Educação
Confissões de um boçal
Recentemente um comentarista neste blog (o qual não quis se identificar) criticou certas afirmações frequentes que faço. Este comentarista, entre outras coisas, critica quando afirmo que o brasileiro é um boçal (pessoa ignorante, rude, grosseira) e que o Brasil não faria falta ao mundo se sumisse do mapa. É claro que muitos brasileiros fizeram grande diferença, com considerável projeção internacional. Exemplos são encontrados nas artes (Heitor Villa-Lobos, Cândido Portinari, entre outros), nas ciências (Carlos Chagas, Newton da Costa, entre outros) e até na tecnologia (Alberto Santos Dumont, Alfredo Moser, entre outros). Mas esses nomes, em geral, conquistaram projeção internacional apesar de terem vivido e trabalhado em nossas terras e não por conta disso. Brasil é um país que não faz questão de dizer ao mundo: "Oi, estamos aqui!" Faz parte da cultura irlandesa, por exemplo, mostrar ao mundo quem foi James Joyce. Já o Brasil faz questão de não lembrar de Peter Medawar, nosso único ganhador do Prêmio Nobel.
O mesmo comentarista acima mencionado perguntou, então, se sou um boçal e se meu eventual desaparecimento faria falta ao mundo. Segue abaixo a minha resposta.
Sim. Nasci um boçal e cresci como um. E, sim. Se eu sumisse agora, minha falta não seria sentida perante o mundo.
Apesar de não ser de minha natureza expor aspectos de caráter pessoal em público, escrevo esta postagem para responder a uma questão que é natural: motivação. Ninguém discursa enfaticamente sobre educação, ciência e cultura se não houver uma motivação. E motivação é algo de caráter inevitavelmente pessoal. Pois bem. Segue abaixo o meu caso específico.
Apesar de ter nascido em São Paulo (SP), desde a infância vivo em Curitiba (PR). Cheguei a Curitiba na época em que esta cidade tinha 600 mil habitantes. Morei em um bairro marcado por valetas a céu aberto e vizinhos praticamente sem escolaridade. Do lado esquerdo de minha casa morava um policial macumbeiro que adorava esfaquear porcos no quintal de seu lar, fazendo-os gritar e sofrer por muito tempo. Do lado direito morava um rapaz que matava ratazanas dentro do forno do fogão de sua avó. As ratazanas eram capturadas das valetas. E na frente vivia uma mulher que, pontualmente, no final da tarde, gritava com o filho, chamando-o de fdp.
Meus pais estimulavam muito a leitura. Por conta disso tive meus primeiros contatos com livros de medicina, astronomia, matemática, tecnologia, história mundial e idiomas estrangeiros (inglês e alemão). No entanto, em função de idiossincrasias que prefiro não detalhar, vivi também em um ambiente socialmente muito isolado e dominado por radicais crenças místicas e políticas. Do ponto de vista político, fui criado sob o discurso de que comunismo é sinônimo de estupidez, socialismo é comunismo cor-de-rosa, e que o nazismo só não funcionou porque Hitler foi ambicioso demais. Ouvi muitas vezes a frase "Um dia Hitler será considerado um dos maiores gênios da história." Já do ponto de vista místico fui criado por Rosacruzes que acreditavam que o verdadeiro conhecimento somente é possível através de uma visão esotérica de mundo. Ciência era considerada algo bacana e importante. Mas somente o místico poderia alcançar a suposta sabedoria suprema.
Diante deste quadro li integralmente todas as edições disponíveis da revista Planeta, um periódico frequentemente dedicado a histórias fantásticas sobre extraterrestres, fantasmas, lobisomens, vampiros e até fadas, narradas como reportagens jornalísticas. Li vários livros de Peter Kolosimo e Erik von Däniken, nomes hoje associados à pseudo-arqueologia, mas cultuados por milhões, décadas atrás.
Bertrand Russell, Platão e Kant eram apenas nomes conhecidos. Nada além disso. Russell, principalmente, mais parecia um velho rabugento do que alguém que tivesse algo importante a dizer.
No entanto, foi justamente em uma edição da revista Planeta que tive meu primeiro contato com a biografia de Nikola Tesla. E aquilo me fascinou muito mais do que qualquer experiência mística ou convicção política. Eu estava, naquele momento, diante de uma breve biografia sobre alguém que efetivamente mudou o mundo, alguém que ajudou a definir o século 20.
A simples ideia de transformar o mundo era algo que me fascinava. Sem dúvida, Hitler mudou o mundo. Mas a mudança que ele implementou foi uma ideologia. E foi uma ideologia responsável pela morte de milhões. Mas foi uma ideologia que somente se sustentou a partir dela mesma e não do contato com a realidade. Tesla também tinha ideologias. Mas suas ideologias eram sustentadas por aquilo que a própria realidade parece oferecer. Tesla sonhava com eletricidade. Ele queria conhecer a eletricidade. E conheceu. E, em função disso, viabilizou o sistema de distribuição de energia elétrica até hoje empregado no mundo todo. É mais fácil uma pessoa entender o bom uso da eletricidade do que o bom uso do nazismo.
Mas eu não tinha ideia de por onde começar. Montei laboratórios de eletricidade e de química em um pequeno quarto, a partir do pouco conhecimento que estava à minha disposição. Com tentativas e erros, desenvolvi um telescópio de projeção que permitia acompanhar a dinâmica de manchas solares. O resultado foi uma insolação que me deixou na cama durante uma semana. Mas aproveitei este momento para ler sobre as pirâmides do Egito e descobrir a constante áurea.
Durante meu ensino médio eu estava determinado a ingressar em uma universidade. Em Curitiba, naquela época, havia apenas duas opções: Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Universidade Católica do Paraná (não era Pontifícia ainda). Por conta do isolamento social que vivi, nem se cogitava a possibilidade de fazer uma graduação fora de Curitiba. A UFPR era a única instituição gratuita de ensino superior e, portanto, acessível para os padrões financeiros de minha família. Eu estava em dúvida entre medicina e matemática. Decidi que medicina era uma ideia ruim, pois eu queria uma carreira na qual eu tivesse liberdade de escolha sobre horário de trabalho.
Cursei Licenciatura em Matemática, na UFPR. Mas, com apenas duas exceções, tive professores sem compromisso algum com pesquisa. E o que eu queria era ser um pesquisador, alguém que construísse algo relevante.
Ao término da graduação, iniciei o Mestrado em Física, novamente na UFPR. Tive a sorte de encontrar um prolongado período de greve naquela instituição. Isso porque eu tinha considerável dificuldade para acompanhar o estudo das disciplinas exigidas. Usei o período de greve para estudar. A Licenciatura em Matemática, que fiz, era pouco exigente.
Durante o mestrado publiquei meu primeiro artigo, em parceria com meu orientador, Germano Bruno Afonso. No entanto, sem a pressão de meu orientador, eu jamais teria conseguido chegar aos resultados alcançados. Faltava em mim a mais importante característica necessária para um pesquisador: autonomia.
Por que eu não tinha autonomia intelectual? A resposta é simples. Porque eu era um boçal. Autonomia de pensamento é algo que deve ser conquistado muito cedo. O tempo estava passando, e a tal da autonomia simplesmente não surgia. Faltava um lampejo, uma fagulha, uma luz de criatividade.
Criatividade é a capacidade de lidar com contradições. Eu vivia em uma realidade dominada por certezas (fossem místicas, políticas ou até científicas). E como criar ciência se eu ainda assumisse o preconceito de que a ciência oferece respostas?
Quando concluí o mestrado, senti-me um vencedor. Senti-me como uma pessoa que tinha vencido o isolamento social e cultural da Curitiba dos anos 1970, para ingressar no amplo mundo da ciência que avançava para o século 21. Afinal, meu primeiro artigo foi escrito em inglês. E inglês, achava eu, era o idioma que o mundo lia. No entanto, ignorei o fato de que não basta escrever em inglês. É necessário escrever algo relevante em inglês.
Ao iniciar o doutorado, na Universidade de São Paulo, tive contato direto com Newton da Costa e seu grupo interdisciplinar de pesquisa. Esta experiência foi avassaladora. Foi quando percebi que todo o empenho que tive até então era algo simplesmente insignificante. Eu achava ter vencido minha boçalidade, mas ficou claro naquele grupo que este não era o caso. Voltei a ser um boçal, pior do que nunca. Eu desconhecia por completo noções extremamente elementares sobre ciência e até mesmo cultura em geral. Fazer matemática ou física de alto nível não se resumia a fazer contas complicadas. Era necessária uma visão científica, algo que definitivamente eu não tinha. E visão científica nada tem a ver com o compartilhamento de ideias científicas, com pessoas dividindo a mesma opinião. Se eu falasse A, Newton da Costa respondia convincentemente que a verdade era a negação de A. Se eu falasse a negação de A, Newton da Costa respondia de maneira mais convincente ainda que a resposta era A. E se eu falasse que poderia ser A ou a negação de A, ouvia uma inesperada resposta B. O que se aprende com Newton da Costa é jamais repetir o que ele afirma ou defende, mas a desenvolver sua própria visão científica. E a única maneira de alcançar isso é se submetendo a duras críticas, botando a cara para bater. Quanto mais violenta for a pancada contra as suas crenças, mais se aprende que elas não passam de meras crenças.
Durante meu pós-doutorado em Stanford, publiquei meu primeiro artigo solo. Apresentei os resultados deste trabalho em um congresso internacional na Itália. Conquistei minha tão sonhada autonomia. Mas deixei de ser um boçal? Não. Por quê? Porque ainda faltava algo, algo realmente importante. Faltava real relevância no que eu fazia.
Ao longo de minha carreira descobri que publicar artigos científicos em periódicos de alto nível é algo perfeitamente possível de ser realizado, mesmo para uma pessoa que cresceu entre valetas e ideologias nazistas e místicas, lendo sobre deuses-astronautas e fadas que enganaram Arthur Conan Doyle. Aprendi que publicar em periódicos de alto nível é hoje algo até fácil. Era impossível na minha juventude, mas hoje é algo realista. No entanto, o perigo reside justamente na satisfação com tão pouco. Onde está a relevância?
Vários artigos meus são citados por pesquisadores de diferentes cantos do globo, em diferentes idiomas. Deixei de ser um boçal? Não.
Hoje tenho 50 anos de idade. A história mostra claramente que as grandes conquistas científicas são feitas por jovens. Portanto, a chance de que eu faça algo relevante a esta altura fica, a cada dia, mais remota. No entanto, não consigo desistir. É teimosia pura e simples, herdada de minha primeira leitura sobre a vida e a obra de Nikola Tesla, o transformador.
Pedi meu desligamento do Programa de Pós-Graduação em Matemática da UFPR, como professor colaborador, por perceber que eu estava caindo na rotina da publicação pela publicação. Uma vez que se aprende a publicar em bons periódicos científicos, é muito fácil o profissional se deixar seduzir pela comodidade da rotina: publicar para receber bolsas de pesquisa e receber bolsas de pesquisa para continuar publicando. Para piorar a situação, colegas estavam colocando meu nome em artigos nos quais não colaborei. Faz parte da cultura acadêmica de nosso país um pernicioso corporativismo, no qual publicações são multiplicadas a partir de amizades e coleguismos. E, estranhamente, essa prática se faz presente até mesmo entre pessoas bem intencionadas. É uma espécie de corrupção ingênua, mas muito arraigada na vida acadêmica (incluindo instituições estrangeiras). Mas ciência não se promove a partir da rotina e política. E o fato é que a realidade acadêmica brasileira está dominada por uma rotina burocrática com pouca sintonia com o desenvolvimento da ciência que transforma o mundo.
Passei décadas me dedicando ao estudo de física teórica e fundamentos da física. Não consegui os resultados desejados. O que fiz, então? Decidi mudar minha estratégia. Uma vez que não posso fugir do fato de que já tenho 50 anos de idade, decidi pelo rejuvenescimento intelectual. E há alguns anos tenho me dedicado cada vez mais ao estudo de linguística, assunto muito novo para mim. Tenho um projeto de pesquisa nesta área, que iniciei com o filósofo brasileiro Otávio Bueno e que acabou assimilando posteriormente contribuições de Newton da Costa. É um projeto audacioso e que tem encontrado dificuldade de aceitação entre linguistas. Mas é uma proposta realmente nova, na qual se assume que a semântica de uma linguagem é mais fundamental do que a sintática. Essa tese contrasta fortemente com a visão dominante de linguistas do mundo todo. Mas o que temos a perder? De meu lado, nada se perde, em caso de fracasso. Afinal, não estou mais sujeito às normas de órgãos de fomento à pesquisa de nosso país. Seria irresponsabilidade minha impor a um aluno de mestrado ou doutorado um projeto desses, justamente porque alunos de pós-graduação esperam poder concluir com sucesso os cursos que fazem. E não há garantia de sucesso algum neste projeto que desenvolvo.
Já tive alunos que pediram para ajudá-los a publicar artigos em bons periódicos. Sempre foi possível atender a esses pedidos. Mas qual é a garantia de relevância científica para um projeto com data marcada de apresentação?
Resumidamente, sou ainda um boçal. Mas sou um boçal que ainda luta contra a própria ignorância, contra a própria irrelevância, contra a falta de sintonia com um mundo que vai muito além da UFPR, muito além do Brasil e muito além de minhas limitações humanas.
Quando acuso o povo brasileiro de ser boçal, não tenho a intenção de ofender pessoas. Tenho a intenção de apenas expor um fato. Sem o reconhecimento dessa boçalidade, jamais haverá motivação para mudanças construtivas.
O que está em jogo não são resultados, mas atitudes. Eventualmente a atitude do claro inconformismo com a própria boçalidade pode trazer resultados realmente bons para o Brasil e para o mundo. Mas certamente o conformismo com a própria boçalidade (que se traduz com uma ilusão da pessoa consigo mesma) jamais trará qualquer resultado remotamente importante.
Em nossas terras fala-se muito de elites intelectuais. Pois bem. Essas elites não são reais, elas não existem. O que existe são estudantes que não estudam e intelectuais que não pensam. Quem se vê como membro de elite intelectual, deve repensar seu papel perante a sociedade. O intelectual não é uma pessoa que realizou conquistas no domínio das ciências ou das artes, mas alguém que permanentemente busca por essas realizações.
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