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Alguma vez você jogou Vish? Quer jogar?

Em seu famoso livro Science: Sense and Nonsense, o matemático dublinense John Lighton Synge descreve um fascinante jogo chamado Vish (abreviação para "círculo vicioso" em inglês). O jogo consiste em encontrar círculos viciosos no significado de palavras dicionarizadas. Vejamos o exemplo da palavra "homem".

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, "homem" é "mamífero da ordem dos primatas [...] caracterizado por ter cérebro volumoso, posição ereta, mãos preênseis, inteligência dotada da faculdade de abstração e generalização, e capacidade para produzir linguagem articulada". 

De acordo com o mesmo dicionário, "primata" é "ordem de mamíferos que compreende o homem, os macacos, os lêmures e formas relacionadas". Ou seja, "homem" foi definido a partir de "primata" e "primata" a partir de "homem". Temos assim uma circularidade. Já "linguagem" (termo usado na definição de homem) é colocada como "meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais", sendo que "signos" é plural de "signo" que, por sua vez, é sinônimo de "símbolo". "Símbolo", entre outras coisas, é uma "palavra ou imagem que designa outro objeto ou qualidade". E "palavra" é "unidade da língua escrita", sendo que "língua escrita" é uma "representação de natureza visual de uma língua". "Língua", por sua vez, é um "sistema de representação constituído por palavras". Nova circularidade! Ou seja, temos circularidades dentro de circularidades. 

Não é surpresa que um dicionário apresente circularidades para qualificar o significado de palavras e demais expressões. Afinal, dicionários devem qualificar o significado e o emprego de palavras, usando como referência as próprias palavras. Como linguagens naturais contam com uma quantia limitada de palavras e não adotam metodologias rigorosas de semântica, circularidades são simplesmente inevitáveis. E isso gera uma limitação cognitiva. Não é possível conhecer significados de palavras a partir de dicionários.

É neste momento que entram a matemática, a filosofia e a própria linguística.

Uma solução encontrada por filósofos para qualificar o significado de certos termos linguísticos é a noção de definição ostensiva. Filósofos reconheceram que o significado de certos termos empregados em linguagem natural não pode ser qualificado a partir da própria linguagem. Definições ostensivas se aplicam em inúmeras situações como, por exemplo, na qualificação de cores. Para qualificar o conceito de "vermelho" aponta-se objetos que são vermelhos. Definições ostensivas são dadas através de exemplos sensoriais. Tratam-se de uma correspondência entre linguagem e mundo real. Naturalmente, definições ostensivas apresentam consideráveis limitações cognitivas. Afinal, não são raros os exemplos de pessoas que não conseguem concordar entre si sobre a identificação de uma dada cor. Qualquer processo de generalização a partir de exemplos somente pode ser feito de forma indutiva e não dedutiva. Logo, sempre há riscos de múltiplas visões sobre um mesmo conceito definido ostensivamente.

Outra solução encontrada por filósofos é a definição operacional. Percy Williams Bridgman foi um físico que exerceu um papel filosófico importante ao propor definições operacionais em física. Segundo o operacionalismo de Bridgman, todo conceito é sinônimo de um conjunto de operações. E ele teve a pretensão de aplicar este princípio até mesmo em condições coloquiais, não necessariamente comprometidas com física teórica ou experimental. O peso de um objeto, por exemplo, é o número que aparece em uma balança quando este objeto é colocado sobre ela. Ou seja, uma operação é realizada (colocar um objeto sobre uma balança) para qualificar um conceito que se expressa linguisticamente (peso). As críticas às ideias de Bridgman são inúmeras, apontando diversas limitações em sua visão. Detalhes podem ser vistos aqui. Resumidamente, definições operacionais não esclarecem todo e qualquer significado.

Matemáticos adotaram uma estratégia muito diferente. Como matemáticos desenvolvem ideias sem compromisso com o mundo real, eles não poderiam seguir exemplos inspirados em problemas semânticos de linguagens naturais. Foi então que desenvolveram linguagens próprias, chamadas de linguagens formais. Em parceria com o método axiomático, linguagens formais são usadas de modo a se admitir que certos conceitos não são definidos e sequer definíveis, em contextos muito específicos. O significado intuitivo de conceitos não definíveis fica marcado pelas relações existentes entre esses conceitos através de axiomas (postulados).

Um dos problemas dessa estratégia é o fato de que o conceito de linguagem formal não pode ser qualificado a partir da própria linguagem formal, sem cair no velho problema da circularidade. Na prática, o que se faz é qualificar linguagem formal a partir de uma linguagem natural, como ocorre, por exemplo, no livro de Mendelson (página 34). Logo, essa estratégia fragiliza o alcance cognitivo de teorias formais. Sobre o que, afinal, estamos falando quando empregamos linguagens formais?

Outro problema do emprego de linguagens formais é o seu descomprometimento com o mundo real. No entanto, surpreendentemente as linguagens formais da matemática têm sido muito bem sucedidas para modelar fenômenos do mundo real, incluindo até mesmo linguagens naturais. Um exemplo é a teoria semântica de Richard Montague. Montague usa lógicas de ordem superior para explicar semântica em linguagens naturais. Resumidamente, usando linguagem natural para definir linguagem formal, emprega-se linguagem formal para compreender linguagem natural. Divertido, não?

Mas linguistas nem sempre apreciam o emprego de matemática. Muitos preferem visões diferentes, como aquelas que estabelecem de forma intuitiva relações entre semântica, sintática e pragmática. Semântica se refere ao estudo do significado de palavras. Sintática trata da maneira como palavras são ordenadas para formar frases e sentenças. E pragmática se refere ao estudo de contextos sociais nos quais palavras, frases e sentenças são usadas na prática e como esses contextos alteram significados. Para linguistas, não há como conhecer semântica sem levar em conta sintática e pragmática. No entanto, contextos sociais são muito variados, mesmo entre povos que supostamente compartilham a mesma língua. Portanto, temos novamente uma limitação cognitiva na compreensão sobre o que, afinal de contas, realmente sabemos, principalmente quando tentamos expor nossos conhecimentos através de linguagens naturais. 

Ou seja, se você entendeu o que está escrito nesta postagem, possivelmente compreendeu algo muito diferente do que eu gostaria de dizer. Mas será que eu sei o que eu gostaria de dizer?



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