Educação
A ciência indisponível na internet
Acabo de ler a seguinte notícia na internet: "Nos próximos dez anos, a expressão “não sei” vai desaparecer. O mundo todo estará conectado, com internet banda-larga gratuita distribuída por drones, balões, ou microssatélites, e qualquer dúvida será resolvida quase instantaneamente. A previsão é do venezuelano José Cordeiro, professor da Singularity University, localizada em uma base de pesquisa da Nasa, no Vale do Silício (EUA). “Poderemos usar nosso cérebro para coisas mais importantes, mais interessantes e mais inovadoras. Para tarefas repetitivas, teremos os robôs e a inteligência artificial”, resume."
Tento crer que o texto acima citado é apenas mais uma das incontáveis confusões que jornalistas e editores fazem ao tentar transcrever as palavras de um entrevistado. Tento crer que o corpo docente da Singularity University tenha uma mentalidade mais madura do que se sugere na entrevista com José Cordeiro. Tento crer que o mundo não está tão #&@!@&.
Quando John Horgan lançou seu polêmico livro The End of Science, em 1997, John Maddox apresentou uma estonteante resposta dois anos depois com o seu poético livro What Remains to be Discovered. O fato é que não há indícios de que algum dia a expressão "não sei" possa desaparecer; muito menos em dez anos, por conta da internet. E não estou falando apenas sobre visões científicas que ainda não surgiram, como discute Maddox. Mesmo ramos consolidados da atividade científica apresentam lacunas e até erros que não podem ser resolvidos com uma simples consulta à internet. Isso porque senso crítico, um dos pilares da atividade científica, não é algo que se aprende em textos, vídeos ou quaisquer outras engenhosas mídias. Senso crítico é algo que se desenvolve com prática. Só aprende ciência quem efetivamente faz ciência. O domínio de conhecimento científico não ocorre com atitudes passivas de simples leitura e meditação. A interação social com pares é fundamental. Pois é esta interação que ajuda a desenvolver senso crítico.
Cito abaixo quatro exemplos de conhecimentos científicos relevantes que não são encontrados na internet justamente por serem contrários a uma suposta sabedoria comum ao conhecimento consolidado e meramente repetido em livros e... na internet. Espero que apareçam leitores que contestem a minha tese. Afinal, certamente não examinei todos os sites da internet, para defender a ideia de que a rede mundial de computadores ainda está muito longe de se tornar uma base completa de informações e conhecimentos, mesmo quando nos delimitamos àquilo que já se conhece nos dias de hoje.
Exemplo 1: Órbitas planetárias podem ser quadradas
De acordo com a primeira lei de Kepler, a órbita de um planeta ao redor do Sol é uma elipse, na qual o Sol ocupa um dos focos. Existem milhares de textos em livros, artigos e sites, em que esta lei é supostamente demonstrada a partir da equação da gravitação universal de Newton e da segunda lei de Newton.
Pois bem. Consideremos um caso ideal, no qual há apenas dois corpos no Universo: o Sol e um planeta qualquer o orbitando. Desta forma ignoramos perturbações provocadas por outros astros. Ainda idealizando, consideremos também que Sol e planeta sejam corpos não elásticos, para evitar perturbações orbitais provocadas por fenômenos de marés. Ainda assim é impossível demonstrar a primeira lei de Kepler a partir da equação da gravitação universal e da segunda lei de Newton, sem cair em contradição. Por quê?
A resposta é simples. A concatenação entre a segunda lei de Newton e a gravitação universal implica em um sistema de duas equações diferenciais acopladas (equações 4.2 e 4.3 desta referência). Essas duas equações podem ser reduzidas a uma única equação diferencial que descreve uma dinâmica dependente da massa total do sistema. Para que seja possível demonstrar a primeira lei de Kepler faz-se necessária uma aproximação física na qual se considere que o Sol tem massa muito maior do que o planeta que o orbita. E tal aproximação (que intencionalmente negligencia a massa do planeta), na prática, implica em considerar o Sol como um sistema inercial de referência. No entanto, considerar o Sol como um sistema inercial, neste contexto, contradiz justamente a segunda lei de Newton (usada na própria demonstração). Isso porque o planeta exerce uma força sobre o Sol que, apesar de muito pequena (por comparação), não é nula. Portanto, as demonstrações da primeira lei de Kepler são feitas a partir de uma contradição. Ora, e se alguém espelhar tais demonstrações em um sistema formal axiomático? Assumindo que este alguém use como lógica subjacente a lógica clássica (não creio que físicos fizessem oposição a isso), tal pessoa será obrigada a incluir na demonstração a tal da aproximação (que assume o Sol como um sistema inercial) na forma de novo axioma ou premissa, além dos axiomas que impõem a gravitação universal e a segunda lei de Newton. Como este novo axioma (ou premissa) será necessariamente inconsistente com a segunda lei de Newton, não haverá surpresa alguma na demonstração da primeira lei de Kepler. Isso porque, no âmbito da lógica clássica, contradições permitem inferir qualquer fórmula da teoria como teorema. Portanto, é também teorema que as órbitas planetárias são quadradas. Neste mesmo contexto, também é teorema que as órbitas são triangulares ou simplesmente retilíneas.
E, para piorar este quadro todo, há também demonstração das leis de Kepler que não faz uso sequer do conceito de força.
Se o leitor estiver motivado pelo aspecto intuitivo desta discussão, recomendo as animações que aparecem neste texto da Wikipedia. São bonitinhas.
Exemplo 2: Quando uns são mais iguais do que outros
Anos atrás Décio Krause, Aurélio Sartorelli e eu publicamos no tradicionalíssimo periódico belga Logique et Analyse um artigo no qual testamos os limites do conceito de igualdade em teorias aparentadas com a usual teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Enfraquecemos a noção de igualdade de modo a ainda manter as propriedades usuais de igualdade. E mostramos a partir de que ponto esse processo de enfraquecimento conduz a uma "relação binária" que deixa de ser a igualdade. Mas a questão realmente importante é a seguinte: será que nós conseguimos contemplar todos os casos possíveis que separam igualdade de outras "relações" que não se identificam com igualdade? Não sei.
Exemplo 3: Recursivos sim, mas nem tanto
Desde séculos atrás o ser humano vem tentando encontrar evidências (científicas ou não) que o coloquem como uma espécie intelectualmente privilegiada entre as demais existentes neste planeta Terra. Uma das mais recentes é o uso de recursividade na linguagem. Grosso modo, recursividade em linguística se traduz como o emprego de uma quantia finita de elementos de um alfabeto para gerar uma quantia infinita de frases. Definições recursivas são muito comuns em matemática e, particularmente, em lógica. Além disso, porções significativas da matemática podem ser formalmente tratadas através do emprego de uma linguagem formal conhecida como cálculo predicativo, o qual faz uso dos quantificadores existencial (EXISTE um x tal que P(x), sendo P uma propriedade, intuitivamente falando) e universal (PARA TODO x temos que P(x), sendo P uma propriedade, intuitivamente falando). No entanto, até onde sei, nenhum teorema relevante da matemática pode ser traduzido para o cálculo predicativo de modo a fazer uso de mais do que quatro ocorrências alternadas de quantificadores. Por quê isso? Há alguma limitação cognitiva no ser humano que o impeça de compreender mais do que quatro ocorrências alternadas de quantificadores? Ou seja, os matemáticos caíram em uma armadilha, criando formalismos que encerram conhecimentos inacessíveis pelo intelecto humano? Onde está a tão louvada recursividade? Por isso publiquei, anos atrás, o texto sobre o estudante brilhante.
Exemplo 4: Entender sim, mas nem tanto
Todo bom livro de cálculo diferencial e integral apresenta a definição usual de limite de uma função real. E, a partir de intuições, teoremas, exemplos e exercícios, espera-se que o aluno se familiarize com tal conceito. No entanto, existem infinitas maneiras de alterar a definição de limite, ainda mantendo os mesmos teoremas. E existem infinitas maneiras de alterar a definição de limite de modo a manter alguns teoremas, mas outros não. A escolha historicamente definida para o conceito de limite de uma função real (conforme se apresenta em livros sobre o tema) atende a certos propósitos muito específicos e de caráter metamatemático. Em suma, toda definição em matemática tem um caráter de arbitrariedade. E tal caráter de arbitrariedade sempre tem um contexto histórico, social e pragmático. Como discutir sobre isso sem a efetiva, intensa e sistemática interação entre o interessado e seus pares?
Conclusão
Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados, mas espero ter deixado claro o meu ponto.
Quem deseja educar, deve semear dúvidas sobre o que está falando ou escrevendo. Extinguir a expressão "não sei" é matar o espírito humano. Quem deseja segurança a partir do conhecimento científico certamente procurou o caminho errado. Certezas, respostas e verdades não são alicerces da ciência, mas superficiais discursos que acalentam leigos e meros usuários dos benefícios e confortos da ciência e da tecnologia.
Se alguém deseja cultivar algum sonho com a internet, que seja o sonho da dúvida e da incerteza, mas não o delírio das respostas prontas e inquestionáveis.
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