Educação
Como confiar em argumentos
Em função da recente discussão sobre a ilusão da previsibilidade, o leitor Tiago Leski fez algumas perguntas em mensagem pessoal, as quais ele gentilmente permitiu que eu publicasse neste blog. Esta é uma versão resumida de sua mensagem: "Se você não tivesse fornecido a fórmula e o algoritmo a ser seguido, seria impossível responder qual é o próximo número [na sequência 01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08]? Mas na maioria das vezes aquele que nos pergunta quer a resposta mais simples, ou seja, já que eu desconhecia os passos, seria correto dizer que o próximo número era 09."
As dúvidas apontadas acima são pertinentes e bastante comuns, apesar de muita gente ser dominada pelo medo de questionar. Creio que todas essas dúvidas podem ser resumidas a uma única questão: O que é um argumento?Se compreendi bem o questionamento de Tiago Leski, ele está mais interessado em justificativas do que em respostas. Não basta responder qual é o próximo número na sequência 01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08. É preciso justificar a resposta.
Não existe uma definição suficientemente qualificada para o conceito de argumento, aplicável para toda e qualquer situação em linguagens naturais e/ou formais. Menos ainda se sabe o que é um argumento bom ou válido, a não ser em certos contextos muito restritos. O que existe é uma noção intuitiva para este polêmico conceito. Um argumento é, grosso modo, uma série de raciocínios apresentados para suportar uma proposição. Tal proposição é chamada de conclusão do argumento. É claro que a série de raciocínios pode eventualmente ser unitária: um único raciocínio.
O leitor pode, naturalmente, protestar sobre essa noção de argumento. Afinal, o que é um raciocínio? O que é uma proposição? O que significa "apresentar um raciocínio"? Por isso mesmo insisto neste ponto: a única visão hoje existente para o conceito de argumento (em seu mais amplo sentido possível) é meramente intuitiva, conforme apresentada acima.
Como intuições comumente são distintas entre diferentes pessoas, podemos apelar para o recurso didático da classificação.
Usualmente argumentos são classificados em duas categorias: argumentos livres de risco e argumentos arriscados.
Argumentos livres de risco são muito bem fundamentados em lógica formal. Em certas teorias formais da matemática, um argumento é simplesmente uma relação n-ária entre fórmulas (uma relação aplicável sobre n fórmulas), de modo que a última fórmula nesta relação é única. Daí o uso da expressão "livre de risco". Não existe ambiguidade na conclusão! O argumento livre de risco mais empregado em lógica formal é o célebre Modus Ponens. Modus Ponens é uma relação ternária aplicácel a triplas ordenadas de fórmulas do seguinte tipo: (A, A implica em B, B), sendo que A e B denotam fórmulas.
Vale observar que não estou qualificando o conceito de fórmula. Esta noção depende da teoria formal que está sendo adotada. Para esclarecer a respeito deste assunto recomendo o excelente Introduction to Mathematical Logic, de Elliot Mendelson ou o meu livro O que é um Axioma.
Modus Ponens simplesmente estabelece que a fórmula "B" é uma consequência direta das fórmulas "A" e "A implica em B".
Alguns autores cometem a perigosa audácia de aplicar Modus Ponens em linguagens naturais. Por exemplo: "Se chuto pedra (A) e se chutar pedra implica que meu pé dói (A implica em B), então posso concluir que meu pé dói (B)."
No entanto, a lógica formal permite a concepção de argumentos que não são aplicáveis ao mundo real, pelo menos a princípio.
Do ponto de vista meramente matemático, nada impede que seja criado (em uma dada teoria formal) um argumento ternário do seguinte tipo: (A, A implica em B, não B), onde A e B são fórmulas.
Se traduzirmos esse tipo de argumento para uma linguagem natural como o português, de forma análoga ao que foi feito anteriormente, teremos a seguinte situação: "Se chuto pedra (A) e se chutar pedra implica que meu pé dói (A implica em B), então posso concluir que meu pé não dói (não B)."
Do ponto de vista meramente intuitivo, existe a tendência natural das pessoas a considerar que o argumento acima não é válido. Isso ocorre porque a noção de argumento em lógica formal não corresponde a noções intuitivas usuais sobre o conceito de argumento. Isso por si só já explica uma série de confusões gigantescas que ocorrem em inúmeras discussões (incluindo algumas que ocorrem neste blog).
Aquele que quiser aplicar o argumento acima ao mundo real, que chute a pedra e veja o que acontece. É uma forma dolorosa de aprender matemática, mas eventualmente eficaz.
São muito comuns as pessoas que estudam lógica de maneira meramente superficial e, a partir disso, tentam impor suas crenças pessoais como certezas inquestionáveis. Uma das mais importantes lições que a ciência e a filosofia de hoje nos ensinaram é que qualquer argumento deve ser analisado de forma profundamente crítica. Não existe terreno firme o bastante na ciência e na filosofia que garanta certeza sobre qualquer ideia não trivial.
Argumentos livres de risco da lógica formal, no entanto, frequentemente são estendidos para argumentações expressas em linguagens naturais. Isso ocorre por conta da aceitação social de tais argumentos. Mas inferir certezas a partir de aceitação social é um passo simplesmente irresponsável.
Já os argumentos arriscados são comuns no estudo de lógicas indutivas. A maneira usual para se lidar com eles é através do uso de teoria de probabilidades. Neste blog há uma curiosa aplicação de argumentos arriscados aqui.
Na lógica formal clássica, argumentos livres de risco usuais permitem obter conclusões verdadeiras a partir de fórmulas verdadeiras. Já nas lógicas indutivas usuais, uma conclusão pode ser falsa mesmo a partir de fórmulas verdadeiras. Daí o emprego da expressão "argumentos arriscados".
Há muitos exemplos clássicos de argumentos arriscados. A teoria do Big Bang (sobre a origem do universo) é suportada por fatos experimentais (considerados, portanto, como verdades). No entanto, a teoria em si pode estar simplesmente errada (falsa).
Existem também evidências muito fortes de que o ato de fumar pode causar câncer. No entanto, a medicina ainda não respondeu à seguinte questão: as pessoas predispostas ao vício à nicotina são também predispostas ao câncer? Isso remete ao problema mais importante da medicina de hoje: causalidade. Ou seja, do ponto de vista indutivo, quais fatores podem ser definidos como as causas de determinadas doenças?
Quando uma pessoa atravessa uma rua, ela simplesmente aplica um argumento indutivo em seu processo de decisão. Não há como deduzir, sem risco algum, qual é o momento certo para atravessar uma rua sem ser atropelado.
O grande filósofo Charles Sanders Peirce (1839-1914) identificou ainda um segundo tipo de argumento de risco, o qual ele chamou de abdução. Mas este é um tema realmente complexo que prefiro discutir em algum outro momento.
Agora finalmente podemos responder (assim espero) às questões apresentadas pelo leitor Tiago Leski.
Na postagem sobre a ilusão da previsibilidade, levantamos a seguinte questão (de natureza muito comum em testes de QI): "Na sequência 01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, qual é o próximo número?"
Do ponto de vista meramente dedutivo (ou seja, sustentado em argumentos sem risco) não há como responder a esta questão, se apelarmos aos argumentos usuais discutidos na literatura especializada. E do ponto de vista indutivo (sustentado em argumentos de risco) qualquer resposta está sujeita a críticas.
É altamente questionável se testes de QI medem inteligência. Isso porque precisamos primeiramente qualificar o que, afinal de contas, é inteligência.
Se assumirmos que inteligência se reflete na forma de senso crítico, a pessoa mais inteligente provavelmente pegaria as folhas do teste de QI e as jogaria na lata de lixo mais próxima. Testes de QI, como inúmeras avaliações, medem a capacidade de adaptação pessoal àquele instrumento avaliativo. Se há alguma outra medição neste processo, é muito difícil responder. E especificamente os testes de QI, parecem meras tolices, justamente por ignorarem as discussões acima mencionadas.
O fato é que vivemos em um mundo complexo demais, habitado por criaturas primitivas demais, para garantir certezas sobre qualquer assunto.
Mais importante do que avaliar a inteligência de uma pessoa é perceber que vivemos em sociedade. Astrologia e eugenia já foram socialmente aceitas como ciência. Hoje não são.
Ou seja, existe uma intensa dinâmica social desde os primórdios da civilização. E o elemento dinâmico que melhor define os grandes avanços científicos, filosóficos, culturais e artísticos é a prática do senso crítico: sempre devemos questionar aquilo que se crê já estabelecido.
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