Educação
Por que é tão difícil provar a existência de Deus?
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Bad Wolf |
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Recentemente publiquei na página Facebook deste blog uma matéria sobre preconceitos usuais em ciência. E o primeiro preconceito mencionado se refere à noção de "prova". Muitas pessoas afirmam que a ciência prova isso ou prova aquilo, insinuando a existência de um conhecimento que não permite espaço para dúvida alguma. Se uma pessoa assume que uma prova (ou prova científica) é uma metódica experiência de laboratório, uma descoberta amplamente conhecida pela comunidade científica ou (pior) um detalhado argumento que apresente uma resposta definitiva a alguma questão sobre algum fenômeno da natureza, esta pessoa não está assumindo uma postura científica. Isso porque a postura científica é fundamentalmente fomentada pela dúvida.
Se o leitor deste texto for uma pessoa com senso crítico, já deve ter se sentido desconfortável com a primeira frase do parágrafo acima: "Muitas pessoas afirmam que...". O que são exatamente "muitas pessoas"? E, pior, quem são essas pessoas?
Para responder parcialmente a essas últimas questões, recomendo que você mesmo faça a seguinte experiência. Digite no Google a seguinte palavra-chave: science (ciência). Surgirão 659 milhões de resultados. Em seguida, digite science has proven (a ciência provou). Surgirão 146 milhões de resultados, o que corresponde a apenas 22% dos resultados da primeira busca. Finalmente, digite science has proven god (ou seja, a expressão "a ciência provou" seguida do termo "deus"). Surgirão 17,5 milhões de resultados, o que corresponde a 12% dos resultados da segunda busca e somente 2,6% dos resultados da primeira.
Apesar da considerável desconfiança que o mecanismo de busca do Google desperta, ainda assim é possível perceber a existência de muitas pessoas que associam a noção de que "a ciência prova coisas" com "algum conceito sobre Deus", ainda que eu não tenha encontrado evidências de que tais pessoas representem alguma maioria. Ao se digitar a palavra-chave science has proven (sem menção alguma ao termo god), percebe-se, porém, já nas primeiras páginas expostas pelo mecanismo de busca, uma quantia considerável de sites com textos e vídeos sobre a existência de Deus, interpretações da Bíblia ou supostas análises sobre a Teoria da Evolução das Espécies (um dos alvos preferidos tanto dos autoproclamados céticos quanto dos fanáticos religiosos). E um dos pontos em comum entre tais textos é a presença da palavra "prova". São muitos os que questionam o que exatamente prova a Teoria da Evolução das Espécies. Outros chegam a afirmar que a ciência provou a inexistência de Deus, enquanto que alguns garantem que a ciência já provou a Sua existência.
No entanto, a confusão daqueles que esperam da ciência alguma resposta definitiva sobre a existência de Deus reside justamente no conceito de "prova".Digamos que seja possível classificar a ciência em dois grandes ramos: ciências reais e ciências formais. Ciências reais seriam então divididas em ciências humanas e ciências naturais. As ciências humanas compreendem a economia, a sociologia, a psicologia, a linguística, entre outras. As ciências naturais contemplam a física, a química, a biologia, a geologia, entre outras. (Vale observar que estou me esquivando de qualquer visão objetiva sobre ciências reais, a partir do momento em que emprego o termo "entre outras"). Já as ciências formais compreendem a matemática e a lógica.
Em matemática e em lógica existe uma conceituação metamatemática muito precisa para prova, também conhecida como demonstração. Mas mesmo demonstrações matemáticas muito usuais são questionáveis. Um exemplo bem conhecido que ilustra isso é a visão intuicionista do matemático holandês L. E. J. Brower. Já nas ciências reais uma prova é usualmente uma evidência física e, portanto, algo sujeito a interpretações no escopo de algum corpo de conhecimento já estabelecido. Mas uma das características mais perturbadoras da ciência é que a distinção entre ciências reais e ciências formais carece de sentido, uma vez que todas as chamadas ciências reais fazem uso, vez ou outra, de métodos típicos das ciências formais. E isso torna qualquer discussão sobre o conceito de prova muito mais complicado.
Desconheço a existência de qualquer texto sério e extenso o bastante para contemplar todos os casos possíveis de provas em ciência. Porém, parece seguro o bastante afirmar o seguinte: uma prova, em vastas porções da ciência, é apenas uma evidência de que uma teoria é suficientemente confiável para explicar fenômenos ditos reais, conforme são percebidos pela espécie humana em certos contextos sociais definidos pela comunidade científica internacional.
Ou seja, neste sentido, provas têm a função de apoiar ou contestar teorias, em um contexto social definido pela prática científica usual. John Maddox, editor da revista Nature durante muitos anos, chegou a escrever: "Se Isaac Newton submetesse sua teoria de gravitação hoje em dia, seu trabalho seria rejeitado para publicação em periódico especializado". A teoria da gravitação universal de Newton é um excelente exemplo para ilustrar o significado de uma prova. No século 17 a queda de uma maçã e a órbita da Lua ao redor da Terra eram provas que confirmavam tal teoria. No entanto, com o passar do tempo surgiram dúvidas severas quanto à interpretação física do conceito de força. Portanto, provar as ideias de Newton sobre gravitação ficou cada vez mais difícil, levando em conta as profundas exigências metodológicas, epistemológicas e pragmáticas existentes hoje em dia. A verdade (sempre mais perturbadora do que a maioria consiga antecipar) é que o próprio Maddox reconhece que até mesmo o artigo de Crick e Watson que desvendou a estrutura da molécula DNA (rendendo o Prêmio Nobel) provavelmente não seria publicável na Nature dos dias de hoje.
Dentro de certos contextos sociais extremamente toleráveis, a gravitação universal de Newton é suficientemente suportada por muitas provas. No entanto, hoje em dia é muito difícil contestar o marcante caráter metafísico da gravitação universal, a qual apela para uma misteriosa ação-a-distância que ocorre instantaneamente entre corpos com massa, não importando a distância entre eles. É possível que Isaac Newton fosse apelidado de Harry Potter, se apresentasse sua gravitação universal no século 21.
Se alguém se sente preparado para questionar provas da Teoria da Evolução das Espécies ou provas da existência ou inexistência de Deus, deve também estar preparado para questionar as provas da existência do campo gravitacional da Terra. Se uma maçã cai ao chão quando largada, tal evidência não garante que a gravitação universal está consolidada como um conhecimento inquestionável. Mesmo que um milhão de maçãs tenham o mesmo comportamento, não sabemos como se comportaria toda e qualquer maçã, ao ser largada de uma certa altura. E o questionamento sobre provas não cabe apenas à gravitação universal (a qual é criticada há séculos), mas a toda e qualquer teoria científica. Ou seja, antes de se questionar provas da existência ou inexistência de Deus, deve-se questionar o que, afinal, é uma prova.
Ainda que algum cientista apresentasse provas da existência de algo que muitos reconheceriam como Deus, tais provas dependeriam de um contexto teórico. E toda teoria é contestável. E, pior, toda prova está inevitavelmente vinculada a uma interpretação de supostos fatos. E como a noção de Deus frequentemente desperta fortes emoções (tanto entre religiosos quanto ateus e mesmo agnósticos), qualquer visão objetiva sobre o tema fica mais comprometida ainda.
A ciência atingiu um grau suficientemente maduro para reconhecer que ela não surgiu para trazer respostas, mas apenas questões. E os reflexos desta maturidade têm ocorrido em áreas inesperadas do fenômeno humano, como as ciências jurídicas. Em brilhante artigo de David L. Faigman, o autor defende que juízes (enquanto membros do Poder Judiciário) deveriam ser cientistas amadores, dada a fundamental importância da ciência e da tecnologia nos dias de hoje. No entanto, não é o que ocorre. E a ignorância de juízes sobre conceitos básicos de ciência certamente compromete o próprio sistema judiciário. Um exemplo da importância de conhecimentos básicos de ciência entre juízes se encontra nesta postagem sobre um caso hipotético de exame médico indicando um falso positivo.
Em suma, por que é tão difícil provar a existência de Deus? Simplesmente porque não existem critérios objetivos (sem apelar para contextos sociais) que estabeleçam o que, afinal, é uma prova. Não é apenas a existência de Deus que se mostra difícil de provar. Se pensar bem, até mesmo a existência deste texto é contestável. Como saber se o leitor não está sonhando com esta postagem?
Se, por acaso, o leitor se sentir inseguro demais com esta visão sobre ciência, recomendo que erga uma maçã para o alto e a solte. Enquanto ela estiver caindo, pode respirar com certa tranquilidade e continuar confiando na surpreendente capacidade da ciência de se mostrar útil à sobrevivência da espécie humana. Mas se a maçã não cair, peço que faça contato com o administrador deste blog. Eu gostaria muito de ver uma maçã flutuante.
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