O Discurso Matemático: Uma Proposta de Pesquisa
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O Discurso Matemático: Uma Proposta de Pesquisa



Nesta postagem apresento uma proposta de pesquisa que se mostra relevante tanto para matemáticos e lógicos quanto para filósofos da ciência e educadores da matemática.

Matemáticos profissionais quase sempre empregam dois tipos de linguagens radicalmente diferentes entre si, quando desenvolvem matemática: formais e naturais. 

As linguagens naturais são aquelas com as quais estamos todos melhor familiarizados em nosso dia-a-dia. Apesar do conceito de linguagem natural ser ainda vago, é este tipo de linguagem que seres humanos usam para fins de comunicação todos os dias. Elas correspondem àquilo que conhecemos como Português, Inglês, Francês, Russo, Italiano, entre outras. Mesmo linguagens artificiais como Esperanto e Latim Sem Flexão ainda se identificam como linguagens naturais, uma vez que elas apresentam atributos básicos que assim as caracterizam, como as dimensões sintática, semântica e pragmática. 

Já as linguagens formais foram criadas exclusivamente para o desenvolvimento da matemática e da lógica formal. Isso porque as linguagens naturais se mostram inadequadas para lidar com essas áreas do conhecimento. 

Neste sentido, a contraparte semântica de uma linguagem formal usual (como a linguagem do cálculo predicativo de primeira ordem) de forma alguma se refere a qualquer relação entre elementos linguísticos (como sequências de símbolos) e objetos do mundo real. Cito um exemplo no parágrafo abaixo.

A palavra "roda", em Português, pode se referir a um "objeto, peça ou máquina circular que se move ao redor de um eixo ou de seu centro, com diversos usos" (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Já o conceito de "circunferência", em geometria euclidiana, tem um caráter completamente diferente. Se a geometria euclidiana for fundamentada em uma linguagem formal, como aquela da teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel, uma circunferência é simplesmente um conjunto de pontos do plano euclidiano, que satisfaz a determinadas condições.

Portanto, uma circunferência não corresponde a objeto algum do mundo real, pelo menos do ponto de vista das concepções usuais sobre semântica em linguagens formais. 

Além disso, a dimensão pragmática das linguagens naturais leva em conta supostas intenções de falantes e ouvintes, bem como contextos sociais. Por exemplo, a frase "Você sabe que horas são?" pode ser interpretada como um pedido de informação ou como um convite para que alguém se retire. Portanto, nas linguagens naturais a dimensão pragmática afeta diretamente a contraparte semântica. Já nas linguagens formais esse tipo de dependência entre sequências de símbolos e intenções de falantes e ouvintes simplesmente não existe. Logo, o caráter pragmático das linguagens formais é completamente diferente do caráter pragmático de linguagens naturais.

Existe sim um ponto de contato entre linguagens naturais e linguagens formais: as chamadas gramáticas gerativas. Há décadas se sabe que certos aspectos das linguagens formais capturam porções significativas das linguagens naturais. Para ver detalhes sobre isso clique aqui. No entanto, é também sabido que uma mesma linguagem obtida a partir de uma gramática gerativa pode ser gerada por outras gramáticas distintas.

Mas, apesar das consideráveis diferenças entre linguagens naturais e formais, matemáticos comumente empregam ambas em suas atividades profissionais. Se um professor de matemática usar apenas linguagem natural para explicar a seus alunos um conteúdo matemático, ele está inevitavelmente fadado ao fracasso. Isso porque as linguagens naturais não conseguem capturar aspectos fundamentais da matemática, como o simples conceito de "circunferência" em geometria euclidiana. E se um professor de matemática usar apenas linguagens formais para lecionar, quase que inevitavelmente seus alunos não compreenderão coisa alguma. 

Mesmo um pesquisador ou cientista é obrigado a empregar elementos tanto de linguagem formal quanto de linguagem natural para reportar um resultado de pesquisa na forma de artigo ou livro. Essa obrigatoriedade ocorre simplesmente porque o mundo editorial científico é assim. Ou seja, estamos sempre fadados a ler afirmações como a que se segue: "Seja S um conjunto", a qual combina elementos da língua portuguesa com o conceito de "conjunto", típico de linguagens formais.

Feita esta breve introdução, levanto a seguinte questão: 


"Como concatenar o emprego de linguagens formais com o uso de linguagens naturais no estudo e no desenvolvimento da matemática?"

Esta é uma questão extremamente complicada para responder, uma vez que existem conflitos evidentes entre o discurso informal do matemático (escrito em linguagem natural) e as contas que ele efetivamente faz (escritas em linguagem formal). 

Já vi muitos matemáticos criticarem físicos por conta de conflitos entre o que estes escrevem e falam e o que efetivamente calculam. Mas matemáticos também cometem o mesmo pecado, apesar de o fazerem de forma muito diferente.

Neste texto foco um problema em especial: a formulação de certas definições em matemática. 

O papel de definições em matemática é simplesmente a introdução de terminologia nova a uma dada linguagem formal. Há diversas teorias da definição na literatura especializada. As mais conhecidas são as teorias de Lesniewski e de Tarski. Mas existem alguns pontos em comum entre todas essas teorias da definição. E um dos pontos mais importantes em comum é o seguinte: toda definição deve ser eliminável. Na prática isso significa que sempre (em qualquer fórmula ou sentença de uma dada teoria) deve ser possível substituir o termo definido (definiendum) por uma fórmula da linguagem que não faça referência a este termo (definiens). 

Agora consideremos a definição usual de limite de uma função real de uma variável real, como normalmente se apresenta na literatura de cálculo diferencial e integral ou mesmo análise matemática. 

É bem sabido que nem sempre existe o limite de uma função. E é igualmente conhecido que, quando existe, o limite é único. 

Pois bem. O fato de que nem sempre existe o limite significa que as alegadas definições para a operação de limite violam o critério de eliminabilidade (exigido para qualquer definição). Com efeito, se não existir o limite, não há como eliminar o símbolo "lim" de limite em uma fórmula como a que se segue abaixo:


lim_{x->0} 1/x = lim_{x->0} 2/x

Espero que o leitor perdoe os limitados recursos de notação matemática neste blog.

O fato do limite ser único, quando existe, garante que, na prática, as supostas definições para limite são simplesmente definições condicionais. Para compreender bem este problema recomendo que o leitor confira as regras para definições condicionais no livro Introduction to Logic, de Patrick Suppes (van Nostrand, 1966, página 165). 

Definições condicionais, apesar de violarem o critério de eliminabilidade, são muito usadas por matemáticos do mundo inteiro. 

Mas o problema da "definição" de limite fica mais complicado quando são introduzidos os limites envolvendo infinito. 

Quando se diz que o limite de uma função real é igual a infinito ou a menos infinito, esses dois não passam de casos particulares de limites que não existem. Com efeito, afirmar que o limite de uma função real é infinito (ou menos infinito) implica que não existe número real L tal que o limite seja igual a L. Porém, a recíproca desta última afirmação não é verdadeira.

E, para piorar a situação, o matemático chega a usar uma notação na qual se afirma que o limite de uma função é igual a infinito (ou menos infinito). Como infinito não é número real, essa notação tem sido responsável por muitas confusões entre alunos e até mesmo professores e pesquisadores. Anos atrás, por exemplo, recusei um artigo para publicação no Journal of Mathematical Physics justamente porque os autores tratavam o infinito como se fosse um número real, comprometendo o conteúdo do artigo inteiro.

Em função disso tudo, defendo a seguinte tese: a notação amplamente empregada de que um limite pode ser igual a infinito (menos infinito) espelha uma confusão que se faz entre linguagens formais da matemática e linguagens naturais empregadas pelo matemático. 

Quando o matemático afirma que o limite de uma função real é infinito, formalmente ele está apenas afirmando que as imagens da função crescem arbitrariamente, sob certas condições. No entanto, parece haver uma necessidade inerente de afirmar que, neste caso, o limite é igual a alguma coisa. E a melhor solução notacional encontrada foi o emprego do símbolo universal para infinito. Aquilo que deveria ser apenas uma façon de parler do matemático parece espelhar uma necessidade intrínseca de se afirmar que o limite infinito é igual a alguma coisa, como se o matemático quisesse identificar, ou rotular, o conceito de infinito (no sentido de uma função cujas imagens eventualmente crescem de forma arbitrária). 

Em suma, sabendo que a igualdade é uma relação binária entre termos (de uma linguagem formal) e sabendo que infinito definitivamente não é um termo, a notação usual para limites infinitos denuncia uma inconsistência entre o conceito formal de limite infinito e a notação empregada. Por isso retomo a pergunta: "Como concatenar o emprego de linguagens formais com o uso de linguagens naturais no estudo e no desenvolvimento da matemática?" Insisto nesta questão em função da tese que defendo: a de que matemáticos frequentemente se atrapalham quando tentam conciliar linguagens formais da matemática com a linguagem natural usada para reportar resultados matemáticos. E, assumindo que essa tese seja verdadeira, tal situação compromete seriamente o aprendizado de matemática, principalmente entre os mais inexperientes.

Para quem ainda não se convenceu desta confusão, cito dois exemplos bem mais simples de compreender:

1) Frequentemente profissionais da matemática usam expressões como "retas iguais", "números iguais" ou "comprimentos iguais". No entanto, nas linguagens formais mais usuais, um termo somente pode ser igual a ele mesmo. Portanto, jamais cabe o emprego de plural. Em formulações usuais da geometria euclidiana, é impossível existirem duas ou mais retas iguais. Um reta somente pode ser igual a ela mesma.

2) Centenas de livros de geometria apelam para o emprego de desenhos, como recurso didático. No entanto, conceitos geométricos como os de reta, segmento de reta, circunferência, ponto, plano, entre outros, jamais podem ser desenhados. Isso porque, nas formulações usuais, tais conceitos são meramente linguísticos, abstratos. E desenhos são objetos concretos. Simplesmente não é possível desenhar um ponto (no sentido, por exemplo, da formulação que David Hilbert apresenta em seu clássico Grundlagen der Geometrie) em uma folha de papel.

Retomando o problema da definição de limites infinitos, apresento a seguir uma proposta de pesquisa, conforme anunciado no primeiro parágrafo deste texto.

Os conflitos entre linguagens naturais e linguagens formais empregadas por matemáticos não repousam apenas nos méritos de tais linguagens. Se existe este conflito é porque provavelmente as linguagens formais hoje empregadas não estão resgatando as intuições compartilhadas por matemáticos do mundo todo. Como em matemática não se deve empregar a expressão "Você sabe o que eu quis dizer.", precisamos reavaliar as atuais linguagens formais. Ou seja, existe uma intuição a respeito de definições, as quais devem ser elimináveis. E matemáticos parecem pretender que o conceito de limite (envolvendo infinito ou não) possa ser definido. Portanto, é possível trabalhar com alguma linguagem formal que permita conciliar essas duas intuições? A resposta, acredito, é positiva.

Otávio Bueno e eu publicamos recentemente um artigo no qual foi desenvolvida uma nova teoria de conjuntos que privilegia o conceito de função sobre o de conjunto. Em outras palavras, conjuntos são casos especiais de funções (ao contrário do que ocorre em Zermelo-Fraenkel, na qual funções são casos especiais de conjuntos). Chamamos essa teoria de N. Para uma visão informal sobre N, clique aqui.

Originalmente nosso foco foi a formulação axiomática de teorias da física e da matemática. A teoria N oferece uma linguagem formal que naturalmente permite axiomatizações com menos conceitos primitivos para diversas teorias usuais da física e da matemática. 

Uma das características formais da teoria N é a presença de termos que não são conjuntos e nem mesmo classes próprias, apesar de conjuntos (no sentido usual de Zermelo-Fraenkel) estarem todos presentes em NNeste mesmo contexto, todas as funções da teoria N têm como domínio o universo de discurso de N. Essa característica em si permite, por exemplo, que um limite de uma função real possa ser definido como um caso especial de função, a qual sempre teria uma imagem. Ou seja, o limite de uma função (em N) sempre existiria! A única questão é se o limite é um número real ou não (isso se entendermos um número real como uma classe de equivalência de sequências de Cauchy de números racionais). No caso particular em que o matemático deseja expressar que as imagens de uma função real crescem arbitrariamente (por exemplo, na vizinhança de um número real) bastaria igualar o limite a um termo que não corresponda a qualquer conjunto ou classe. E tais termos ocorrem em abundância na teoria N. Portanto, em N é perfeitamente natural apresentar uma definição de fato para limite, sem ter que apelar para definições condicionais, como usualmente se faz. 

Análises semelhantes podem ser feitas para os conceitos de derivada (incluindo derivadas de ordem superior, parciais e direcionais), integrais (de Riemann, de Lebesgue, de Haar, entre outras) e até mesmo divisão por zero. Uma vez definida uma operação (no sentido intuitivo da palavra) jamais há a necessidade de se afirmar que eventualmente pode não existir um resultado para aquela operação, quando aplicada a certos termos. O que precisa ser qualificado é apenas a natureza da imagem de tais termos perante a aplicação da operação: se a imagem é um conjunto, uma classe ou um termo que não se enquadra em qualquer uma dessas categorias. E este universo de termos está disponível na teoria N, a qual é uma extensão muito natural da teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel (conforme Bueno e eu demonstramos em nosso artigo).

Sempre existiu uma distância muito grande entre lógicos e demais matemáticos. Aqui no Brasil, por exemplo, o CNPq classifica lógica como um ramo da álgebra. Isso por si só demonstra claramente que a comunidade matemática brasileira desconhece o que é lógica. E demonstra também que os lógicos brasileiros não conseguiram dialogar com os demais matemáticos de nosso país. Tal distância entre lógicos e demais matemáticos não existe apenas no Brasil. Um exemplo curioso é o livro Categories for the Working Mathematician, de Saunders MacLane. MacLane sempre foi conhecido como um lógico, criador da teoria de categorias (em parceria com Samuel Eilenberg). No entanto, sua mais conhecida obra tem o título que pode ser traduzido como "Categorias para o Matemático Profissional". Ou seja, implicitamente se assume que, por tradição, lógica encontra pouco interesse entre matemáticos. Afinal, quantos são os livros intitulados Calculus for the Working Mathematician?

Otávio Bueno e eu investimos na teoria N com o propósito de conciliar linguagens, aproximar profissionais de diferentes áreas. Se seremos bem sucedidos ou não, só o tempo responderá. 

Escrevo esta postagem porque eu mesmo (por motivos pessoais) não estou em condições da dar prosseguimento a demais estudos sobre a teoria N. Mas espero que alguém das novas gerações possa dar continuidade a este projeto que julgo importante. Tenha em mente, leitor, que o periódico Erkenntnis (onde publicamos nosso trabalho) impõe restrições sobre o tamanho máximo para qualquer artigo. E mesmo escrevendo um texto que conta com quase o dobro desta limitação, ainda assim o artigo foi aceito. Isso demonstra (pelo menos parcialmente) a relevância de nossa proposta.

Se alguém precisar de estímulo maior para abraçar um projeto como este, recomendo que leia a postagem sobre o desenvolvimento da matemática na Polônia. Um país intelectualmente pobre como o nosso pode seguir estratégias semelhantes àquelas adotadas pelos polacos, décadas atrás.



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