Filosofia para crianças... no Brasil
Educação

Filosofia para crianças... no Brasil



Semanas atrás publiquei neste blog uma postagem sobre estudos recentes do ato de filosofar entre crianças. Há, claro, quem considera que crianças são incapazes de filosofar, confundindo de maneira dogmática a filosofia promovida por experientes profissionais com os primeiros passos para o ingresso no mundo da especulação filosófica. Se crianças não são intelectualmente maduras o bastante para compreender os axiomas de Peano para a aritmética, isso não deve impedi-las de aprender noções intuitivas sobre como contar e somar números naturais. Analogamente, se crianças não são maduras o bastante para discutir sobre modalidades no estoicismo, isso não deve impedi-las de especular sobre aquilo que elas julgam ser possível ou não no mundo em que vivem.

Motivado pela postagem acima citada, Gilson Maicá escreveu o excelente texto que segue abaixo, no qual aborda experiências pessoais e profissionais sobre filosofia no ensino básico, bem como uma visão histórica e pedagógica sobre o desenvolvimento e o ensino de filosofia. 

Maicá é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina e professor de escola pública no Paraná. 

Desejo a todos uma leitura crítica.
_____________

Filosofia e ensino de filosofia: uma perspectiva terapêutica
contra dogmatismos ingênuos
de Gilson Maicá

A nossa educação é uma barbaridade. No Brasil, o aluno que consegue chegar ao fim do curso médio ou superior deve ser considerado um herói, visto que tudo concorre contra ele. Falta infraestrutura, os professores são despreparados e o modelo pedagógico, com raríssimas exceções, privilegia a decoreba em detrimento da reflexão” 

Newton da Costa


É comum que alunos perguntem ao professor de Filosofia, quando do primeiro contato com a disciplina, sobre o que é a Filosofia ou do que trata e, pior ainda, sobre sua utilidade. Isso é usual mesmo na graduação! Naturalmente, este tipo de questão pressupõe que eles sabem, por exemplo, o que é a Matemática, a Ciência ou a Arte e qual sua utilidade. A resposta mais honesta, e que tenho dado ao longo dos anos, é que não é possível dar uma resposta sensata a estas e muitas outras questões relacionadas à Filosofia. De fato, costumo dizer que não sei o que é Filosofia. O máximo que um professor de Filosofia, razoavelmente preparado, pode fazer é uma caracterização da Filosofia que, ao final, parecerá muito mais uma caricatura do que propriamente um retrato. Costumo, em especial na graduação, distinguir duas posturas que acredito que representem de alguma maneira dois modos de encarar a Filosofia e sua função no quadro geral do saber: 

(1) A primeira, uma postura que chamo de perspectiva socrática. De acordo com este ponto de vista, que tem implicações significativas sobre a didática desta disciplina, a Filosofia não tem por finalidade produzir qualquer tipo de conhecimento, não cabe ao filósofo teorizar nem sobre os fenômenos naturais, nem sobre os fenômenos humanos. O papel da Filosofia consiste numa espécie de atividade terapêutica contra o engessamento da consciência em dogmatismos, ou a pretensão de um saber definitivo. A Filosofia, neste sentido, se confunde mesmo com a análise crítica de conceitos, das crenças e pressupostos teóricos. 

(2) A segunda postura, que chamo de perspectiva platônico-aristotélica, admite que cabe à Filosofia teorizar e produzir conhecimentos. Mas sobre o que? Não sobre a natureza ou a cultura e a sociedade, já que isso é papel das Ciências especiais. É quase certo que, de início, a Filosofia envolvia em certa acepção toda uma gama de saberes; mas foi se esvaziando de seu conteúdo com o nascimento da Ciência moderna. Para alguns pensadores do início do século XX, a Filosofia podia parecer uma floresta muito fértil que se transformou no mais árido dos desertos. Mas ainda resta alguma coisa à Filosofia, em especial no que diz respeito à teoria do conhecimento, em particular a Teoria da Ciência (Epistemologia), a Metafísica e a Ética. De qualquer forma, vale notar que nestas áreas em que a Filosofia ainda teoriza, não o faz de modo significativo sem as contribuições da Ciência. Não me parece produtivo em nossos dias fazer, por exemplo, Metafísica sem levar em conta os desenvolvimentos da Física moderna, ou fazer Filosofia da Lógica sem ter conhecimentos muito refinados em certas áreas da Matemática. A teoria do conhecimento não está imune às descobertas das neurociências. O problema é que muitos filósofos, em especial no Brasil, não estão preocupados com as contribuições da Ciência, ou simplesmente as desconhecem, e acabam se limitando à História da Filosofia e à exegese de autores do passado, o que tem profundas implicações sobre o ensino de Filosofia. No último congresso da ANPOF, que tive a oportunidade de participar, pelo menos 80% das comunicações eram de caráter exegético.

Seria então possível, de modo sensato e significativo, abordar questões filosóficas, ou mesmo teorias filosóficas, com crianças do ensino básico? Nossa resposta à questão é afirmativa, a despeito das gigantescas dificuldades que envolve tal empreitada, não apenas para o Estado, mas sobretudo para o professor de Filosofia.

Uma boa introdução à Filosofia, pelo menos de nosso ponto de vista, não começa explicando o que é a Filosofia, do que trata, sua finalidade, ou ainda, apresentando um conjunto de teorias filosóficas, por vezes ultrapassadas, sobre qualquer tema filosófico, como ocorre usualmente em enfadonhos manuais desta disciplina. Particularmente no ensino básico, é muito mais produtivo partir de algumas questões fundamentais, por exemplo, aquelas ligadas à Epistemologia, à Metafísica, ou à Ética, não apresentando respostas, mas incitando os alunos a buscarem suas próprias respostas, que só num segundo momento podem ser confrontadas com a tradição filosófica e científica. Por exemplo, como podemos saber algo? Seria lícito mentir? Existem princípios universalmente válidos de como devemos agir? O que há (ou existe)? Números existem? O que as palavras representam? É comum que crianças e adolescentes já cheguem nas escolas imbuídos de uma série de crenças e preconceitos. E cabe à Filosofia, como referencial do pensamento crítico, “jogar a serpente no paraíso” destes estudantes. Sustentamos que uma filosofia que não cause desassossego, não é efetivamente filosofia! Não se trata, contudo, de apenas levantar questões, mas de promover uma busca dialética de soluções e fomentar o embate de ideias. Talvez este seja o grande desafio da Filosofia no ensino fundamental.

Gostaria de concluir estas notas apresentando três casos em que questões filosóficas foram propostas para adolescentes (e crianças). Nenhum fictício!

Caso 01: Este primeiro caso foi-me relatado pelo Professor Newton da Costa, provavelmente um dos mais renomados filósofos brasileiros da atualidade, muito citado neste blog. Segundo da Costa, quando jovem, seu tio e professor de filosofia Milton Carneiro, o chamou e disse que iria lhe ensinar a filosofar (a rigor não se pode ensinar Filosofia). Então, indagou ao jovem Newton se ele podia provar sua própria existência. Newton acreditava que sua própria existência era um fato irretorquível, porém, depois da conversa com seu tio percebeu, segundo ele, que a prova disso não era uma tarefa tão fácil. De acordo com o próprio Newton, as conversas “filosóficas” com seu tio o marcaram profundamente. Newton da Costa tinha por volta de 15 anos quando recebeu de seu tio um exemplar, em francês, do Discurso do Método, livro que, segundo ele, guarda até hoje. Esta é uma daquelas questões que não costumo deixar de lado em minhas aulas de Filosofia. Uma espécie de desafio cartesiano!

Caso 02: Há alguns anos dei início a um curso de Filosofia para os alunos do 6º ano com as seguintes questões: (1) o mundo realmente existe quando não o estamos observando? Será que quando ninguém está olhando, uma árvore no meio da Floresta Amazônica, realmente existe? (2) Quando é que podemos dizer que sabemos alguma coisa, e para que serve o saber? Essas duas questões renderam três meses de aulas. Ao final do período pedi que os alunos produzissem algum texto sobre o tema. A produção de alguns alunos foi realmente recompensadora. Naturalmente estes são problemas da filosofia ligados ao realismo e antirrealismo, à epistemologia e à Filosofia da Ciência, que podem ser discutidos, dentro de certos limites, até mesmo por alunos que estão no início da vida escolar. Uma aluna em particular me surpreendeu com um texto, em que argumentava por que Deus não poderia existir, embora, não tenha tratado diretamente nas aulas da questão da existência ou não de Deus.

Caso 03: Recentemente eu estava sozinho em casa, quando meu sobrinho entrou na porta e perguntou: tem alguém aí? Respondi imediatamente: não, não tem ninguém aqui! Então ele gritou lá da sala: mas como estou ouvindo sua voz? Então eu disse que era apenas uma gravação programada para responder a qualquer pergunta. Na dúvida ele veio até a cozinha para confirmar (crianças não têm as certezas de um adulto!), e me disse: mas eu agora estou vendo você! Então respondi que não, que ele não estava vendo o tio dele, mas um clone que fazia o almoço enquanto o verdadeiro tio Gilson trabalhava, idêntico em tudo ao tio Gilson. Como ele poderia saber que eu não era de fato um clone, perguntei? Então me respondeu que não poderia saber, pois eu era igualzinho ao tio. Em seguida, com um sorriso me disse que eu era o tio dele, pois não tinha nada de diferente entre o clone do tio e o próprio tio Gilson. Foi, enfim, uma conversa de alguns minutos sobre as noções de identidade e indiscernibilidade com um garoto de quatro anos e meio. Ele saiu correndo e, depois de alguns minutos, voltou me dizendo que ele não era o Henrique, mas o clone de meu sobrinho. Então me perguntou como eu poderia saber se ele era ou não meu sobrinho. Provavelmente ele esperava de minha parte uma resposta sobre o problema anteriormente discutido. Então, lhe disse que não poderia saber se ele era ou não o Henrique, que não tinha uma resposta definitiva sobre o assunto, mas que ele poderia pensar no caso. O problema da identidade é um dos temas recorrentes da Filosofia que procuro abordar em minhas aulas no fundamental.

Estes e outros casos semelhantes deveriam fazer parte do cotidiano escolar, ou seja, não só o professor de filosofia deve promover a dúvida e a reflexão, fazendo com que os alunos pensem por si mesmos. 

Para concluir, certa vez comentei em sala, logo após uma aula de matemática, que poderia provar aos alunos que nem sempre 1+1=2, isto é, que poderíamos ter uma matemática, embora estranha e muito diferente, perfeitamente consequente em si mesma. A aula foi acalorada, pois estava pondo em xeque uma “certeza indubitável”. No intervalo, meu colega e amigo, o professor de matemática, me disse que eu queria confundir os alunos e destruir o que ele e outros colegas estavam pretendendo ensinar. Respondi simplesmente que sim!

Ah! Não posso deixar de confessar que, por vezes, costumo subornar meus alunos com um pirulito!



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