Algumas Curiosidades Lógicas
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Algumas Curiosidades Lógicas




Nesta postagem não há tema novo algum. Tudo aqui se refere a assuntos muito conhecidos na literatura especializada. No entanto, como vejo inúmeros discursos e textos de matemática no Brasil que fazem consideráveis confusões de caráter lógico, acho interessante prestar alguns esclarecimentos. Então vou responder algumas das questões da página Você sabia que....


1. Todo axioma de qualquer teoria formal axiomática é demonstrável. Para provar isso precisamos qualificar os termos empregados. Uma teoria formal axiomática consiste de dois ingredientes fundamentais: lógica e linguagem. A linguagem é caracterizada por um vocabulário e fórmulas. Vocabulário é um conjunto de símbolos. Fórmulas são sequências (finitas ou não) de elementos do vocabulário. Existem "regras gramaticais", conhecidas como procedimentos efetivos, para determinar quais sequências de elementos do vocabulário são fórmulas. A lógica se estabelece a partir de axiomas e regras de inferência. Axiomas são certas fórmulas, escolhidas pelo próprio matemático, conforme a teoria que pretende desenvolver. E as regras de inferência são relações entre fórmulas que permitem inferir (ou deduzir) uma única fórmula a partir de outras. Por exemplo, no cálculo proposicional clássico, é usual se considerar como regra de inferência uma relação ternária entre fórmulas conhecida como Modus Ponens. Nesta regra, a partir das fórmulas "A implica B" e "A" pode-se inferir "B". Dizemos que "B" é consequência direta das fórmulas "A" e "A implica B". Ou seja, se temos A e sabemos que A implica em B, então podemos deduzir B. Já uma demonstração em uma teoria formal axiomática é uma sequência finita de fórmulas tal que cada fórmula desta sequência é um axioma da teoria ou uma consequência direta de fórmulas anteriores via o emprego de uma regra de inferência. E teorema é a última fórmula de uma demonstração. Isso significa que a primeira fórmula de qualquer demonstração em uma teoria formal axiomática é necessariamente um axioma, pois não há fórmulas anteriores à primeira. Logo, se uma demonstração tem apenas uma fórmula, esta necessariamente é um axioma. Como nesta sequência de uma só fórmula a última é também a primeira, então o axioma ali presente é um teorema. Uma vez que uma fórmula T é demonstrável se, e somente se, existir demonstração tal que T é teorema, podemos concluir que todo axioma é demonstrável. 


2. Todo teorema em uma teoria formal axiomática admite infinitas demonstrações. Usando as noções do parágrafo acima, considere que a sequência F1, F2, F3, ..., Fn é uma demonstração em uma teoria formal axiomática cujos axiomas são A1, A2, A3, .... Logo, F1 é um axioma e Fn é um teorema. Isso significa que podemos inserir um axioma na demonstração, entre duas fórmulas quaisquer ou como primeiro elemento, e continuaremos tendo uma demonstração do teorema Fn. Por exemplo, a sequência A1, A2, A1, A2, F1, F2, A3, F3, ..., Fn é também uma demonstração do teorema Fn. 


3. Existem definições demonstráveis. Existem certos tipos de definições, em teorias formais axiomáticas, conhecidas como definições ampliativas. Elas simplesmente ampliam a linguagem da teoria, no sentido de incorporar novos elementos ao vocabulário. Acontece que toda definição em matemática deve ser não-criativa. Porém, a prática matemática exige que definições possam ser usadas no processo de demonstração de teoremas. Para que isso ocorra, levando em conta o conceito de demonstração do item 1, o status lógico que essas definições ampliativas assumem é o mesmo de axiomas, se elas forem escritas como fórmulas da teoria. Como provamos acima que todo axioma é demonstrável, logo essas definições ampliativas escritas como fórmulas são também demonstráveis. Afinal, tais definições não apenas incorporam novos elementos à linguagem, como também acrescentam novos axiomas. No entanto, vale reforçar que tais novos axiomas não permitem demonstrar teoremas que antes não poderiam ser demonstrados (que é a condição de não-criatividade).


4. É errado afirmar que o conjunto dos números naturais é subconjunto do conjunto dos números reais. E é igualmente errado afirmar que o conjunto dos números naturais não é subconjunto do conjunto dos números reais. Isso porque existem muitas definições para tais conjuntos na literatura. Alguns autores afirmam que o conjunto dos números naturais é um par ordenado (N,S), onde N é um conjunto não vazio e S é uma operação entre conjuntos, conhecida como sucessor, de modo a satisfazer os conhecidos axiomas de Peano. Os elementos de N são chamados de números naturais. Neste contexto, o sucessor, por exemplo, de 3 é 4 (S(3) = 4). Outros autores afirmam que o corpo dos números reais é uma tripla ordenada (R,+,*), onde R é um conjunto não vazio, + (adição) é uma operação binária entre elementos de R e * (multiplicação) é outra operação binária em R, satisfazendo a uma série de axiomas. Os elementos de R são chamados de números reais. Como o par ordenado (N,S) não é subconjunto da tripla ordenada (R,+,*), então, neste caso, o conjunto dos números naturais não é subconjunto do corpo dos números reais. No entanto, é possível exibir um modelo A para (N,S) e um modelo B para (R,+,*) de modo que A é subconjunto de B. Se chamarmos A de conjunto dos números naturais e B de conjunto dos números reais, então podemos afirmar que o conjunto dos números naturais é subconjunto do conjunto dos números reais. Porém vale lembrar que tanto (N,S) quanto (R,+,*) admitem modelos tais que um não é subconjunto do outro. Ou seja, antes de afirmarmos que o conjunto dos números naturais é (ou não) subconjunto do conjunto dos números reais, precisamos qualificar o quê se entende por números naturais e o quê se entende por números reais. Mesmo no ensino médio essa qualificação se mostra necessária. Com efeito, o número real 2 pode ser representado pela fração 10/5. No entanto, o número natural 2 não pode ser representado por 10/5, pois usualmente não se define razão entre números naturais.


5. Um par ordenado pode ser igual a uma tripla ordenada. Em teorias de conjuntos existem muitas definições para os conceitos de par ordenado e tripla ordenada. A definição de Kuratowski (aplicável a teorias intuitivas e formais usuais), por exemplo, estabelece que o par ordenado (A,B) é igual ao par não-ordenado {{A},{A,B}}. Vale lembrar que um par não-ordenado {A,B} é um conjunto cujos elementos são iguais a A ou B. Neste sentido, o conjunto {A,B} é igual ao conjunto {B,A}, pois a ordem em que os elementos são explicitados na notação extensional é irrelevante. O leitor não pode esquecer que um conjunto é definido única e exclusivamente pelos seus elementos, independentemente de quaisquer outras informações. Logo, todo par não-ordenado {A,B} tem um ou dois elementos. Tem dois elementos se A for diferente de B, e apenas um elemento se A for igual a B. No caso em que A é diferente de B, podemos concluir que, apesar de {A,B} = {B,A}, (A,B) é necessariamente diferente de (B,A). Com efeito, {{A}, {A,B}} é diferente de {{B},{A,B}}. Seguindo as mesmas ideias de Kuratowski, podemos definir a tripla ordenada (A,B,C) como o par ordenado ((A,B),C). Neste contexto, a tripla ordenada (A,B,C) é igual ao par ordenado (D,E) se, e somente se, D = (A,B) e E = C.


As demais questões serão respondidas em postagens futuras.



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