência de Paulo Freire e Ubiratan D'Ambrosio na formação do professor de matemática no Brasil. Na tese defende-se que "os atuais processos de formação de professor de matemática ainda são fortemente sedimentados numa formação alienada aos ditames de uma sociedade de classes, que não permite ao futuro professor compreender e fazer uso da necessária autonomia inerente à sua atuação, o que o faz atuar como um intelectual orgânico a serviço da consolidação da hegemonia da classe dominante." 

Pois bem. Nesta postagem foco exclusivamente na influência de Paulo Freire sobre a educação brasileira, com ênfase na matemática. Sobre a obra de D'Ambrosio pretendo discutir em outro momento, apesar de haver importantes pontos em comum entre ambos os autores. 

Paulo Freire foi, sem dúvida alguma, um educador e um pensador. Não foi uma pessoa que apenas teorizava a respeito de educação, mas alguém que efetivamente alfabetizou, um indivíduo que fez a diferença em nosso país e fora dele. Além disso, sua extensa obra sobre educação o projetou internacionalmente, como um nome respeitável. 

No entanto, não podemos ignorar a exagerada, deturpada e aparentemente doentia veneração que existe em nosso país, quando o nome de Paulo Freire é lembrado. 

O livro mais famoso de Freire é Pedagogia do Oprimido, com dezenas de milhares de citações, tanto do texto original quanto de suas traduções para inglês, espanhol e hebraico. Neste texto Freire faz uma intrincada discussão sobre reflexos sociais e individuais de relações entre (socialmente) oprimidos e opressores. Seu foco é o processo educacional, o qual é um poderoso agente que pode ser usado tanto para exercer mudanças sociais como para simplesmente manter aquilo que muitos chamam de status quo

Antes de discutirmos de maneira mais detalhada algumas das teses de Freire, é importante esclarecer dois pontos comumente ignorados em nossa nação:

1) Freire deixa claro que Pedagogia do Oprimido é um aprofundamento de discussões promovidas em seu livro Educação Como Prática da Liberdade. No entanto, também deixa claro que o tema abordado é amplo, e que sua obra deve ser entendida como mera introdução

2) Freire também deixa claro que suas teses defendidas em Pedagogia do Oprimido são o resultado de simples observações feitas no Brasil e, posteriormente, no Chile, durante seu período de exílio político. Ou seja, ele não se sustentou em estudos científicos ou filosóficos para qualificar, por exemplo, como é possível "roubar a humanidade" de alguém. Neste sentido Freire combina, em seu livro, pensamento crítico, sobre o que observou, com uma visão pessoal (e, portanto, restrita às suas próprias limitações) sobre humanidade. 

Já chamei atenção, recentemente, para falhas graves de Jean Piaget, quando este importante pensador suíço afirmou que crianças são incapazes de pensar sobre o pensar. Por que Piaget errou? Porque pessoas, por mais inteligentes que sejam, estão sempre sujeitas ao auto-engano. Até mesmo a NASA já foi (coletivamente) vítima do auto-engano, resultando em uma das maiores tragédias da história da exploração do espaço.

Como o nome de Paulo Freire está fortemente associado a marcantes ideologias políticas, o auto-engano se torna ainda mais provável. É neste momento que boas ideias e discussões pertinentes passam a ser possíveis referências para visões preguiçosas e distorcidas sobre sociedade e educação. 

Assim como Piaget, Paulo Freire foi um precursor. Mas suas palavras não devem, em hipótese alguma, ser consideradas como conclusivas. 

O livro em questão, de Paulo Freire, pode ser facilmente interpretado como uma visão dicotômica da sociedade, dividindo-a em duas classes: opressores e oprimidos. Os opressores são violentos (podendo exercer violência até mesmo de forma mascarada por uma falsa generosidade) e os oprimidos temem a liberdade (não poderá a consciência crítica conduzir à desordem?). Esta é a leitura mais usual da obra de Freire. Exemplo disso é a tese acima citada, no primeiro parágrafo. 

No entanto, há uma outra maneira de ler Pedagogia do Oprimido. A relação entre opressor e oprimido, para Paulo Freire, é de notável riqueza. Segundo o próprio autor, "o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos."

Este é um ponto importantíssimo que Freire detalha em várias passagens do livro. 

A aparente dicotomia opressor-oprimido de Freire pode ser entendida como um ponto de partida para despertar atenção, um simbolismo, uma inspiração para apenas iniciar análises críticas sobre o espírito humano e a repercussão deste sobre a sociedade. Caso contrário, a leitura da obra de Freire se torna uma mera caricatura social. Isso porque existe uma riqueza fenomenal de classes sociais em nosso país, que não se reduzem a apenas duas. E isso se deve, em parte, ao fato de que o Brasil se insere em uma realidade maior do que ele próprio, chamada de mundo

Aqueles que estudam em escolas consideradas de elite em nosso país, não fazem parte de qualquer elite mundial. Tanto é verdade que há inúmeros exemplos de conteúdos matemáticos estudados de forma fragmentada e até errada em livros, apostilas e sala de aula, independentemente de classe social. Exemplos são encontrados em trigonometria, cálculo diferencial e integral, aritmética elementar, lógica e até história da matemática, entre muitos outros. Em nossas universidades há também uma resistência aparentemente intransponível para que professores estrangeiros possam lecionar em inglês. E como aprender matemática sem conhecimentos básicos de inglês? 

Esta semana houve um show em Porto Alegre, RS, de Jack White. Todos os milhares de fãs que acompanharam a apresentação do mestre de cerimônias dispensaram o tradutor. Eram mais de três mil jovens que reagiam instantaneamente à apresentação feita em inglês. Houve momento em que o tradutor se sentiu deslocado, pois todos ali entendiam o que era dito. Por que isso? Porque os fãs de Jack White são realmente fãs. Procuram entender toda a cultura associada à sua imagem artística e não apenas as músicas. É uma questão de motivação. Uma matemática lecionada de forma fragmentada e dogmática (com persistentes erros que causam uma desagradável impressão de arbitrariedade) é uma matemática que não motiva pessoa alguma. E se não há motivação, por que conhecer a cultura matemática mundial? Por que conhecer, por exemplo, inglês?

A condição de opressão, ressaltada por Paulo Freire, somente pode ser combatida, segundo ele mesmo, com a busca pela liberdade. O oprimido de Freire é uma pessoa sem liberdade. Porém, o autor ressalta que o medo da liberdade (comum ao oprimido) não apenas pode manter seu estado social de oprimido como pode, também, conduzi-lo a pretender ser um opressor. E este é um ponto que educadores, professores e pedagogos simplesmente não demonstram entender, quando o objetivo é discutir educação matemática. Isso porque a essência da matemática radica em sua liberdade. E essas palavras não são minhas, mas de Georg Cantor, o criador da teoria de conjuntos. Teoria de conjuntos é provavelmente a teoria mais massacrada pela ignorância de nossos educadores, professores e pedagogos. A prática mostra que a contagiante ignorância de nossos educadores é sim uma opressão contra o espírito livre da matemática. Consequentemente, é uma opressão sobre praticamente todos os inúmeros segmentos sociais de nosso país. Do ponto de vista da educação matemática, o Brasil inteiro é um estado oprimido por ele mesmo. Uma instituição como o IMPA não é um segmento social. É apenas uma instituição que luta para construir um segmento social.

Freire não conhecia matemática. E nem precisava. Mas se educadores pretendem aplicar ideias de Freire no ensino e na educação matemática de nosso país, certamente precisam conhecer muito bem esta área do saber. Caso contrário, estarão desrespeitando o espírito livre defendido pelo próprio Freire, como forma de combate à opressão. Matemática não é aquilo que se ensina em nossas escolas.

Ignorância é um agente de opressão. Mas um agente muito pior é a ilusão de conhecimento, a qual assola nosso país, especialmente as universidades. 

Cito um exemplo de ilusão de conhecimento no próprio livro de Freire. Segundo ele, "Quem melhor, que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão?"

A primeira pergunta, de caráter retórico, sugere que o oprimido está melhor qualificado para compreender o significado de uma sociedade opressora. Isso, claro, é falso. Afinal, o oprimido de Freire pode ser facilmente compreendido como um ignorante, uma pessoa praticamente cega diante de questões sociais, educacionais, culturais, artísticas, científicas, religiosas, históricas. 

Já a segunda pergunta sugere que o oprimido sente de forma mais marcante os efeitos da opressão. Isso sim faz sentido. Afinal, uma pessoa com câncer sente os sintomas de sua doença. Mas isso não a qualifica para compreender o que exatamente é o câncer que invade o seu corpo. 

Freire defende um diálogo crítico e libertador com os oprimidos. Analogamente, um médico deve conversar com seu paciente, para melhor diagnosticá-lo. Mas não pode se limitar ao diálogo. Precisa de muito mais do que uma simples conversa. O médico precisa de ciência do mais alto nível para poder tratar o paciente.

Por um lado, cabe ao oprimido a busca pela liberdade sugerida por Freire. E, por outro, cabe ao opressor o real estímulo à liberdade de todos os segmentos sociais, começando pela sua própria. 

A ilusão que ameaça nosso sistema educacional e, particularmente, o ensino de matemática, é a crença de que noções superficiais sobre sociedade bastam para escrever teses e gritar em favor de movimentos políticos ingênuos e frequentemente mal intencionados. 

Estudemos Paulo Freire sim. Mas filtremos o que ele diz. E, mais importante, avancemos o que ele começou. 

É bem sabido que o conhecimento científico não é ainda acessível de forma democrática, seja no Brasil ou no mundo. Isso porque a indústria de periódicos científicos movimenta bilhões de dólares ao ano, sendo altamente lucrativa. É contra esse tipo de problema que devemos todos lutar. Não importa se uma pessoa estuda mecatrônica na USP ou separação silábica em uma aldeia no meio da floresta amazônica, todos devem ter acesso ao conhecimento. 

Pedagogia matemática sem matemática? Não, por favor. Isso não é conhecimento. 



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