Privatizar a USP não é a solução
Educação

Privatizar a USP não é a solução



A matéria de capa da edição de 23 de julho deste ano da revista Exame é a Kroton, que se tornou recentemente a maior empresa de educação do mundo. Detalhe: a Kroton é um grupo de ensino brasileiro! Fortemente recomendo aos leitores deste blog que leiam a excelente reportagem da última edição de Exame, que aborda não apenas os aspectos administrativos e econômicos da Kroton, mas também o produto vendido por este gigantesco grupo: educação.

O Brasil, entre as grandes economias, é um dos países com menores taxas de jovens em universidades (13%). Além disso, 38% dos jovens que se formam em cursos superiores de nossa nação são incapazes de interpretar textos ou de fazer contas complexas. E, para piorar, há enorme e crescente demanda entre empregadores, para áreas do conhecimento que não têm sido devidamente estimuladas em nosso país, como engenharias. Portanto, ainda existe muito espaço no mercado de trabalho para instituições privadas de ensino superior. No entanto, mesmo a gigantesca Kroton não tem condições de competir com instituições públicas como a Universidade de São Paulo (USP) ou a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em termos de qualidade de ensino. A UFRGS, por exemplo, alcançou uma média de 428 pontos no Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) de 2012, que é quase o dobro da média de instituições privadas. Mas esta é a realidade de hoje. E no futuro?

Para completar este cenário temos a crise na USP, já discutida neste blog em uma brilhante análise promovida pelo professor Carlos de Brito Pereira. E, como já era de se esperar, surgem aqueles que aproveitam o momento para defender a privatização do ensino superior público de nosso país. E o exemplo da Kroton cabe como uma luva nesta discussão, uma vez que 35% da receita deste grupo depende diretamente de financiamentos do governo federal. 

Pois bem, no texto abaixo o professor Carlos de Brito Pereira responde ao leitor Celso Pereira, que simplesmente escreveu o seguinte comentário no dia 07 de julho: "Solução: privatizar!"

Desejo a todos uma leitura crítica desta que já é a segunda colaboração do professor Carlos de Brito Pereira a este blog. 

O texto abaixo é uma adaptação do original. Em breve será disponibilizado aqui um link que permitirá o acesso não apenas ao texto originalmente escrito pelo professor Pereira como também às referências nele citadas.
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Privatizar a USP não é a solução
escrito por Carlos de Brito Pereira

Há um velho ditado em ciência social: “para todo problema complexo, há uma solução simples... e errada!” Truques retóricos à parte, o ditado é sempre repetido em aulas de metodologia para lembrar aos alunos que pensem de forma crítica sobre qualquer resultado de pesquisa antes de concluir o trabalho. A maior parte dos problemas sociais têm múltiplas causas, embora algumas sejam mais importantes do que outras. Além disso, há sempre que checar as respostas com a realidade. Sempre que se diz isto em ciência social, logo surge o velho truque retórico de lembrar que (1) a História não se repete, que (2) lidamos com fatos únicos e que (3) não há laboratório para experimentos sociais em grande escala. Vamos por partes: (1) mais ou menos, (2) é verdade e (3) mais ou menos. Não é tema deste ensaio, mas apenas para lembrar: sempre há a possibilidade de fazermos analogias com fatos históricos e a teoria existe para fazermos modelos e lidarmos com fatos estilizados, o que permite comparações entre o modelo e a realidade, bem como analisar e comparar fatos históricos separados no tempo. É possível fazer experimentos em pequenas escalas (vejam-se os experimentos sobre controle e autoridade em Psicologia Social realizados em meados do século passado, por exemplo, por Stanley Milgram, Solomon Asch, Kurt Lewin e Philip Zimbardo) e atualmente há vários casos de simulação que permitem alguns tipos de experimentos em larga escala (notadamente, modelos baseados em agentes). Portanto, sim, é possível extrair lições dos eventos e aplicá-los no futuro, mesmo em ciência social.

Por que esta longa introdução? Porque após a publicação do meu ensaio “Sobre a Crise na USP”, um dos leitores gentilmente postou um comentário neste blog do Prof. Sant'Anna, sugerindo que a privatização seria a solução para os problemas uspianos. O papel do Estado na economia em particular e na vida das pessoas em geral é sempre tema controverso. Ainda mais no Brasil, onde o Estado é ineficiente para a maioria dos problemas. Mas nem por isso a ausência da ação estatal é a resposta. Na minha área de formação, Economia, a grande conclusão possível é que no caso brasileiro ainda é necessário estatizar o Estado e privatizar a iniciativa privada. Pois no Brasil grupos de pressão se locupletam com a ação estatal, ao mesmo tempo em que vários empresários gritam por proteção de mercado (até mesmo montadoras multinacionais pedem isso no Brasil!). Logo, há que tornar o Estado eficiente e a iniciativa privada independente, com o perdão da rima infeliz.

Já discuti a crise na USP e espero ter mostrado que suas causas vão além do simples problema financeiro ou mesmo de ser estatal. Resumindo meu argumento original: a USP como instituição não tem uma missão e objetivos claros. Disto decorre um problema de organização: a forma como a Universidade é gerida. Somado a isso e talvez também como decorrência, na USP trabalham pessoas que têm ambições distintas daquelas normalmente esperadas em um docente uspiano, que seriam ensinar e fazer pesquisa. Ao longo dos anos, esse tipo de docente (que chamei de “Titular Político” no texto original) passou a ocupar cada vez mais cargos de direção na Universidade, tomando decisões que aparentemente levaram a USP para longe dos seus objetivos fundadores: produção e difusão de conhecimento. Logo, simplesmente trocar o controle da instituição não resolveria os seus problemas. Por outro lado, se a intenção do leitor-comentarista foi sugerir que uma gestão privada seria mais ágil que a pública, eu concordo plenamente.

Qual seria a missão dessa USP privada? Como escrevi no ensaio que motivou o comentário, há várias “USPs”, tantos quanto são seus públicos. Há a cidade universitária paulistana, que para muitos motoristas é apenas ponto de escape do congestionamento de trânsito. Ainda na capital, há o parque botânico usado por ciclistas. Depois, há os hospitais universitários, que prestam atendimento de qualidade à população paulista. E, claro, há o ensino universitário de graduação e pós-graduação. Mesmo no ensino, há desde alunos de graduação que desejam apenas um diploma supostamente gratuito até os que pretendem aprender o máximo possível tanto na carreira em que escolheram quanto na Universidade em geral. Na Pós-Graduação, há desde os alunos que estão adiando o desemprego ou prolongando ao máximo sua adolescência até os que fizeram uma escolha profissional consciente e estão aprimorando os seus conhecimento. As famílias dos alunos também são diferentes entre si no que esperam da Universidade: desde um curso técnico que garanta uma vida melhor até uma experiência de vida que se reflita em amadurecimento intelectual. Temos ainda os deputados estaduais e o Governador que representam a população paulista e ainda o contribuinte paulista que com o seu ICMS sustenta tudo isto. Cada um terá a sua opinião do que é e o que deveria ser a USP. 

E, claro, há a atuação em pesquisa. Muitos associam a atividade de pesquisa à qualidade do ensino, mas essa relação não é direta ou automática. E, de mais a mais, é preciso qualificar o que seja pesquisa – algo que vai além do objetivo deste texto.

Uma USP privada atenderia a qual desses públicos? Uma resposta é certa: qualquer atividade privada deve visar o lucro, de preferência o máximo lucro possível. Logo, atividades não-lucrativas serão sumariamente cortadas. Isto é bom? Cursos com baixa procura provavelmente seguiriam o mesmo caminho. Mas talvez seja importante para o país graduar um certo número de profissionais em áreas não reconhecidas pelo mercado. Talvez seja importante termos centro de pesquisa de excelência (aliás, em todo o mundo há pesquisa financiada com dinheiro público, até mesmo nos EUA).

Ademais, há o mito de que a ação da iniciativa privada é sempre melhor e mais benéfica para a população do que a ação estatal. Isto é falso, assim como é falso que o Estado age sempre em benefício dessa mesma população. Aliás, basta ver o final dos regimes comunistas para saber que a supremacia do Estado na vida das pessoas não é solução para a enorme maioria dos problemas. Mas as várias falências, atos de desonestidade etc. cometidos em e por empresas privadas são a prova de que nem toda ação privada corresponde a benefício público. Se a resposta a este último argumento for que a falha última é de regulação (leis, fiscalização etc.) e que esta cabe ao Estado, temos um problema lógico: ou bem há ação benéfica do Estado ou a defesa da iniciativa privada por si se torna circular.

O problema com todos esses exemplos é a velha questão popperiana do cisne negro: se afirmamos que todos os cisnes são brancos, basta um cisne negro para comprovarmos a falsidade da afirmação. Os autores que defendem privatização costumam rechear seus livros com exemplos de sucesso, mas naturalmente omitem os contraexemplos.

Que fique claro: não estou defendendo ineficiência com dinheiro público. No meu ensaio original, propus o que chamei de “meritocracia radical”. Na minha opinião, esta seria a melhor forma de evitar desperdício de dinheiro, além de retomar a função original de uma grande universidade, seja pública ou privada: produzir e difundir conhecimento.

Por tudo isso, apenas privatizar não seria a solução. Mas, naturalmente, pode ser uma solução depois de se concluir a questão fundamental: para que serve a USP?



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