Memórias
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Recentemente mais um ex-aluno meu concluiu o doutoramento. Parte de sua celebração foi divulgada no facebook. Lembrando da grande figura humana desse aluno e de sua capacidade e intensa dedicação, fui remetido ao passado. Isso porque os melhores pupilos que tive são de vários anos atrás. 


O período mais feliz de minha vida acadêmica ocorreu entre janeiro de 1991 e maio de 1994. Foi nesta época que realizei o doutorado em filosofia na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação de Newton Carneiro Affonso da Costa e co-orientação de Francisco Antonio Accioly Doria. O grupo que se aglutinava ao redor do Professor Newton era absolutamente notável: Analice Gebauer Volkov, Francisco Doria, Décio Krause, Roque da Costa Caiero, Edelcio Gonçalves de Souza, Mara Gomes Barreto, José Augusto Baeta Segundo, Otávio Augusto Santos Bueno, Marcelo Tsuji, Osvaldo Pessoa Jr., Jean-Yves Béziau, Nelson Papavero, Christian Houzel, David Miller, Antonio Mariano Nogueira Coelho, Jair Minoro Abe e muitos outros de diversos cantos do Brasil e do mundo e de variadas áreas do saber, como filosofia, matemática, física, economia, engenharias e biologia.


Diferente do que vejo em outras universidades, principalmente brasileiras, todos tinham curiosidade em saber o que os demais estavam fazendo em termos de pesquisa. Eu mesmo, por exemplo, paguei passagem aérea Rio - São Paulo - Rio, para o Professor Doria, para que ele pudesse me colocar em contato com teoria-K e as teorias de gauge. Mas não fui o único beneficiado, pois diversos outros membros do grupo aproveitaram para discutir com ele sobre inúmeras questões científicas.


A sala 2007, ocupada pelo Professor Newton no prédio da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH), era pequena. Contava com uma escrivaninha, um quadro negro, estantes de livros e duas ou três cadeiras para visitantes. 


Nas manhãs em que havia atividades do grupo (aulas ou seminários) uns poucos ocupavam a sala - se chegassem mais cedo ou se precisassem resolver problemas mais urgentes - e a maioria ficava do lado de fora, conversando e aguardando o início de um novo dia. 


Entusiasmado, o Professor Newton sempre trazia novidades do mundo acadêmico: livros ou artigos que acabara de publicar, conquistas de discípulos seus ou avanços recentes e relevantes em lógica ou fundamentos da ciência. 


As aulas e palestras ministradas pelo Professor Newton, fossem na FFLCH ou no Instituto de Estudos Avançados (IEA - USP), eram estradas (pavimentadas ou de terra batida, tortuosas ou retilíneas, sinalizadas ou abandonadas pelos outros) que conduziam a ideias, metas e inspirações para pesquisas. Os seminários apresentados por discípulos tinham que ser rigorosamente qualificados, sob pena do extraordinário senso crítico do Mestre. As conversas na lanchonete do Prédio da História eram extremamente provocadoras. O Professor Newton adorava provocar discípulos e pesquisadores brasileiros ou estrangeiros, para que eles saíssem da letargia que normalmente coloca indivíduos do mundo acadêmico na posição de julgarem a si mesmos como conhecedores de suas áreas de interesse. 


A primeira coisa que se aprendia naquele grupo era nossa própria ingenuidade científica e filosófica. Lembro que, caminhando com o Professor José Baeta em direção à biblioteca de física da USP, ele me disse: "O que mais me fascina no grupo do Professor Newton é que ninguém ali é arrogante." Respondi: "Se o Professor Newton não é arrogante, quem tem coragem de ser?"


A segunda coisa que se aprendia era como efetivamente trabalhar com seriedade e como reconhecer um trabalho sério. O impacto daquele grupo era tão grande sobre cada um de seus participantes que me obrigo a citar um exemplo realmente significativo: mesmo quatro anos após a prematura e violenta morte de Analice Volkov, ela ainda estava publicando em veículo especializado de circulação internacional. 


O Professor Edelcio de Souza parecia o Radar, do filme M.A.S.H., de Robert Altman. Ele sempre organizava a logística das atividades do grupo e invariavelmente sabia o que era necessário para a realização de tais atividades, antes mesmo que o Professor Newton se manifestasse. 


Às quatro horas da tarde o Mestre se retirava. Tinha que descansar. No final do dia alguns dos discípulos se reuniam em uma lanchonete para trocas de ideias e simples bate-papos. 


Jamais encontrei algo remotamente parecido com aquele grupo, nem no Brasil e nem no exterior. Havia no ar algo de família. Mas não era uma família comum. Era uma família que criticava duramente ideias, sem desmerecer pessoas. Era uma família que buscava criar e desenvolver ideias em favor da paixão por ciência. Era uma família unida não por sangue, mas por sonhos e realizações intelectuais. 


Certo dia apareceu no grupo um rapaz, nascido nos Estados Unidos. Ninguém sabia de onde veio aquele sujeito que não falava português. Ninguém sabia o que ele de fato queria ou sequer sua formação. Mas o Professor Newton fez questão de acolhê-lo, pedindo para que eu apresentasse meu seminário semanal sobre teoria-K topológica em inglês. O tal do rapaz não fez pergunta alguma durante a discussão, a qual contava com a presença de várias pessoas, incluindo um professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP. E logo depois ele sumiu. Era um fugitivo procurado pela Interpol.


No dia anterior à minha defesa de tese, cheguei a São Paulo, na companhia de um velho amigo do tempo de ensino médio, Fabio Filipini. No elevador do hotel ouvi a notícia da morte cerebral de Ayrton Senna, através do rádio portátil do ascensorista. Aquela brutal novidade foi recebida por mim de forma absolutamente superficial. Preocupado, o funcionário do hotel nos perguntou se havia chance do grande e carismático piloto de Fórmula 1 se recuperar. Respondi que normalmente as pessoas precisam do cérebro para viver. Eu estava muito tenso, enquanto o resto do país se encontrava de luto. Mas minha tensão foi injustificada. A defesa foi tranquila. Fui aprovado com louvor e distinção. 


Em seguida, como era hábito, fomos todos almoçar no velho Prédio da História. Foi quando Francisco Doria me perguntou de forma simpática mas incisiva: "E então? Quer ir pra Stanford?" Naturalmente eu disse que sim. 


Um ano depois eu estava trabalhando com Patrick Suppes (a convite do próprio), em uma universidade que mantém ao ar livre e sem policiamento a segunda maior coleção privada de esculturas de Auguste Rodin do mundo, incluindo O Pensador. Stanford é um lugar belíssimo e responsável por alguns dos mais importantes avanços científicos da história. Mas não encontrei naquele lugar tamanha harmonia intelectual como testemunhei na USP, graças ao Professor Newton. Havia seminários frequentes em Ventura Hall, o prédio onde ficava minha sala em Stanford. Mas o tom do ambiente era definitivamente outro. 


Em 2006 participei da banca de doutorado, na USP, de Antonio Mariano Nogueira Coelho, atualmente professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estavam também na banca Newton da Costa (orientador), José Baeta Segundo, Roque da Costa Caiero e Edelcio Gonçalves de Souza. O tema da tese era  indistinguibilidade: uma abordagem por meio de estruturas (assunto com o qual trabalhei em parceria com Krause e Volkov). Durante a arguição da banca, Roque Caiero disse algo que me marcou muito. Não consigo recordar as palavras exatas. Mas a mensagem era a seguinte: "Esta defesa é o fim de uma era." Houve silêncio no local. 


De fato, Antonio Coelho foi o último daquele grupo a se titular. Aquela defesa foi o fim de uma era, pelo menos para mim e tantos outros. Se não fiz algo mais relevante durante minha carreira acadêmica, foi por responsabilidade inteiramente minha. Pois a sorte de encontrar as pessoas certas no momento certo eu tive. 


Hoje o Professor Newton trabalha na UFSC. Só espero que as pessoas de lá saibam aproveitar esta oportunidade única, pois o entusiasmo e a vitalidade dele são invariantes. 



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