Educação
Matemática e Telepatia
Feliz Natal a todos! E o presente que escolhi para dar aos professores de matemática é o dom da telepatia. Concebi uma adaptação da teoria das probabilidades em psicologia cognitiva que permite tornar professores de matemática bizarros leitores das mentes de seus alunos.
Propomos este presente na forma de um desafio a ser aplicado em sala de aula. Os alunos deverão decidir se acreditam que seu professor é um poderoso telepata (é capaz de quase infalivelmente ler os pensamentos de seus pupilos, sejam quais forem) ou se de fato a teoria de probabilidades encontra aplicações no mundo real. O objetivo é motivar o estudo de probabilidades como ferramenta no processo de tomada de decisões. Ou seja, dominar os conceitos básicos da teoria de probabilidades é um exercício de cidadania.
Devo avisar que já fiz essa atividade em sala de aula, em uma disciplina do curso de Licenciatura em Matemática da UFPR. Os resultados foram bastante animadores. Na aula anterior o professor deve pedir aos alunos que tragam, cada um, uma moeda em bom estado. No meu caso, eu mesmo levei moedas de um real.
Na aula da atividade o professor entrega a cada aluno de sua sala uma folha de papel com uma grade em forma de matriz de dez linhas por dez colunas e com todas as cem casas em branco. Em seguida ele apresenta as instruções.
A atividade começa com uma brincadeira de faz-de-conta, na qual as moedas ainda não são usadas. Cada aluno fará um jogo de cara-ou-coroa, cem vezes, com uma moeda imaginária. Se a moeda mentalmente jogada pela primeira vez resultar em cara, o aluno deverá anotar na casa da primeira linha e primeira coluna as letras CA. Se resultar coroa, deverá anotar CO na mesma casa. Em seguida o aluno joga mentalmente a moeda pela segunda vez e anota o resultado (CA ou CO) na casa da primeira linha e segunda coluna. O processo é repetido, cobrindo as colunas em ordem, linha por linha, também em ordem. Após cem jogadas, a grade matricial estará completamente preenchida. O objetivo dos alunos, nessa primeira tarefa, é fazer de conta que estão realmente jogando cara-ou-coroa com uma moeda não-viciada. Para coordenar a atividade, os alunos jogam mentalmente a moeda imaginária somente ao sinal do professor, o qual pode ser algo como "Jogada 1, agora. Jogada 2, agora..." e assim por diante. O processo fica facilitado se o professor fizer os alunos acompanharem suas anotações pessoais em uma reprodução dessa grade matricial no quadro-negro, na qual o docente marca apenas algum símbolo qualquer que não remeta a Cara ou Coroa. O objetivo desta marcação no quadro é apenas coordenar a turma como um todo, fazendo-os preencher casa por casa na ordem estabelecida.
Como são cem jogadas imaginárias, a atividade corre o risco de se tornar cansativa para os discentes. Isso pode ser resolvido se o mestre for persuasivo o bastante para manter a concentração dos pupilos. Diferentes técnicas podem ser empregadas para atingir esta meta, dependendo do perfil do professor e de sua turma. Mas seja como for, é fundamental que os alunos preencham as cem casas na ordem ditada.
Finalmente, os alunos escreverão seus nomes nas respectivas folhas preenchidas de cada um e farão um desenho no topo. Este desenho deverá ser na cor preferida do aluno, a qual não poderá ser revelada ao professor. Ao término do desenho, as folhas deverão ser guardadas fora do alcance de visão do docente.O professor agora distribui novas folhas, idênticas às anteriores. Novas instruções são dadas para a próxima tarefa. Os alunos deverão jogar de fato cara-ou-coroa, com uma moeda comum (aquela que foi solicitada na aula anterior ou entregue pelo docente), e anotar os resultados dessas jogadas reais na mesma ordem em que o jogo imaginário foi realizado: cobrindo as colunas em ordem sequencial, linha por linha, também em ordem sequencial. Os mesmos caracteres CA e CO deverão ser usados para registrar os resultados das jogadas. Novamente o docente pode usar o quadro-negro para coordenar o jogo.
Sempre há aqueles alunos que deixam moedas caírem ao chão. Isso pode provocar um certo tumulto. Mas um docente experiente deve saber lidar com essa situação de forma tranquila. Afinal, a grande motivação é mostrar aos alunos que o mestre é um telepata. E o desafio da mágica da telepatia pode ser um poderoso agente motivador para concentração.
Feito isso, cada aluno escreverá seu nome na segunda folha e fará um desenho na cor que menos gosta.
Em seguida o professor deve recolher cada par de folhas de cada aluno. O docente deve insistir que as folhas não sejam dobradas ou amassadas. Caso alguma folha de um aluno em especial tenha sido dobrada, a outra folha deste mesmo estudante deverá ser dobrada da mesma maneira, para dificultar a identificação que permita diferenciar a primeira da segunda folha por meios que não sejam através dos desenhos coloridos ou dos resultados dos jogos imaginários versus reais.
Como o professor não teve acesso à informação sobre a cor preferida de cada um, sua única forma de identificação das folhas é através da comparação entre jogos imaginários e jogos reais de cara-ou-coroa.
Agora é a hora do show. O docente escolhe um par qualquer de folhas de um determinado aluno, examina-as e conclui: a cor preferida de Fulano é vermelho e a cor que ele menos gosta é azul. Surpreso, o aluno confirmará. O docente faz agora uma nova adivinhação, descobrindo a cor preferida de Beltrana. Em seguida ele descobre a cor preferida de Ciclana e assim por diante. Quase que infalivelmente (existe uma probabilidade muito alta de que o professor jamais erre em suas adivinhações), o mestre descobre a cor preferida de cada aluno e, consequentemente, a cor que este aluno menos gosta.
Portanto, o professor parece exibir poderes paranormais. Ele é um telepata!
Os alunos ficarão intrigados como pode o professor quase sempre (ou sempre!) saber a diferença entre a folha que representa o jogo real e aquela que corresponde ao jogo imaginário. Afinal, essa seria a única maneira do mestre determinar qual é a cor preferida de cada aluno.
Outra possibilidade é usar, ao invés de cores, preferências por times de futebol, filmes, celebridades, programas de televisão etc. O professor consegue descobrir as preferências de cada aluno e de forma quase infalível.
O segredo do mestre, naturalmente, está no exame das folhas. Agora vamos à explicação.
É aqui que entra a psicologia cognitiva. A vasta maioria das pessoas (principalmente aquelas que desconhecem probabilidades) está sujeita à falácia do apostador. Se, por exemplo, em um jogo de roleta, as quatro últimas rodadas resultaram na cor preta, o apostador que se submete a esta falácia acredita que na próxima rodada é mais provável que resulte vermelho. Mas o fato é que, se a roleta não for tendenciosa (viciada), não há momento algum que possa mudar a probabilidade de um determinado resultado. A probabilidade de se obter tanto preto quanto vermelho continua sendo de quase 50% (não podemos ignorar a pequena probabilidade de o jogo da roleta resultar em 00, que não é preto e nem vermelho). Raciocínio análogo vale para uma moeda não viciada. Uma jogada que resulte em cara não altera a probabilidade de 50% de se obter novamente cara. Esses eventos são independentes entre si.
Na tentativa de simular mentalmente um jogo de cara-e-coroa, a maioria das pessoas acha pouco provável que ocorra uma sequência de cinco caras seguidas. E, de fato, a probabilidade de uma moeda não viciada produzir cinco caras seguidas é de apenas uma a cada trinta e duas chances (1/32 = 1/2 vezes 1/2 vezes 1/2 vezes 1/2 vezes 1/2). Mas jogando a moeda cem vezes, o jogador terá noventa e seis chances de obter cinco caras seguidas. Ou seja, é muito mais provável que se consiga pelo menos cinco caras seguidas, ao se jogar uma moeda cem vezes, do que o contrário. O fato é que as pessoas que desconhecem probabilidades não percebem que a sequência de cinco caras seguidas (CA, CA, CA, CA, CA) é tão rara quanto a sequência CA, CO, CO, CA, CO.
Quando o professor examinar as folhas preenchidas pelos pupilos, ele deve procurar por sequências de sete, seis, cinco ou quatro caras ou coroas seguidas. Se elas forem muito raras ou inexistentes, muito provavelmente trata-se de um jogo imaginário, não real. Nos jogos reais, tais sequências quase que invariavelmente existem. Espera-se, em média, diante de cem jogadas, uma sequência de seis caras seguidas, uma de seis coroas seguidas, três sequências de cinco caras seguidas, três de cinco coroas seguidas, seis sequências de quatro caras seguidas e assim por diante. Ou seja, psicologicamente falando, é muito difícil a mente humana simular processos aleatórios. A mente de nossa espécie tem a tendência de privilegiar padrões, mesmo quando tenta simular o acaso.
Uma vez que o professor revele aos alunos sua técnica de análise das folhas, para descobrir a cor preferida de cada um, temos um excelente ponto de partida para motivar a necessidade por uma educação em matemática. Até mesmo questões de ordem psicológica podem ser colocadas em pauta durante a aula: na tentativa de serem imparciais, a maioria das pessoas acaba sendo tendenciosa. Isso porque somente o acaso é genuinamente imparcial. E a mente humana naturalmente encontra enorme dificuldade para ser imparcial ou justa. É normal as pessoas serem tendenciosas, injustas.
Probabilidades podem ser usadas em sala de aula ou no dia-a-dia como ferramenta para processos de tomadas de decisões, principalmente quando se trata de lógica indutiva. Enquanto a lógica dedutiva opera com argumentos sem risco, a lógica indutiva trabalha com argumentos de risco. E tais argumentos arriscados eventualmente estão associados a probabilidades. Em teoria das decisões sabe-se que a melhor decisão não é aquela que produz o resultado mais favorável, mas a que tem bases racionais.
Por exemplo, fazer uma aposta em um jogo de azar, como loteria, pode gerar um resultado muito favorável. Isso se o apostador conseguir resgatar o prêmio máximo do jogo. No entanto, ao se comparar a probabilidade de se obter qualquer prêmio com a proporção entre o dinheiro investido e o prêmio que se pretende ganhar, fica fácil perceber que a aposta em jogos de azar não é uma decisão com base racional. Aquele que banca um jogo de azar está em considerável vantagem racional sobre quem participa do jogo como mero apostador. Ou seja, jogos de azar promovidos pelos governos federal e estaduais são covardes e indecentes declarações de ignorância àqueles que efetivamente apostam. Este é mais um exemplo que ilustra o descaso de nossos governos com a educação.
Tais ferramentas da teoria das decisões se aplicam a inúmeras outras situações envolvendo probabilidades. Se um empresário precisa decidir se abre ou não um ponto comercial em um determinado bairro, ele pode querer encomendar uma pesquisa de mercado para avaliar a probabilidade de sucesso do novo empreendimento que pretende iniciar. No entanto, tal pesquisa de mercado é realizada por empresas especializadas de consultoria e, portanto, custa dinheiro. Cabe ao empresário avaliar se a quantia cobrada pela pesquisa é justa. E como avaliar o preço de uma informação? É neste momento que entram os modelos da teoria das decisões, os quais utilizam lógica indutiva e probabilidades.
É claro que o emprego desses modelos probabilísticos não garante sucesso na vida real. Mas minimizam riscos, da mesma forma como o professor tem grande sucesso para "adivinhar" as cores preferidas de seus alunos.
Para detalhes sobre lógica indutiva e probabilidades, ver Lógica Indutiva e Probabilidade, de Newton da Costa (HUCITEC, 2008). Para exemplos fascinantes de aplicações de lógica indutiva em problemas do cotidiano, em uma exposição extraordinariamente didática, ver An Introduction to Probability and Inductive Logic, de Ian Hacking (Cambridge University Press, 2001). Para detalhes sobre elementos da teoria das decisões (incluindo a aplicação sobre o valor de informações), ver Análise Multivariada de Dados, de J. F. Hair, W. C. Black, B. J. Babin, R. E. Anderson e R. L. Tatham (Bookman, 2009).
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