Educação
Usando matemática para combater fanatismo
George Santayana é um dos nomes mais importantes da filosofia da primeira metade do século 20. O foco de sua obra reside nos processos criativos humanos em diferentes manifestações culturais, incluindo artes, filosofia, literatura, religião e ciências. Diferente de Russell, que percebia a religião como algo agressivamente nocivo à sociedade, Santayana entendia a religiosidade como uma postura que poderia ser benéfica.
Na visão de Santayana a ciência oferece explicações para fenômenos naturais. Já a poesia e a religião são celebrações festivas da vida humana. Se poesia ou religião forem confundidas com ciência, a arte da vida se perde junto com a beleza da poesia e da religião. Vale observar que Santayana não era religioso. Alguns até sugerem que ele era agnóstico. Isso demonstra claramente que Santayana tinha uma mente aberta para possíveis modos de percepção do mundo. Para este filósofo espanhol, radicado nos Estados Unidos, fanático é aquele que redobra seus esforços, perdendo de vista seus objetivos. E é esta visão que quero usar nesta postagem.
Uma postura consistente com o fanatismo discutido por Santayana é a adoção de padrões inflexíveis de julgamento, aliados à intolerância por ideias contrárias àquelas defendidas pelo fanático. De forma alguma isso sugere que o fanático seja uma pessoa que tenha a intenção de ser desonesta. Pelo contrário, a prática parece demonstrar que as ideias defendidas por um fanático são comumente expressas de uma maneira que jamais podem ser mostradas como falsas. Isto é, o fanático mergulha em um mundo que ignora a discussão crítica. Aliás, esta percepção sobre fanatismo já foi colocada por Neil Postman, um profissional da educação que defendeu ideias bastante radicais (fanáticas?).
Geralmente, quando se fala em fanatismo, pensa-se em apenas dois aspectos culturais: política e religião. No entanto, defendo aqui que o fanatismo se manifesta até mesmo em atividades culturais que deveriam (por natureza própria) evitá-lo: ciência, filosofia e educação. Neste texto quero dar especial ênfase à ciência e à educação, usando como exemplo crítico a matemática.
Quando um professor de matemática defende que é impossível dividir um número real por zero, ele está sendo fanático. Isso porque redobra seus esforços (reprovando o aluno que pensa diferente) para impor um preconceito, perdendo de vista seu objetivo. Qual deveria ser o objetivo de um professor de matemática? Ensinar e educar matemática! Até mesmo o excelente site Wolfram erra gravemente, ao discutir sobre divisão por zero, ignorando discussões extremamente pertinentes promovidas em lógica. Veja, por exemplo, a página 163 deste livro.
Quando um professor de matemática defende a inquestionabilidade da demonstração por redução ao absurdo, ele está sendo fanático. Isso porque redobra seus esforços (afirmando que matemática é uma ciência exata) para impor um preconceito, perdendo de vista seu objetivo. Afinal, matemática não se faz de uma única maneira. Existem múltiplas posturas filosóficas sobre como matemática deve ser desenvolvida. A lógica intuicionista de Brower, por exemplo, rejeita o princípio do terceiro excluído, fundamental para demonstrações por redução ao absurdo (do ponto de vista da lógica clássica). Brower era contrário ao preconceito de que todo problema matemático admite solução. E esta visão filosófica se confirmou mais de duas décadas depois, com os resultados de incompletude de Gödel.
Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Mas creio que isso já basta para o próximo passo desta postagem.
Matemática lida com conceitos abstratos, tratados por meio de linguagens e lógicas rigorosamente definidas. Matemática, portanto, lida com universos de discurso supostamente controlados por aqueles que a concebem e desenvolvem. No entanto, os próprios matemáticos perceberam que este ramo do conhecimento é extraordinariamente aberto a visões filosóficas conflitantes entre si. Ou seja, por mais que se tente controlar o ambiente matemático com rigor e formalismo, jamais estamos livres da possibilidade de trabalharmos com novos universos, novas matemáticas. Exemplos disso são inúmeros, incluindo principalmente as geometrias não-euclidianas (que romperam com a milenar visão euclidiana sobre geometria) e as lógicas paraconsistentes (que evidenciaram um novo universo de lógicas nas quais contradições não implicam na trivialização de teorias). E mesmo que o matemático tenha a pretensão de ignorar visões alternativas sobre matemática, eventualmente até ele é pego de surpresa em seu próprio universo de estudos. Um exemplo bem conhecido é a postura formalista de Hilbert, que foi abalada pelo segundo teorema de incompletude de Gödel (apesar de alguns matemáticos ainda discordarem disso). Ou seja, matemática não é uma ciência tão exata assim. Ela é tão digna de discussões e controvérsias quanto qualquer outro ramo do conhecimento, apesar de suas controvérsias terem uma natureza ideológica diferente do que normalmente se encontra em política e religião. Usualmente pessoas não matam em nome da matemática. Mas matam em nome da política e da religião. Por quê?
Já um cientista político jamais pode ter a pretensão de lidar com ambientes controlados, como eventualmente o matemático sonha. Um cientista pode estudar matemática sem se preocupar com aspectos de ordem psicológica, social ou até mesmo prática. Já um cientista político não pode ignorar aspectos de caráter interdisciplinar. E, especialmente, não pode deixar de lado fenômenos sociais do mundo real. Neste sentido, a compreensão de política exige uma responsabilidade muito maior do que aquela demandada por uma compreensão da matemática. Tanto é verdade que hoje já se sabe que somente grupos de pessoas treinadas são capazes de fazer previsões políticas precisas. Cientistas políticos e demais especialistas, sozinhos, são incompetentes para prever o futuro político de nações, segundo pesquisas recentes de Philip Tetlock.
Já religião toca em aspectos muito mais sutis, supostamente intangíveis pela racionalidade. Enquanto um matemático e um cientista político podem e devem apelar à racionalidade (sob diferentes formas), a fé religiosa não está compromissada com qualquer forma de razão, nos sentidos usuais do termo. Portanto, refletir de maneira responsável e aberta sobre religião é um desafio realmente monumental.
Agora podemos tratar da questão proposta no título da postagem. Ciência e educação devem caminhar juntas. Cabe à ciência, entre outras coisas, a compreensão e a respectiva divulgação dos processos educacionais e cabe à educação o acompanhamento da ciência. Não se pode lecionar matemática, por exemplo, sem sintonia com a matemática que hoje se pratica. Se alunos forem expostos às incertezas e à multiplicidade de ideias matemáticas, eles deverão perceber que mesmo em universos idealizados não se tem controle absoluto sobre o que se faz. E se em universos sonhados por matemáticos nem sempre sabemos o que estamos fazendo, quem dirá em outras atividades culturais, como política e religião.
Um mundo aberto a incertezas é um mundo livre de fanatismos. É claro que isso soa como uma utopia. Mas, assim como religiosos buscam o contato com Deus, é natural que busquemos idealizações. O sonho por um mundo livre de ideologias é também uma ideologia. E é justamente com essa contradição que precisamos aprender a lidar. Um professor que impõe conhecimentos supostamente matemáticos está apenas contribuindo para uma sensação gradualmente inserida de que há verdades inquestionáveis. Impossibilidade de dividir por zero não é uma verdade inquestionável. Usualmente não se define divisão por zero (no escopo dos números reais) por mera convenção. Deus não é uma verdade inquestionável, assim como Deus não é uma falsidade irrefutável. Democracia não é infalível, assim como ditadura não é inevitavelmente desastrosa.
Defender ideologias é natural e fundamental. Mas quando a ideologia se torna irrefutável, com base em argumentos dela mesma, temos aqui a possibilidade muito real de puro fanatismo. E fanatismo é um fenômeno social que isola pessoas ou grupos de pessoas. Fanatismo desestabiliza sociedades.
Ao contrário do que dita o senso comum, o fanatismo nem sempre está associado a entusiasmo exagerado, mas pode se manifestar também por um zelo irracional ou por simples noções extravagantes a respeito de um assunto. O zelo de um professor de matemática por um conteúdo específico (como a impossibilidade de dividir por zero) pode ser perigosamente confundido com uma atitude racional. Afinal, o professor de matemática usa o argumento de que o número real r não pode ser dividido por zero porque é impossível exibir um número real s tal que s vezes zero resulte em r. Com efeito, s vezes zero é sempre zero. Mas esta estratégia de argumentação ignora a visão da teoria de definições. É neste momento que o professor jamais olha para fora do conteúdo imposto, limitando sua visão e tornando-se um fanático. Não é necessariamente um fanático que grita e briga. Pode ser um fanático que apenas ri do aluno questionador, sugerindo que este seja um mero ignorante. Mas ainda é um fanático.
Nossas escolas, com suas lições de respostas definitivas para questões de múltiplas escolhas, apenas contaminam o senso crítico de nossos jovens. E jovens sem senso crítico se transformam em adultos sem senso crítico. Se existe a ideologia de transformar o Brasil em uma democracia, este sonho jamais será realizado com o atual sistema de ensino. E um ótimo ponto de partida para começar qualquer revolução no ensino brasileiro é a matemática.
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