Como Aprender Matemática
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Como Aprender Matemática




Aulas e livros de matemática frequentemente provocam reações negativas em alunos: sono, cansaço, desânimo, desorientação, ansiedade e até desespero. Este texto apresenta algumas noções básicas que, se forem seguidas, podem colaborar significativamente para o melhor rendimento daqueles que tentam compreender esta área do conhecimento tão necessária para a sociedade, mas que enfrentam grandes dificuldades de aprendizado. 

Ou seja, este texto não é adequado para indivíduos que desejam conhecer matemática com profundidade, mas para aqueles que vêem na matemática apenas uma ferramenta útil em suas vidas profissionais e escolares.

Se você deseja ser mais do que um mero aluno, ou seja, um estudante de matemática, divido as recomendações em duas categorias: técnicas e pessoais.


Recomendações Técnicas

Todas as teorias matemáticas são fundamentalmente caracterizadas por dois ingredientes: lógica e linguagem. A não compreensão de qualquer um desses ingredientes fatalmente impede o entendimento de qualquer teoria ou conceito matemático. Discutimos brevemente a seguir o que são esses ingredientes.

Linguagem

As linguagens empregadas em matemática são completamente diferentes das linguagens naturais, aquelas que usamos em nosso dia-a-dia simplesmente para dialogar com as pessoas (português, inglês, francês, russo etc.). A linguagem matemática mais usual é a da teoria intuitiva de conjuntos. Esta linguagem permite fundamentar praticamente todos os conceitos estudados nos ensinos fundamental e médio, bem como em estudos de graduação e na maioria dos cursos de pós-graduação. Para compreender bem a linguagem da teoria intuitiva de conjuntos, basta entender como ponto de partida as relações entre os conceitos de pertinência e igualdade entre conjuntos. A teoria intuitiva de conjuntos normalmente estabelece os conceitos de pertinência e igualdade de forma meramente intuitiva. Se dizemos que o conjunto X pertence ao conjunto Y, queremos dizer com isso que X é elemento de Y. E se dizemos que o conjunto X é igual ao conjunto Y, queremos dizer que cada elemento Z de X é também elemento de Y e que cada elemento Z de Y é também elemento de X. Além disso admitimos que existe um conjunto que não tem elemento algum, a saber, o conjunto vazio. Se essas ideias forem bem compreendidas, todos os demais conceitos sobre conjuntos podem ser entendidos a partir dessas duas relações. As relações de subconjunto, subconjunto próprio e equipotência são definidas a partir de pertinência e igualdade. As operações de união, interseção, complementar, diferença, diferença simétrica, produto cartesiano e potência são também definidas a partir de pertinência e igualdade. E os conceitos de par não ordenado, par ordenado, n-upla ordenada, relação, função, função sobrejetora, função injetora, função bijetora, conjunto finito, conjunto infinito, cardinalidade, número natural, número inteiro, número racional, número irracional, número real, número complexo, matriz, reta, circunferência, triângulo, entre muitos outros, podem novamente ser definidos apenas a partir de pertinência e igualdade. Ou seja, domine a teoria intuitiva de conjuntos e estará com um caminho muito bem definido para entender matemática.

Lógica

A contraparte lógica da matemática (estudada sem compromissos profundos com fundamentos) pode ser resumida a simples regras de inferência, também conhecidas como argumentos. O argumento mais usual em matemática é conhecido como Modus Ponens. A partir de uma afirmação "A" e uma condicional "se A então B" podemos inferir "B". Por exemplo, considere as duas afirmações a seguir: 

A: "T é um triângulo retângulo"

B: "Se T é um triângulo retângulo, então T admite um lado maior."

A partir dessas duas afirmações podemos concluir que "o triângulo retângulo T admite um lado maior." Frequentemente afirmações de autores de livros e professores mascaram essa forma de discurso. Um professor pode afirmar, por exemplo, que todo triângulo retângulo admite um lado maior. O que ele está dizendo com isso é simplesmente que "se T é um triângulo retângulo, então T admite um lado maior."

Outras formas de argumentos são também usuais em matemática, como a conhecida redução ao absurdo. Digamos, por exemplo, que um autor ou professor queira demonstrar uma tese T a partir de uma ou mais hipóteses H1, H2,..., Hn. E digamos que este profissional não consiga fazer tal demonstração apelando apenas a Modus Ponens. Ele pode empregar o seguinte recurso: supor que não vale T. Se este profissional, usando a seguir Modus Ponens, concluir que a negação da tese T implica necessariamente na violação de uma das hipóteses H1, H2,... , Hn, ele estará finalmente provando que vale a tese T. Isso porque é assumido implicitamente que só existem duas opções: ou vale T ou não vale T. Se a negação de T permite inferir uma afirmação que contradiz alguma das hipóteses, isso significa que a negação de T é incompatível com o conjunto de hipóteses. Portanto, só restou a possibilidade de que vale T. Eventualmente a negação de T pode não violar qualquer uma das hipóteses, mas pode contradizer algum fato bem conhecido sobre matemática. Novamente teremos uma contradição e só resta a possibilidade de valer a tese T. 

Considere como exemplo a tese de que a raiz quadrada de dois é irracional. Em outras palavras, considere o seguinte teorema: "Se X é igual à raiz quadrada de dois, então X é um número irracional." A demonstração mais usual parte da negação da tese, ou seja, assume-se que a raiz quadrada de dois é um número racional (entre os números reais, ser irracional significa não ser racional). Usando Modus Ponens algumas vezes é possível chegar a uma conclusão que contradiz o que se sabe em matemática a respeito da decomposição de números inteiros em fatores primos. Assumindo que essas propriedades sobre números inteiros estão corretas, chega-se à conclusão de que é falso afirmar que a raiz quadrada de dois é um número racional. Portanto, só restou a possibilidade deste número ser irracional.

É importante observar que não estou apelando para noções rigorosas de lógica. Do ponto de vista lógico-matemático estou cometendo várias impropriedades. Mas, para fins elementares de um conhecimento pragmático de matemática (incluindo muitos conteúdos estudados até mesmo em programas de pós-graduação) essa visão pode ser considerada como uma boa aproximação. 

Não tente interpretar argumentos lógico-matemáticos em situações normais do dia-a-dia. Também não tente interpretar de forma trivial elementos das linguagens das teorias intuitivas de conjuntos como objetos do mundo real. Você fracassará miseravelmente se fizer isso. As regras de inferência usadas em matemática pertencem exclusivamente ao mundo matemático, que é um domínio abstrato sem interpretação trivial no mundo real. O fato da matemática ser aplicada para modelar fenômenos reais é algo que ainda não é bem compreendido pela ciência. Ou seja, usar o conceito geométrico de circunferência para modelar uma roda de carro é algo que deve ser examinado com muito cuidado. Rodas de carro são objetos reais, palpáveis, mensuráveis. Circunferências, em geometria, são conjuntos de pontos. E conjuntos não têm forma, não são palpáveis e muito menos mensuráveis (no sentido físico da expressão). Quando se usa uma circunferência para modelar uma roda de carro, ou uma equação diferencial para modelar a dinâmica de uma população de bactérias, deve se ter em mente apenas o aspecto pragmático: funciona. Como funciona, ninguém sabe.


Recomendações Pessoais

A prática da matemática exige tanto atividades sociais quanto aquelas que são mais  introspectivas. 

1) Não se limite à leitura de um único livro para aprender matemática. Consulte várias referências e use seu senso crítico. Sempre tente reduzir conceitos matemáticos para uma linguagem de uma teoria intuitiva de conjuntos. Se um autor afirmar que uma matriz é uma tabela, entenda que este profissional fez uma afirmação tola. Afinal, o que é uma tabela? Tente reduzir o conceito de matriz a alguma noção que possa ser expressa em uma linguagem de teoria de conjuntos. É difícil encontrar na literatura, mas existem autores que definem conceitos matemáticos com rigor adequado. Uma matriz é uma função. E funções são definidas a partir de conjuntos, usando os conceitos de pertinência e igualdade.

2) Procure contato com matemáticos reconhecidamente competentes. Raramente são competentes aqueles que se limitam a reproduzir o que outros autores já escreveram. Como diz o ditado, quem sabe faz e quem não sabe ensina. Matemático, por definição, é aquele que, pelo menos uma vez na vida, foi o autor do enunciado e da demonstração de um teorema não trivial que foi publicado em um respeitado periódico especializado de circulação internacional. Use a internet para estabelecer este tipo de contato, se for necessário. Se ainda assim não conseguir, converse com o maior número possível de professores de matemática e novamente use seu senso crítico. Seja como for, jamais confie cegamente na palavra de um único profissional (o que inclui o administrador deste blog). Sempre empregue seu senso crítico.

3) Se for estudar em grupo, jamais se reúna com pessoas que não têm interesse real em troca de ideias matemáticas. Forme grupos de discussão com colegas que genuinamente contribuam para a melhora no aprendizado do grupo como um todo. 

4) A maior parte do aprendizado de matemática é um processo solitário, sem interferências externas, como música ou conversas paralelas. Se você estiver estudando um conteúdo e não compreendê-lo, insista até a exaustão. Se ainda assim não compreender, entenda que isso é normal. Matemática é assunto extremamente complicado para qualquer pessoa. São ignorantes aqueles que dizem o contrário. Descanse, tire um dia de folga e retorne aos estudos no dia seguinte. Sua capacidade de compreensão ficará cada vez mais aguçada se você alternar períodos de estudos intensos com períodos de descanso e lazer. 

5) Matemática é como uma amante. E amantes gostam de ser lembradas nos momentos mais inesperados. Mesmo que você tenha horários específicos para a realização de estudos, procure pensar sobre o que estudou nos dias anteriores quando estiver envolvido em atividades intelectualmente pouco exigentes: durante o banho, em uma caminhada ou enquanto estiver se bronzeando na praia. Apenas refletir sobre matemática, sem o compromisso formal de ler e escrever, é algo que pode ser prazeroso. 

6) Procure diversificar suas atividades intelectuais. Estudar apenas matemática não é recomendável. Ter contato com cultura em geral tem reflexos extremamente positivos em estudos mais específicos. Leia clássicos da literatura mundial, ouça e conheça música erudita, vá ao teatro e ao cinema, converse com amigos sobre artes, história e ciência. Matemática está intimamente conectada a praticamente todas as atividades culturais humanas. 

Para entender matemática é preciso praticar matemática. E mesmo a insistente tentativa de praticar matemática pode não apresentar resultados encorajadores. Não existe solução milagrosa para o enfrentamento de dificuldades de aprendizado de matemática que se dê com uma poção mágica ou uma postagem em um blog. Existem até mesmo quadros clínicos que praticamente proíbem uma pessoa de estudar esta ciência, como discalculia e certos tipos de epilepsia. Por isso, a última recomendação é a seguinte: procure contato permanente mais próximo com pessoas que apoiem seus sonhos. 



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