A fragilidade de demonstrações em matemática
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A fragilidade de demonstrações em matemática



Na última terça-feira, dia 21, o professor Newton da Costa ministrou uma palestra para uma pequena turma minha de graduação. Ele falou sobre o conceito de demonstração em matemática. Faço aqui uma transcrição livre desta palestra, devidamente revisada pelo próprio professor Newton. 

Desejo a todos uma leitura crítica.
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Demonstração
transcrição livre de palestra de Newton da Costa

Quando Euclides de Alexandria utilizou o método axiomático para apresentar a geometria em seu célebre livro Elementos, ele deixou muito clara (para os padrões da época) a visão de que axiomas e postulados permitem a inferência dedutiva de novas afirmações sobre geometria, conhecidas como teoremas. Este é o mais antigo registro do uso do método axiomático em matemática.  

Desde então houve grandes avanços no método axiomático. Postulados e axiomas passaram a ser sinônimos e este método deixou de ser uma mera ferramenta didática no estudo de geometria para se tornar objeto de estudos dos próprios matemáticos em contextos muito mais amplos. Isso porque o conceito de demonstração, pelo menos em matemática, passou de mera intuição para algo que deveria ser compreendido com grande rigor. 

Grosso modo, uma teoria axiomática consiste de dois ingredientes: linguagem e lógica. A linguagem permite explicitar quais são os conceitos primitivos da teoria e quais são os seus princípios fundamentais, também conhecidos como axiomas. Quanto à lógica, ela se refere a regras de inferência e postulados específicos que permitem a dedução de novas afirmações (chamadas de teoremas) a partir dos axiomas. Neste contexto, uma demonstração é uma sequência de afirmações (ou fórmulas, no jargão usual da matemática) que atende a certas condições impostas pela lógica da teoria axiomática. E um teorema é a última fórmula de uma demonstração. 

Portanto, para qualificar com rigor os conceitos de demonstração e teorema, faz-se necessário o emprego do método axiomático. E, diante deste fato, o processo de formalização é imprescindível. 

Na prática matemáticos raramente são formais. Mas o estudo de lógica garante, entre outras coisas, que mesmo demonstrações feitas de forma meramente intuitiva (como ocorre na maioria das vezes em livros e mesmo em salas de aula) podem ser tratadas de forma rigorosa e formal. 

No entanto, o conceito de demonstração em matemática jamais ficou restrito ao domínio da mera formalização. Sempre foi necessária uma contraparte social, no sentido de que demonstrações possam ser compartilhadas entre matemáticos e no sentido de que matemáticos precisam sentir se uma dada demonstração está correta ou não. Apesar da noção de "sentir" ser vaga, é justamente a troca de ideias e críticas entre pares profissionais que legitima ou descarta uma ideia matemática, como uma demonstração. 

Mas a partir da segunda metade do século 20 esse quadro todo começou a mudar. 

Em 1976 Kenneth Appel e Wolfgang Haken "provaram" o célebre teorema das quatro cores utilizando um computador IBM 360. O enunciado não rigoroso do teorema é o seguinte: "Dado um mapa plano, dividido em regiões, bastam quatro cores para colori-lo de modo que regiões separadas por apenas uma fronteira não tenham a mesma cor." Apesar de existir uma infinidade de possíveis mapas planos, Kenneth e Haken reduziram todos os casos possíveis a apenas 1936 configurações redutíveis. E, após consumirem mais de mil horas de processamento, conseguiram "demonstrar" o teorema. 

Por que, neste contexto, colocar a palavra "demonstrar" entre aspas? O motivo é simples. Por um lado, até hoje nenhum ser humano conseguiu acompanhar a demonstração do teorema das quatro cores feita pela máquina, mesmo após a impressão de todas as milhares de páginas que exibem as supostas 1936 configurações que contemplem todos os possíveis mapas planos. E, por outro lado, programas de computador são naturalmente não confiáveis. Desde os primórdios da computação sabe-se que não é possível conceber um programa de computador secundário que verifique o desempenho de um outro programa executado por uma máquina.

Em 1996 uma versão mais simples da demonstração do teorema das quatro cores foi publicada. No entanto, os problemas da não verificabilidade humana e da não confiabilidade da máquina ainda persistem. 

Em 1997 William McCune publicou em Journal of Automated Reasoning um artigo sobre a demonstração da conjectura de Robbins feita por uma máquina. A conjectura estabelece que toda álgebra de Robbins é uma álgebra booleana. Este é um segundo exemplo de demonstração matemática feita originalmente por um computador e, neste caso, de forma praticamente acidental.

Mas outros exemplos aquecem ainda mais as discussões sobre o que, afinal, é uma demonstração em matemática. 

Em 1611 o grande astrônomo Johannes Kepler conjecturou que o mais denso empacotamento de esferas de mesmo tamanho é o cúbico ou hexagonal. E em 1997 Thomas Hales publicou uma série de relatórios, totalizando 250 páginas, nos quais uma abordagem completamente nova era apresentada para resolver a conjectura de Kepler. Hales fez extenso uso de um programa de computador! O prestigiado periódico Annals of Mathematics reuniu doze avaliadores para decidir se a prova apresentada por Hales estava correta. Após quatro anos de árduo trabalho, o parecer final foi de que os avaliadores estavam 99% certos de que não havia erros na demonstração sugerida por Hales.

Um exemplo fascinante sobre os limites da aplicabilidade da computação em matemática é a conjectura de Mertens. Esta estabelece que a função de Mertens é cotada pela raiz quadrada de seu argumento. E, mais importante ainda, se a conjectura de Mertens fosse verdadeira, ela implicaria na hipótese de Riemann, um dos problemas matemáticos do milênio. Para bilhões de valores do argumento da função de Mertens, programas de computador apenas apontavam para a validade da conjectura. No entanto, em 1985 Andrew Odlyzko e Herman te Riele apresentaram uma demonstração indireta da falsidade da conjectura de Mertens, usando justamente recursos computacionais. Hoje se sabe que deve existir pelo menos um contra-exemplo em valores de argumento acima de dez elevado a catorze. 

Mas o exemplo mais fascinante que permite questionar o conceito de demonstração em matemática nada tem a ver com computação. Trata-se da célebre classificação dos grupos simples finitos, a qual permite a classificação de todos os grupos finitos. A demonstração deste teorema de classificação está disponível na forma de dezenas de milhares de páginas publicadas em centenas de artigos em periódicos especializados ao longo de cerca de meio século. Nenhum algebrista até hoje conseguiu acompanhar esta extensa demonstração em sua totalidade. O melhor que se consegue é apenas a garantia de uns e de outros de que partes da demonstração estão corretas. Mas falta a visão holística da demonstração deste teorema de classificação, a qual parece ser inacessível à mente de uma só pessoa. 

Portanto, levando em conta que matemática é uma atividade social, fortemente dependente da interação entre profissionais desta área e fundamentalmente sustentada pelo conceito de demonstração, o que, afinal de contas, é uma demonstração?



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