Mais um exemplo insano de ensino a distância
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Mais um exemplo insano de ensino a distância



Recentemente recebi um e-mail, de um colaborador de pesquisa, sobre o site Descomplica. Trata-se de uma iniciativa de ensino a distância, cuja meta é preparar pessoas para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e vestibulares. A proposta é "Descomplicar as matérias para os alunos que tem dificuldades e para aqueles que querem relembrar alguns assuntos." Sim, há vários erros de português no site. Mas não quero discutir aqui sobre o insistente desrespeito à língua oficial de nosso país. Quero apenas fazer uma lista de alguns dos graves problemas que encontrei em vídeos disponibilizados gratuitamente pelo Descomplica.

Falta de roteiros. Claramente os vídeos que examinei não seguem qualquer roteiro. Um exemplo que ilustra o que digo está neste vídeo sobre conjuntos. O apresentador afirma "Conjunto é. A primeira dificuldade que a gente tem em falar sobre esse tema [...]". Outro exemplo que ilustra a falta de roteiros para a gravação dos vídeos está aqui. O apresentador, diante de uma lousa, improvisa após três minutos e vinte e três segundos, apagando com uma das mãos parte do que já estava escrito com giz. Ou seja, esses vídeos são meras gravações de aulas típicas. Nada de novo oferecem, em termos de linguagem, para alunos que já bem conhecem as improvisações de professores em sala de aula. Este é um problema recorrente em muitos vídeos destinados ao ensino a distância espalhados em diferentes endereços da internet. Todo vídeo educativo sério precisa de roteiro! Isso é básico!

Erros e inconsistências. Conteúdos de matemática divulgados no site Descomplica estão gravemente errados e, por vezes, são até inconsistentes. Neste vídeo, por exemplo, o suposto professor que introduz a noção de função, confunde os elementos de um produto cartesiano entre dois conjuntos A e B com o conceito de relação, em teoria de conjuntos. Chega a afirmar que o número total de relações entre um conjunto A com três elementos e um outro conjunto B com três elementos é nove, sendo que o número total de possíveis relações entre esses dois conjuntos é a cardinalidade da potência de A cartesiano B, ou seja, 512. Com efeito, uma relação entre um conjunto A (domínio) e um conjunto B (co-domínio) é qualquer subconjunto do produto cartesiano entre A e B. Já neste vídeo o apresentador afirma que ponto, em geometria, não tem tamanho. Logo em seguida afirma que ponto tem tamanho zero. Afinal, ponto tem tamanho ou não? "Vermelho" é um conceito sobre o qual não faz sentido aplicar qualquer noção de tamanho. Neste sentido, vermelho não tem tamanho. Mas também não faz sentido dizer que o tamanho de vermelho é zero. Além disso, afirmar que ponto, em geometria, tem tamanho zero é um disparate. Essa ideia está em completo desacordo com a atual visão matemática sobre geometria.

Falta de seriedade. Neste vídeo um bando realmente ruidoso, desorientado e confuso faz piadas, danças e gestos que nada têm a ver com educação. No mesmo vídeo uma equação é escrita na lousa e um dos "profissionais" se refere a ela como equação de movimento uniforme, sem qualificar os termos empregados. Ou seja, além de passar a ideia de que matemática é uma atividade de palhaços, ainda sugere que somente palhaços dogmáticos podem compreender este ramo do conhecimento.

Falta transposição de conhecimentos. Neste vídeo o apresentador afirma que, no estudo sobre conjuntos, existem três noções primitivas: conjunto, elemento e pertinência. Obviamente ele demonstra jamais ter lido tratados originais sobre o tema, pois ignora o papel fundamental da noção de igualdade. Georg Cantor, criador da teoria de conjuntos, dizia que um conjunto é uma coleção de objetos distintos entre si. Ou seja, apesar de Cantor jamais ter definido o conceito de conjunto, ele deixou clara a importância da igualdade. Se x e y são objetos distintos, isso significa que não é o caso de x = y. Esta visão é fundamental para definir par ordenado como um caso particular de par não ordenado. E, sem a noção de par ordenado, não se pode qualificar relações e funções, pelo menos do ponto de vista conjuntista usual. O que se fez neste e em outros vídeos do site Descomplica foi uma mera repetição (repleta de ruídos) de erros persistentes em salas de aula de nosso país. Os criadores desses vídeos jamais se deram ao trabalho de transpor conhecimentos avançados de matemática para uma linguagem acessível a adolescentes. O apresentador também afirma que noções primitivas, em matemática, são simplesmente aceitas. Isso confere um caráter esotérico à matemática, algo que definitivamente nada tem a ver com esta ciência. Mais assustador ainda é o fato do apresentador afirmar que todo mundo sabe o que é um conjunto. Bem, ele mesmo não sabe! Se soubesse, não teria afirmado que não existe definição formal para conjunto. 

Doentio desestímulo à interdisciplinaridade. Neste vídeo sobre filósofos pré-socráticos a apresentadora afirma não gostar de Pitágoras. O argumento é realmente doentio. Ela diz que Pitágoras gostava de números. Como ela mesma confirma não gostar de números, portanto não gosta de Pitágoras. Segundo essa suposta professora de filosofia, números servem somente para numerologia e para contar dinheiro. Ou seja, temos aqui um vídeo de ensino a distância que promove não apenas o ignorante distanciamento entre matemática e filosofia como também procura ridicularizar um dos pensadores mais influentes da história. Os vídeos sobre matemática no site Descomplica são terríveis. Mas os vídeos sobre filosofia são de uma miséria intelectual como raras vezes testemunhei em toda a minha vida. Até mesmo o vocabulário empregado é chulo e, portanto, inadequado para fins de educação filosófica. 

Mais de dois anos atrás publiquei neste blog uma postagem sobre duas empresas que vendem teses de doutorado. O site original de uma delas já sumiu. O outro continua. Dei a ambas o direito de resposta neste blog. O mesmo farei com o Descomplica. No momento em que esta postagem for publicada, encaminharei este link para o serviço Fale Conosco, do Descomplica. Se algum leitor deste blog quiser colaborar com mais críticas ao Descomplica, peço que o faça. Não tive paciência para acompanhar todos os vídeos. Há uma quantia absurda de insanidades nos poucos que vi. 



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