Podemos confiar em cientistas? Como diferenciar fatos de teorias?
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Podemos confiar em cientistas? Como diferenciar fatos de teorias?



Cibele Sidney é uma colaboradora deste site, responsável por uma das postagens mais visualizadas aqui desde 2009, ano em que foi criado o blog Matemática e Sociedade. Sua contribuição foi uma denúncia contra o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp). Ela é também a administradora do excelente blog Física Sem Educação.

Recentemente, porém, recebi desta extraordinária professora uma mensagem via Facebook, beirando o desespero. Sua preocupação? Marcos Eberlin. 

Marcos Nogueira Eberlin é Professor Titular do Departamento de Química da Unicamp, Pesquisador Nível 1A do CNPq, Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências, Comendador da Ordem do Mérito Científico, autor de centenas de artigos científicos publicados em periódicos internacionais, com milhares de citações na literatura especializada. E é também um defensor do Design Inteligente. 

Não quero desperdiçar o tempo do leitor com detalhes sobre o Design Inteligente. Para os propósitos desta postagem, basta dizer que o Design Inteligente (DI) é uma tentativa de conferir cientificidade ao Criacionismo, em detrimento à Teoria da Evolução das Espécies. Os adeptos do DI defendem que pelo menos certas características do universo e dos seres vivos somente podem ser explicadas pela interferência de uma inteligência, algo que poderíamos eventualmente chamar de Deus. Ironicamente está despertando considerável atenção um recente artigo de Jeremy England no qual se sugere um modelo que descreve a inevitabilidade do surgimento de vida como consequência natural de leis físicas bem conhecidas. 

Na mensagem que recebi de Cibele Sidney, ela encaminhou um vídeo disponível no YouTube. Neste vídeo há uma palestra de Eberlin sobre o Dilúvio e a Arca de Noé. O vídeo foi postado pelo próprio palestrante e está bloqueado para comentários, algo que evidencia uma tendência pessoal a ignorar críticas. 

Eberlin defende que a história bíblica da Arca de Noé não é um boato (termo extremamente vulgar, neste contexto, porém usado pelo próprio Eberlin!), mas um fato. E, pior, ele afirma que conhece evidências que confirmam este alegado fato. Para justificar, por exemplo, como todos os animais puderam embarcar na Arca de Noé (estou assumindo que o leitor está familiarizado com a Bíblia Sagrada) o palestrante apela para Pangea. Desta forma animais não precisariam cruzar oceanos para alcançar Noé e sua monumental embarcação. 

É sabido que cerca de trezentos milhões de anos atrás havia um único continente em nosso planeta, chamado Pangea. E, segundo Eberlin, foi antes da ruptura de Pangea que Noé embarcou todos os animais da Terra em seu navio. Ou seja, Eberlin usa conceitos científicos quando acha conveniente (como o passado remoto de Pangea), enquanto ignora outras teorias científicas (como a evolução da espécie humana que, trezentos milhões de anos atrás, se reduzia a meros tetrápodes). Vale lembrar que mamíferos somente surgiram na Terra quando Pangea começou a romper, por conta da deriva continental. Isso foi duzentos milhões de anos antes do surgimento dos primeiros hominídeos. 

Procurando mais informações sobre o tema acabei descobrindo que este profundo embaraço provocado por Eberlin não é novidade. Em 2010, por exemplo, o blog da revista Unesp Ciência já publicava postagens que denunciavam seu escandaloso analfabetismo científico.

Mas, novamente, não quero desperdiçar o tempo do leitor com argumentos naturais contra a insana e alarmante irracionalidade e ignorância de um "respeitado" membro da Academia Brasileira de Ciências. O que realmente quero é alertar o leitor para jamais confiar em credenciais acadêmicas quando o assunto é ciência. Afinal, no que depender de autoridade acadêmica, o amalucado Marcos Eberlin conta com vasto material. Mas ele demonstra alguma racionalidade em seus discursos a favor de DI? Não. Simplesmente não.

Eberlin se confunde de maneira primária com conceitos científicos fundamentais e estratégicos, como "fato", "teoria", "probabilidade", entre outros. E ao acompanhar a sua palestra acabei lembrando que muitas pessoas se confundem gravemente com as diferenças entre teorias e fatos. Uma das confusões mais comuns é a seguinte: teorias são contestáveis e fatos são inquestionáveis.

Por que teorias são contestáveis? Eu poderia apresentar ao leitor uma vasta (porém infindável) discussão filosófica para justificar a contestabilidade de teorias científicas. Mas prefiro seguir um atalho que me parece bastante eficaz e convincente. Teorias científicas são concebidas e sustentadas pela mente humana. E como a experiência vem demonstrando ao longo de milhares de anos, humanos podem errar e muito frequentemente o fazem. Portanto, teorias podem ser contestadas justamente por serem criadas por seres humanos. E quem as contesta? Por enquanto, apenas a nossa espécie. Ou seja, assim como é humano errar, também é humano contestar.

Mas e fatos? Fatos podem ser questionados? Para responder a esta questão precisamos primeiramente saber o que é um fato. 

Na filosofia especulativa há inúmeras visões divergentes entre si sobre o que é, de fato, um fato. Por exemplo, na visão funtorial sobre fatos admite-se que a sentença "É um fato que" funciona como um operador que age sobre outras sentenças. No entanto, enquanto alguns filósofos assumem que fatos funtoriais podem ser contingentes (É fato que João está triste) e outros não (É fato que 2 + 2 = 4), grandes nomes da filosofia como Wittgenstein consideram que todo fato funtorial é contingente. Confuso? Então apelemos à matemática.

Entre as teorias formais de fatos, apesar da literatura ser escassa, também existem significativas divergências. Algumas das teorias formais de fatos mais conhecidas foram edificadas por pensadores com Roman Suszko (1968), Bas Van Fraassen (1969) e Edward Zalta (1991). No entanto, essas teorias diferem muito em pelo menos dois aspectos: as linguagens empregadas para fins de formalização (o que compromete a expressabilidade de cada teoria) e o suposto domínio de aplicação (de acordo com os interesses específicos de cada teórico). Portanto, nem mesmo do ponto de vista formal axiomático existe ainda uma visão unificada e suficientemente convincente para qualificar o que, afinal de contas, é um fato. Isso porque a própria noção de "fato" tem um caráter teórico, algo que parece ser inevitável na espécie humana. Afinal, assim como é humano contestar, também é humano teorizar e especular.

Uma rara visão que parece ser comum a todos os filósofos é que o conceito de "fato" está estreitamente ligado ao conceito de "linguagem". Isso porque tanto a filosofia especulativa quanto a filosofia sustentada por métodos formais da lógica-matemática qualificam e classificam fatos no contexto de alguma linguagem, seja natural ou formal. E como linguagens humanas limitam a expressabilidade de teorias ou até mesmo de visões meramente intuitivas, não há evidências de que tão cedo a espécie humana consiga entender o que é um fato. Logo, fatos são questionáveis. 

Quando um cientista defende uma teoria, ele se submete a críticas e revisões. E quando um cientista apresenta fatos, apenas expressa uma visão de aparente senso comum, nada além disso. 

Se uma pessoa pega uma pedra do chão e afirma que é um fato que ela tem uma pedra em sua mão, está apenas expressando linguisticamente uma experiência sensorial que eventualmente pode ser compartilhada com outras pessoas. Mas se ela apertar essa pedra com a própria mão, pode eventualmente perceber que aquele objeto não era de fato uma pedra, mas apenas esterco seco. Neste momento a pedra se esfarela.

Portanto, sempre tome muito cuidado com aqueles que fazem afirmações de forma convicta (por exemplo, "O que digo é um fato!"), especialmente quando demonstram aversão a críticas. Comumente são pessoas não confiáveis. Mas esta não confiabilidade radica principalmente na indisposição para o debate sério. Os cientistas mais confiáveis são aqueles que duvidam até de si mesmos. 

Ciência não é a busca pelo conforto da resposta, mas a insaciável sede pelo mundo das ideias. Se alguém tiver uma ideia melhor, que dê um passo à frente e fale. As comunidades científica e filosófica estão sedentas por ideias. 
___________
Observação: Acabo de saber que hoje mesmo foi publicada reportagem de Maurício Tuffani, no blog da Folha de São Paulo, sobre Design Inteligente no Brasil. Para acessar basta clicar aqui. 



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