Educação
Patrick Suppes
Na manhã de 2 de maio de 1994 defendi minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo. Durante o almoço, logo após a defesa, meu co-orientador, Professor Francisco Doria, perguntou: "E então? Quer ir pra Stanford?" Respondi com um imediato sim.
Meses depois recebi uma carta de Patrick Suppes, com um convite para eu realizar estágio de pós-doutoramento na Universidade Stanford. Em 1995 eu desembarcava com minha (então) esposa e meu filho de quatro anos no aeroporto de San Jose, California. De lá pegamos táxi para um hotel em Mountain View, no Vale do Silício. No dia seguinte cheguei a Ventura Hall, em Stanford, e me apresentei a Suppes. Ele demorou alguns segundos para entender quem, afinal de contas, era aquele sujeito de sotaque esquisito. Afinal Suppes pronunciava meu nome como Édonai.
Assim que a breve confusão foi desfeita, Suppes imediatamente chamou sua secretária para me ajudar na localização de um apartamento para alugar. Na época havia uma única opção: um apartamento de dois quartos, com uma ampla sala, pela bagatela de 925 dólares por mês. O apartamento ficava em Menlo Park, local que sedia a mais antiga estação ferroviária da California.
Uma orientada de Suppes também foi convocada. Ela me deu carona de volta ao hotel e, de lá, a família toda se dirigiu ao apartamento. Suppes já havia conversado com a dona do imóvel por telefone. E, com um pouco de negociação, consegui convencê-la a alugar o apartamento a partir daquele mesmo dia.
Logo depois retornei a Ventura Hall e conversei brevemente com Suppes. Ele tinha compromissos naquele dia e me deu carona para fora do campus, em seu Mercedes-Benz. No caminho Suppes perguntou no que eu estava trabalhando. Expliquei que minha tese de doutorado era sobre teoria de categorias. Ele respondeu com um simples aham. Naquele instante entendi que era ele quem decidiria no que eu deveria trabalhar.
No dia seguinte Suppes explica que precisará viajar por alguns dias e recomenda que eu leia o livro The Quantum Vacuum, de Peter Milonni. Ele queria que eu trabalhasse em um modelo semiclássico para a física quântica, o qual havia iniciado em parceria com outro brasileiro, José Acacio de Barros. Suppes tinha um interesse específico no efeito Casimir.
Meu conhecimento sobre física quântica, na época, se limitava ao regime não-relativístico. Eu não sabia coisa alguma sobre eletrodinâmica quântica. Mas tinha que dominar os requisitos necessários para começar a discutir sobre um possível modelo corpuscular para o efeito Casimir, até o seu retorno, que se daria em alguns dias.
Comprei o livro de Milonni na livraria de Stanford e um notebook Toshiba no Walmart. E então comecei a trabalhar. Por sorte a obra de Milonni era muito bem escrita, objetiva e clara. Todos os dias eu estudava na minha sala, em Ventura Hall, e em casa.
Ao retornar de viagem, Suppes organizou seminários semanais sobre estatística e física, com a participação de gente do calibre de Max Dresden, que na época trabalhava no Stanford Linear Accelerator Center (SLAC). Foi Dresden quem deu a ideia que viabilizou a concepção do tal modelo corpuscular semiclássico para o efeito Casimir.
Em um ou dois dias as equações básicas para o modelo estavam no papel. Suppes se empolgou com as contas iniciais. Mas, com o tempo, se mostrou bastante cético. Poucas semanas depois chega Acacio de Barros, que se envolve no projeto.
Suppes, Acacio e eu conversávamos diariamente. Para cada dia havia uma nova versão do artigo, que era exaustivamente analisada.
Acacio foi uma das pessoas mais criativas que já conheci. Era uma fonte inesgotável de ideias e um curioso compulsivo. Paralelamente ao projeto sobre o efeito Casimir, ele pensava nas relações entre física clássica e o teorema de Bell, da mecânica quântica.
Lá pela quinquagésima versão, o artigo foi submetido para publicação em Foundations of Physics Letters. Lembro que eu havia questionado com Suppes sobre a origem de nossa fórmula para a energia do estado de vácuo. Expliquei a Suppes que naquele artigo não havia uma única justificativa para aquela fórmula, apesar do formalismo canônico usual da eletrodinâmica quântica permitir a dedução dela. Ele então respondeu: "Temos que assumir algum ponto de partida". Ou seja, Suppes sugeriu que nossa fórmula funcionava como uma espécie de postulado.
Semanas depois vieram os pareceres sobre o artigo. Um dos referees questionou justamente a origem de nossa fórmula para a energia do vácuo. Suppes olhou para mim, com a carta do editor na mão, e perguntou: "A gente havia conversado algo a respeito disso, não foi?" E, ingenuamente, respondi: "Sim. O senhor havia dito que deveríamos assumir algum ponto de partida." Suppes não gostou muito de minha impertinência.
Nesse meio tempo Acacio apresentou a ideia de provar a violação das desigualdades de Bell no contexto da eletrodinâmica clássica. Achei aquilo muito esquisito, mas Suppes se empolgou com a ideia.
Nós três começamos a trabalhar em dois novos artigos: um sobre o teorema de Bell na eletrodinâmica clássica e outro sobre o teorema de Bell no modelo corpuscular semiclássico para física quântica.
Questionei tanto as ideias de Acacio que Suppes chegou a brigar comigo. Aquele foi um dia realmente difícil. Senti-me uma espécie de criador de caso. Acacio, no entanto, encarava minhas críticas de forma completamente diferente. Ele percebia que provar a violação das desigualdades de Bell em regime clássico era uma ideia extremamente ousada e, portanto, questionável. Mesmo assim o artigo foi submetido para publicação, desta vez em Physical Review Letters.
Por tremendo azar, aquele trabalho caiu nas mãos de um referee absolutamente primário, que sequer conhecia noções elementares sobre teoria de probabilidades. Acacio e eu ajudamos Suppes a escrever a resposta ao referee. Mas não teve jeito. O artigo foi recusado.
Resumindo a história, o trabalho sobre o efeito Casimir foi publicado, bem como o artigo sobre o teorema de Bell no modelo corpuscular semiclássico. Mas o projeto sobre violação das desigualdades de Bell na eletrodinâmica clássica se limitou a um preprint ainda disponível na internet.
Após um ano, chegou o momento de retornar ao Brasil. Acacio já havia partido há algum tempo. Em meu último dia em Stanford, Suppes deixou um artigo sobre minha escrivaninha, na sala que eu havia dividido com um americano, uma chinesa e, posteriormente, com um casal de franceses. Era um texto sobre o papel do filósofo da ciência na atualidade, que exerce forte influência sobre mim até hoje. Poucos dias antes, minha esposa, meu filho e eu jantamos com Suppes e uma de suas filhas. Ou seja, não ficaram mágoas, apesar dos atritos em uns poucos momentos.
Em seu último livro, uma espécie de memorial de toda a sua obra em filosofia da ciência, Suppes faz um agradecimento a mim, algo que me honra muito. Também recebi pelo correio uma cópia deste livro com uma exagerada dedicatória.
Certamente não estou entre os colaboradores mais importantes de sua carreira. Mas pelo menos guardo um pouco deste contato pessoal e profissional que durou um ano e que era praticamente diário, chegando a ocorrer até mesmo em alguns domingos.
Eu poderia ter escrito nesta postagem um texto melhor comportado, menos pessoal, destacando as contribuições de Patrick Suppes à filosofia, à matemática, à estatística, à psicologia, à educação, à neurologia e à física teórica. Poderia também ter detalhado por que Patrick Suppes recebeu do Presidente George H. W. Bush a Medalha Nacional de Ciência, o mais importante prêmio científico dos Estados Unidos. Mas sei que muitos escreverão sobre essas conquistas a partir do dia de hoje. Isso porque ontem Patrick Suppes faleceu, deixando um legado ainda muito ignorado no Brasil mas amplamente lembrado em todo o resto do planeta.
Aliás, a última vez em que vi Suppes foi justamente no Brasil, quando esteve em Florianópolis, em evento que prestava homenagem a ele. São poucos os filósofos brasileiros que conhecem algo sobre a magnífica obra de Patrick Suppes. Mas esses poucos bastaram para atrair a sua atenção para o nosso país.
Suppes conhecia melhor a produção de filósofos, físicos e matemáticos brasileiros do que a maioria de nós mesmos. E este é um dos aspectos que mais pude admirar neste grande pensador.
Em contrapartida, quando tentei traduzir seu último livro para o nosso idioma, recebi de editores a resposta de que esse tipo de literatura não interessa ao mundo acadêmico brasileiro. Afinal, quem se interessa por isso já lê diretamente o texto original.
Houve desencontros sim, entre Suppes e eu. E esses desencontros são extremamente comuns entre pesquisadores. Mas, no final das contas, ainda era o conhecimento científico que falava mais alto.
Suppes foi generoso o bastante para prefaciar meu primeiro livro, confiando em um breve resumo em inglês que fiz da obra, hoje praticamente esquecida. Manteve-me atualizado sobre seus últimos estudos a respeito do cérebro humano, publicados em Proceedings of the National Academy of Sciences. E, mais importante do que tudo, ensinou-me que o avanço da ciência depende fundamentalmente de riscos. Ser alvo de críticas (vindas de referees ou mesmo de colegas) jamais deve ser traduzido na forma de covardia travestida de cautela.
Ciência é ousadia. E esta lição aprendi com Patrick Suppes (1922-2014), o mestre que hoje descansa fisicamente, mas que respira através de sua perene obra.
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