Quem realmente merece educação?
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Quem realmente merece educação?




Mais uma consequência do artigo publicado este mês em Scientific American Brasil. 

Recentemente um leitor deste blog levantou algumas questões interessantes sobre massificação do ensino, progressão continuada, banalização de graduações e, principalmente, a obrigatoriedade do ensino. Afirmei que escreveria uma postagem sobre esses temas e agora estou finalmente cumprindo a promessa.

1) Obrigatoriedade do ensino. Existem aqueles que acreditam na existência de pessoas que não têm interesse em estudar. Não conheço quaisquer levantamentos estatísticos sérios que confirmem esta impressão pessoal muito comum. Como determinar se uma pessoa gosta ou não de estudar? Certamente não podemos sustentar qualquer julgamento a partir do rendimento escolar de crianças e adolescentes. A massificação do ensino permite pouco espaço para uma análise criteriosa sobre o perfil de cada aluno de uma instituição de ensino. E mesmo que fosse implementado acompanhamento individual promovido por especialistas em psicologia cognitiva e educadores, vale lembrar que qualquer profissional está sujeito a errar gravemente em suas conclusões, por mais qualificado, centrado e experiente que seja. Cito um exemplo pessoal que ilustra uma ideia aplicável coletivamente. Quando meu filho tinha onze ou doze anos, eu o intimei: ele deveria buscar por algo que o motivasse, para o seu futuro profissional. O garoto ficou assustado, mas pensou a respeito. Decidiu que estudaria física. Obviamente percebi que ele queria me impressionar, pois física era a minha área de atuação. Meses se passaram e, então, perguntei: você estudou alguma coisa sobre física? Ele respondeu negativamente. Portanto, física não era a sua paixão. Desapontado, mas instigado, ele decidiu que estudaria mecatrônica. Isso porque o garoto ficava intrigado com robôs. Meses se passaram e novamente não demonstrou iniciativa nesta área. Após outro longo período de tempo, ele finalmente percebeu algo óbvio mas importante. Desde cedo meu filho sempre foi fascinado por música. Aos dois anos já cantava de forma entusiasmada o Rock das Aranhas e Sociedade Alternativa de Raul Seixas. Resultado: hoje ele é professor de música (que leciona até mesmo para outros professores) e está batalhando para seguir uma carreira séria nesta arte tão ignorada no Brasil e ofuscada por barbaridades sonoras que assustariam até mesmo o radical Adorno. Meu filho estuda música naturalmente, sem depender da pressão de qualquer instituição. Fez cursos em Curitiba e São Paulo e é também autodidata. O fato de uma criança ou um adolescente não estudar o que uma instituição espera que seja estudado não significa que essa pessoa não tenha interesse em estudos. Daí a fundamental importância da família. Um exemplo icônico é a infância do rei do rock, Elvis Presley. Aos onze anos ele ganhou de presente de aniversário um violão. Sua mãe queria que o filho desistisse de uma espingarda. Como diz a máxima popular, educação começa em casa. Por outro lado, a obrigatoriedade da educação formal para crianças e adolescentes certamente deve existir. É obrigação do Estado fornecer condições para que crianças e jovens possam estudar. E estudos formais certamente devem ser abrangentes. Se crianças e adolescentes não demonstram interesse por estudos formais, o acompanhamento individual é fundamental. Essa obrigatoriedade naturalmente apresenta falhas e dificilmente isso mudará algum dia. Mas todos têm o direito aos conhecimentos que definem as sociedades humanas. Se crianças e adolescentes assumem atitudes hostis contra a educação (algo cada vez mais frequente em salas de aula brasileiras) a responsabilidade não pode ser atribuída única e exclusivamente aos discentes. Mesmo na universidade tive centenas de alunos que pareciam ter sido criados por javalis. A boçalidade é assustadoramente presente no Brasil. Sem uma unidade familiar fortemente comprometida com ciência, tecnologia e cultura, não há milagres que possam ser operados por professores. 

2) Massificação do ensino. A massificação do ensino é uma realidade inevitável, levando em conta o direito inalienável à educação em um mundo com bilhões de habitantes. A melhor forma para combater os efeitos nefastos dessa massificação é novamente através da família. É obrigação dos responsáveis legais de qualquer criança ou adolescente o acompanhamento dos estudos formais e o apoio intelectual. Pediatras usualmente recomendam que recém nascidos tenham estímulos sensoriais. Um simples passeio no parque é uma experiência extremamente rica para um bebê, mesmo quando ele está dormindo. Analogamente, crianças e adolescentes precisam de estímulos intelectuais. Esses estímulos devem ser abrangentes, porém jamais dogmáticos: livros, revistas, filmes, teatro, museus, música, artes plásticas, sítios históricos, diálogos com profissionais e demais interessados por cultura geral, conversas com amigos e familiares, desafios, jogos, atividades esportivas etc. Diante de variedade, o direito à escolha pode se manifestar mais facilmente. 

3) Progressão continuada. Existem aqueles que creem que a reprovação na escola é um trauma para uma criança ou adolescente. Creio ser muito difícil argumentar contra esta tese. No entanto, esta premissa é frequentemente usada para sustentar a progressão continuada, ou seja, o estudo formal sem reprovações. Esta é uma decisão irresponsável. A educação deve ter o papel, entre outros, de preparar cidadãos para o mundo real. E o mundo real está repleto de situações sujeitas a reprovações. São situações que estão completamente fora do alcance de pedagogos e educadores, quando seus ex-pupilos se tornam adultos. O trauma provocado por uma reprovação na escola pode ter o importante papel de formação de caráter, se for devidamente acompanhado pelos responsáveis legais da criança e do adolescente. Esta formação de caráter é fundamental para a vida adulta futura. E esta tese é muito bem fundamentada por estudos sérios de psicologia, algo raro no Brasil. 

4) Banalização do ensino superior. Este é um assunto consideravelmente mais polêmico. Se compararmos o impacto social das descobertas científicas que renderam o Prêmio Nobel na primeira metade do século 20, perceberemos que a partir da década de 1970 a qualidade da ciência mundial tem diminuído consideravelmente. Coincidência ou não, isso ocorreu logo depois do período em que o acesso a universidades se tornou mais democrático. Verdadeiras massas da população começaram a frequentar universidades. E vagas em universidades têm aumentado no mundo todo. As melhores universidades do mundo são, em geral, de pequeno porte e extremamente seletivas. No entanto, mesmo essas instituições têm sofrido com a democratização do ensino superior. Um exemplo recente é o programa Ciência sem Fronteiras do governo brasileiro. Quatro mil bolsas foram ofertadas, mas menos da metade foi utilizada. Isso ocorreu simplesmente porque a maioria dos candidatos foi reprovada em exames de inglês. Instituições estrangeiras de excelente reputação já admitem a possibilidade de serem menos exigentes nesta fundamental condição para admissão. Desta forma, pessoas menos qualificadas terão a oportunidade de estudar em instituições que, até pouco tempo atrás, eram mais seletivas. O que se pode esperar disso tudo? Difícil prever. É possível que os estudantes brasileiros do programa Ciência sem Fronteiras consigam aprender algo que se mostre importante para o futuro do Brasil. Mas é igualmente possível que a tolerância à mediocridade se torne mais presente não apenas no Brasil, mas no resto do mundo também. Os comentários feitos acima sobre obrigatoriedade do ensino não se aplicam a cursos de graduação. Uma graduação em curso superior deveria ser um ritual para a entrada na vida adulta de futuros profissionais que efetivamente resolvem problemas fundamentais da sociedade. Um jovem que realiza uma graduação deveria se transformar em um adulto da matemática, da medicina, da psicologia, da arquitetura, da sociologia, das artes e de demais áreas acadêmicas. E adultos supostamente têm direito à escolha. 

Fala-se muito na desvalorização do professor em nosso país. E usualmente a responsabilidade dessa desvalorização é jogada sobre os ombros de governos estaduais e federal, os quais obviamente têm a sua responsabilidade. No entanto, os próprios professores contribuem para essa desvalorização. Movimentos de greve são o exemplo mais marcante, sempre exigindo tratamento igualitário para todos. Este comportamento é lamentavelmente infantil e indigno de respeito. Professores devem sustentar suas reivindicações a partir de resultados. E resultados distintos são obtidos por indivíduos com diferentes perfis profissionais. 

Aproveito a oportunidade para avisar que um novo artigo será publicado em edição futura de Scientific American Brasil, ainda este ano. Este novo documento está sendo realizado em parceria com dois importantes cientistas brasileiros e apresenta uma abordagem diferente do anterior a respeito da vida acadêmica brasileira.



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