Educação
Meus Mestres
O verdadeiro mestre é aquele que instiga seus discípulos com perguntas que ele mesmo não sabe responder. E não estou me referindo a perguntas que possam ser diretamente respondidas com consultas a referências bibliográficas.
Sempre fui muito atento em sala de aula, desde o primário até o doutorado. Sempre prestei atenção tanto em afirmações insanas quanto nas mais sábias. Tive um professor de física no ensino médio que afirmava que a dedução da famosa equação de Einstein (que estabelece uma relação entre massa e energia) derivava diretamente da equação para energia cinética da mecânica clássica. Tive uma professora de fundamentos da matemática, durante a graduação, que afirmava que até hoje os matemáticos não sabem se o zero é um número natural ou não. Tive um professor de geometria que enunciou e demonstrou duas afirmações contraditórias entre si. E assim por diante. Nunca contestei esses docentes, pois era fácil perceber que eles não tinham a mais remota ideia sobre o que estavam fazendo.
No entanto, posso dizer que tive a sorte de ter sido positivamente influenciado por seis professores que foram verdadeiros mestres: Décio Krause, Paulo Godoy Becker, Aurélio Sartorelli, Francisco Antonio Doria, Haroldo Carneiro Affonso da Costa e Newton Carneiro Affonso da Costa.
Sobre o último já escrevi alguns textos detalhados aqui.
Do Professor Décio Krause jamais fui aluno em qualquer disciplina. Ele foi apenas meu orientador informal de iniciação científica, durante a graduação. Era um raro professor do Departamento de Matemática da UFPR, na década de 1980, que tinha sua escrivaninha coberta por livros e separatas de artigos. A maioria dos demais docentes tinha suas escrivaninhas impecavelmente limpas. Através do Professor Krause tive meu primeiro contato com o excepcional livro Introduction to Mathematical Logic, de Elliot Mendelson. Éramos um punhado de alunos que deveriam realizar seminários de lógica sob a supervisão de Krause. Lembro que uma das alunas, moça lindíssima e extremamente simpática, estava mais empenhada em chupar bananas do que no estudo para os seminários. E não estou usando figura de linguagem.
Foi naquela época que comecei a preparar material que foi usado posteriormente em meu primeiro livro, publicado em 2003.
O Professor Haroldo da Costa tinha um modo de pensar parecidíssimo com o do irmão (Newton da Costa), apesar de não ter se dedicado à vida acadêmica da mesma forma. Um amigo em comum certa vez disse que os dois se entendiam tão bem que nem pareciam irmãos.
Através do Professor Haroldo tive meus primeiros contatos não-triviais com lógica. Foi uma influência extremamente positiva em meu modo de ver a matemática; não por aquilo que ensinava, mas pelas profundas questões que expunha para provocar seus alunos.
Certa vez o Professor Haroldo apresentou aos alunos um conteúdo que não estava diretamente relacionado à ementa da disciplina. Ele fez uma discussão geral sobre os diferentes tipos de lógica que existem na literatura especializada, das dedutivas às indutivas, das ortodoxas às heterodoxas, das que complementam a lógica clássica às rivais desta. E então colocou a questão, ainda em aberto na comunidade científica, se poderia haver alguma lógica da qual todas essas demais pudessem ser derivadas, obtidas.
Perguntas sempre ficam melhor retidas em minha memória do que respostas.
Outro professor que tive com essa índole crítica que ia muito além dos triviais conteúdos de ementa de disciplina foi Paulo Godoy Becker, físico atípico que se interessava por fundamentos da matemática e da física. Não era um pesquisador no sentido estrito do termo, mas um estudioso de obras que normalmente os físicos ignoram, como os livros do policéfalo Nicholas Bourbaki, os quais exerceram extrema influência na matemática de vários países, incluindo o Brasil.
Certa vez, quando não era mais aluno do Professor Becker, fui a algumas aulas dele ministradas para o Curso de Física da UFPR. Na época eu estava interessado em uma moça e achei que ter a companhia dela durante a aula de Becker era uma ótima ideia. Afinal, ela era obrigada a estar lá. E para mim o prazer era duplo. Fiquei pasmado com a absoluta indiferença daqueles alunos em relação às extraordinárias exposições e discussões dele. Desperdício. Simples desperdício.
A pergunta mais provocativa que o Professor Becker insistentemente fazia aos alunos de Licenciatura em Matemática era a seguinte: “O que vocês matemáticos querem dizer quando afirmam que algo existe?”
Durante anos ruminei essa questão. Com o passar do tempo percebi que o quantificador existencial, utilizado normalmente em cálculos predicativos da lógica, era tão somente um elemento sintático que poderia ser usado em teorias formais, independentemente de qualquer significação. Mais tarde percebi que matemática, na prática, não se faz apenas com sintática, mas demanda semântica também. E mais tarde ainda percebi que as semânticas usuais também não bastavam, mas exigiam uma intuição inerente. Afinal, matemática relevante não pode ser feita sem uma intuição que, de alguma forma, justifique seu emprego ou estudo. Portanto, deixo a cargo do leitor interessado a tentativa de desvendar esse mistério, pois, sinceramente, ainda desconheço uma resposta convincente. E é aí que reside a beleza da questão: ela impulsiona.
Do Professor Aurélio Sartorelli fui aluno durante a graduação. Ele lecionava álgebra (por favor, físicos, não confundam com álgebra linear!). Na época não percebi característica especial alguma nele, apesar de os alunos em geral adorarem suas aulas. Na verdade, o fato de os alunos gostarem tanto de suas aulas era um aspecto que me deixava com a "pulga atrás da orelha". Julgava eu que somente imbecis são admirados pela maioria. As aulas de Sartorelli eram competentes e suas avaliações bem ponderadas. No entanto, eu simplesmente não conseguia ver nada de especial em seu perfil profissional. Somente quando me tornei colega de sala de Sartorelli (a partir dos anos 1990) que passei a conhecê-lo melhor. Então o convidei para participar de seminários de pesquisa. Sua participação era fenomenal. Temas que demandavam meses para eu compreender eram assimilados em dias, horas ou até minutos por Sartorelli. Foi seguramente o membro mais extraordinário dos seminários de pesquisa que organizei anos atrás na UFPR, os quais envolviam alunos e pesquisadores de diversas áreas do saber: matemática, física, filosofia, direito, biologia e engenharias. A capacidade de Sartorelli perceber aquilo que se mostrava invisível para mim era notável. E mais notável ainda era sua paciência para explicar-me o que estava realmente havendo. Este espírito analítico e crítico do Professor Sartorelli provavelmente jamais foi percebido por seus alunos, salvo umas pouquíssimas exceções. O que a maioria percebia era simplesmente sua inigualável simpatia e a fenomenal habilidade didática.
Do Professor Francisco Antonio Doria fui co-orientado de doutoramento. Durante a graduação eu já conhecia parte de sua reputação e vários de seus trabalhos. Se fosse para definir o Professor Doria através de uma única palavra, eu diria que ele é um sonhador. Através dele tive meus primeiros contatos com as teorias de calibre, as teorias de categorias e a teoria-K topológica (apesar de eu ter estudado um pouco também sobre teoria-K algébrica). Mas sua influência não se limitou apenas a conhecimentos técnicos avançados. Ele é um exemplo do que deve ser um sonhador: aquele que mira sempre acima do alvo. O Professor Doria gosta de citar George Polya, o matemático norte-americano que dizia que o projeto mais ambicioso é o que tem mais chances de alcançar sucesso. Se sonharmos com algo fácil de obter, na melhor das hipóteses conseguiremos esse algo. Porém, se sonharmos com o impossível, pode ser que jamais alcancemos nossas metas. Mas alguma coisa realmente interessante e inesperada a gente consegue conquistar no caminho.
Graças a recomendações dos Professores Décio Krause e Haroldo da Costa, pude realizar doutorado sob a supervisão do Professor Newton da Costa. Graças à influência dos Professores Francisco Doria e Newton da Costa, pude fazer estágio de pós-doutoramento em Stanford, tendo Patrick Suppes como tutor. Se não fui mais longe, foi por responsabilidade inteiramente minha. Pois sorte eu tive.
Esses são alguns exemplos de verdadeiros mestres. São profissionais do ensino e/ou da pesquisa que instigam o intelecto, que provocam estudantes com questões que eles mesmos não demonstram qualquer vergonha por desconhecerem as respostas. Pois quando o Professor Becker colocava sua dúvida, era genuinamente ele quem queria saber a resposta. E quando o Professor Haroldo provocou os poucos que o ouviam, aquilo desencadeou uma reação que se transformou em uma necessidade básica: saber.
Nada de relevante aprendi com as dezenas de professores que se limitavam a expor o que já estava escrito nos livros. Afinal, na maior parte de minha vida escolar, eu já sabia ler. Minha capacidade de leitura devo à Professora Eloide Fanini. Por isso mesmo ela esteve presente em minha formatura de graduação.
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