Educação
O que é um Pesquisador do CNPq?
Tenho publicado menos textos neste blog por conta de um projeto que estou desenvolvendo em parceria com o meu filho e uma produtora de cinema no Rio de Janeiro. O tema do projeto é, naturalmente, educação (com foco em matemática). E sobre isso pretendo discutir abertamente quando a hora certa chegar. Além disso, nos últimos meses estou dando preferência à publicação de certas postagens mais especializadas, que exponham fatos pouco conhecidos e raramente discutidos de forma crítica. O presente texto é mais um exemplo das novas tendências deste site.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) é um dos principais órgãos federais de fomento à pesquisa no Brasil. No entanto, já está bastante claro que a ciência brasileira passa por um período de grave crise, com periódicos especializados sendo citados na revista britânica Nature por fraude, número de citações a pesquisadores brasileiros caindo no mundo inteiro, crescente desinteresse dos jovens por ciências exatas e biológicas, entre outros exemplos. Portanto, acredito que seja importante promover uma análise sobre o complexo perfil de órgãos como o CNPq. Afinal, quando o CNPq avalia o mérito de uma proposta de desenvolvimento científico e tecnológico, o que exatamente é levado em consideração?
Para aqueles que não sabem, o CNPq oferece bolsas de produtividade em pesquisa para profissionais do mundo acadêmico brasileiro (o que naturalmente inclui a concessão de bolsas para estrangeiros). Isso significa que todos nós pagamos, através de impostos, para que certas pessoas façam avançar o conhecimento científico e tecnológico de nossa nação e do mundo. No entanto, no site do CNPq não há informações detalhadas sobre o destino dessas verbas federais. Quem recebe essas bolsas? Por que alguns recebem este tipo de apoio e outros não? Quais são os critérios usados para a concessão de bolsas?
Importante também frisar que a concessão de bolsas não tem reflexos apenas sobre os cofres públicos e o bolso de quem recebe. Bolsas para pesquisadores apresentam reflexos muito visíveis em instituições nas quais estão lotados os pesquisadores, bem como em grupos de pesquisa.
Sozinho, não tenho condições de avaliar bolsistas do CNPq em todas as áreas e modalidades. Os motivos são dois: 1) Não tenho em mãos todas as informações necessárias e 2) Não tenho condições de processar todas essas informações sem ajuda.
Por isso escolhi, por enquanto, uma única área do conhecimento para promover uma primeira análise: filosofia.
Tenho comigo a lista de todos os bolsistas de produtividade em pesquisa na área de filosofia, em nosso país. São, no total, cento e quarenta. Algumas dessas bolsas encerram no início de 2014 e outras em 2017. Para esta postagem decidi analisar prioritariamente os treze bolsistas nível 1A em filosofia. 1A é o nível mais elevado das bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq. E a questão que levanto é a seguinte: Existe sintonia entre as exigências do CNPq para a concessão de bolsas de pesquisa e as demandas da comunidade acadêmica internacional? Se houver tal sintonia, parabéns ao CNPq! Afinal, ciência e filosofia são edificantes quando não estão sujeitas a fronteiras ditadas por divisões políticas, crenças pessoais, linguagem ou outros fatores sociais produzidos pela arbitrariedade humana. No entanto, encontrei fortes evidências de que o CNPq sustenta parte significativa de suas políticas de apoio à pesquisa em bases que pouco têm a ver com as tendências acadêmicas em escala global.
Como fiz a análise? Simplesmente comparei informações fornecidas pelos próprios pesquisadores na Plataforma Lattes (também de responsabilidade do CNPq!) com informações disponíveis em Web of Knowledge. Web of Knowledge (que abrevio como WoK) é um site de acesso restrito no qual consta a verdadeira produção científica relevante de todos os pesquisadores do mundo. Neste momento, portanto, convém que eu qualifique dois adjetivos:
1) Afirmo que as informações disponíveis em WoK são verdadeiras no sentido de serem obtidas diretamente a partir dos periódicos especializados que publicam resultados de pesquisas. Como a Plataforma Lattes está vergonhosamente infestada de mentiras (titulações falsas, publicações que nunca aconteceram, entre outras), a comparação entre essas duas fontes é fundamental para apurar fatos.
2) Afirmo que a produção científica e tecnológica reportada em WoK é relevante no sentido de espelhar a produção que atende a parâmetros mínimos de qualidade editorial acadêmica. É claro que existem periódicos especializados importantes ainda não indexados em WoK, assim como existem periódicos de qualidade questionável que estão indexados. No entanto, WoK ainda é a fonte mais confiável para uma primeira avaliação, tanto de produção científica e tecnológica quanto de impacto de pesquisas.
Vale observar ainda que, usualmente, produção científica original e relevante se faz através da publicação de artigos em periódicos especializados de circulação internacional, com corpo editorial e sistema de referees. E filosofia, no âmbito internacional, não é exceção. Espero não ter que discutir sobre este ponto com eventuais críticos pré-programados com discursos vazios, repetitivos e sem sintonia com a realidade mundial.
Pois bem. Aqui estão os treze bolsistas de produtividade em pesquisa nível 1A do CNPq, na área de filosofia.
Marilena de Souza Chauí (USP). Existem seis publicações de Chauí em periódicos indexados em WoK, no período de 1983 a 2012. O número total de citações a essas seis publicações, neste índice, é zero. Porém, de acordo com a Plataforma Lattes (última atualização em 02/09/2013), Chauí publicou quarenta e um artigos em periódicos supostamente especializados, trinta e cinco livros, sessenta e oito capítulos de livros e duzentos e sessenta e um textos em jornais e revistas não especializados, entre outros. Esses números evidenciam um perfil claro. O impacto internacional da produção acadêmica original de Chauí é muito pequeno. Ela privilegia, em suas publicações, mídias locais (de circulação nacional). Entre os trabalhos que ela mesma aponta na Plataforma Lattes como os mais relevantes, está um artigo em Revue des Sciences Philosophiques et Theologiques (sem citações registradas em WoK), um artigo na revista carioca Analytica (não indexada em WoK) e um artigo publicado em 1990 na Folha de São Paulo. Correndo o risco de subestimar o leitor, devo salientar que Folha de São Paulo não é uma publicação especializada em filosofia. É claro que não podemos ignorar honrarias internacionais feitas a Chauí, incluindo o título de Doutor Honoris Causa concedido pela Université de Paris VIII. No entanto, como até mesmo o falecido cantor pop Michael Jackson e o ator hollywoodiano Ben Afleck já receberam títulos de Doutor Honoris Causa de prestigiadas instituições, eu gostaria de saber onde exatamente está a linha que separa mérito acadêmico de manobra política.
Guido Antonio de Almeida (UFRJ). De acordo com a Plataforma Lattes (última atualização feita em 29/06/2010), Almeida é editor da revista carioca Analytica (não indexada em WoK). Na mesma base de dados são informados dois artigos publicados em Kriterion e três publicações em Revue Philosophique de Louvain. ambos indexados em WoK. No entanto, de acordo com o próprio autor, das três publicações em Revue Philosophique de Louvain, duas são resenhas. São resenhas que estão listadas no campo designado para artigos completos publicados em periódicos especializados. Redundante dizer que resenhas não são artigos completos! Portanto, as informações prestadas por Almeida na Plataforma Lattes são, no mínimo, contraditórias. Quanto aos demais artigos declarados, são todos em periódicos de circulação local e não indexados em WoK. Também é estranho perceber que Almeida afirma que Revue Philosophique de Louvain é uma publicação de Belo Horizonte, sendo que se trata de um periódico belga. E apesar de Kriterion e Revue Philosophique de Louvain estarem indexados em WoK, neste banco de dados não consta uma única dessas publicações. As informações sobre Kriterion ainda estão sendo alimentadas em WoK, o que justificaria a falta de dados. No entanto, Almeida declara uma publicação no volume 20 de Revue Philosophique de Louvain, em 1993. E vale observar que em 1993 a Revue Philosophique de Louvain estava no volume 91. Portanto, mais uma inconsistência. Almeida ainda destaca entre suas publicações mais relevantes quatro capítulos de livros e um trabalho completo publicado em anais de congresso. O que transparece nas informações prestadas por Almeida é que ele atribui uma importância secundária a seus artigos. Este, aliás, é um comportamento comum no Brasil. São muitos os pesquisadores que preferem publicar seus trabalhos em anais ou livros obscuros. Isso porque tais obras têm circulação extremamente limitada. Pouca gente lê, mesmo entre especialistas.
Itala Maria Loffredo D'Ottaviano (Unicamp). Há treze artigos de D'Ottaviano em periódicos indexados em WoK. Um desses artigos tem 22 citações (já excluídas as auto-citações), o que é um ótimo resultado. De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 20/08/2013), D'Ottaviano publica predominantemente em veículos de circulação nacional. Mas ela destaca como produções mais relevantes quatro artigos em periódicos especializados de circulação internacional e indexados, bem como um livro publicado em 2000 pela editora Kluwer. Ou seja, D'Ottaviano transparece clara sintonia com a realidade mundial do que se entende por produção acadêmica. O único ponto que gera dúvidas em seu perfil é que ela acumula uma bolsa nível 1A do CNPq com o cargo de pró-reitora de pós-graduação na Unicamp. Compatibilizar um cargo burocrático com atividades de pesquisa é certamente um desafio.
Ivan Domingues (UFMG). Domingues conta com sete publicações em periódico indexado em WoK, apesar de apenas uma aparecer. Isso porque todas essas sete publicações são na revista Kriterion, cujos dados ainda estão sendo inseridos naquele site. Os demais artigos foram publicados em periódicos de circulação local. De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 14/03/2013) as publicações mais relevantes de Domingues são quatro livros (um pela L'Harmattan, França, e três pela Edições Loyola, Brasil) e a sua tese de professor titular. Ou seja, mais um exemplo de alguém que não percebe a fundamental importância da publicação de artigos originais em periódicos importantes. Vale observar também que diversidade de veículos é fundamental em produção acadêmica. A revista Kriterion não é o único periódico de filosofia indexado em WoK.
Luiz Henrique Lopes dos Santos (USP). De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 08/05/2013), Santos tem treze artigos completos publicados em periódicos. Falso! Ele inclui entre os artigos um texto publicado no jornal O Estado de São Paulo, demonstrando uma clara dificuldade para distinguir produção especializada do restante. Entre os demais artigos, há um em Cahiers de Philosophie du Langage (Paris). Os demais são locais. Mas nenhuma de suas publicações ocorreu em periódico indexado em WoK. Outro exemplo de falta de sintonia com o que se entende por produção filosófica em escala internacional.
Nelson Gonçalves Gomes (UNB). De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 03/07/2013), Gomes tem considerável experiência internacional. No entanto, entre os treze artigos declarados, apenas um (outro brasileiro publicando em Kriterion!) aparece em WoK. Novamente zero é o número total de citações. As publicações que ele considera mais relevantes são predominantemente livros ou capítulos de livros, deixando espaço para um único artigo veiculado pela carioca (e não indexada) Analytica.
Newton Carneiro Affonso da Costa (UFSC). da Costa comete algumas imprecisões na declaração de sua volumosa produção na Plataforma Lattes. Porém, de acordo com WoK, este pesquisador conta com noventa e seis publicações (muito mais do que os demais doze pesquisadores nível 1A somados). Todas as cinco publicações marcadas pelo autor como as mais relevantes são artigos em periódicos especializados indexados em WoK. Isso apesar de da Costa ter livros publicados em diversos países.
Oswaldo Chateaubriand Filho (PUC-Rio). De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 25/08/2013), Chateaubriand tem cinquenta e três artigos completos publicados em periódicos. Falso! Várias das referências naquela lista são resenhas e não artigos. Aparentemente esta é uma confusão comum em nosso país. Além disso, vinte e um dos artigos estão concentradas no mesmo periódico (o não-indexado Manuscrito) e no mesmo ano (2008). Um fenômeno realmente bizarro! No total, Chateaubriand conta com apenas três publicações em veículos indexados em WoK, das quais somente duas aparecem naquela base de dados. Zero citações em WoK.
Paulo Eduardo Arantes (USP). De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 27/08/2013), Arantes é autor de sessenta e cinco artigos completos publicados em periódicos. Deste total, apenas três foram publicados em periódicos indexados em WoK; foram nos veículos Tempo Social (USP), Trans/form/ação (Unesp) e Cultural Critique (Un. Minnesota Press). Novamente zero citações em WoK. Entre as publicações marcadas por Arantes como as mais relevantes de sua carreira estão três livros publicados no Brasil. Ou seja, Arantes também não prioriza artigos publicados em periódicos especializados. Mais um exemplo de isolamento em relação ao mundo.
Raul Ferreira Landim Filho (UFRJ). De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 05/11/2012), Landim é autor de trinta artigos completos em periódicos especializados. Apenas dois foram veiculados por periódico indexado em WoK (novamente na revista Kriterion, como tantos outros do Brasil). E novamente esses dados não puderam ser confirmados em WoK. Pelo menos Landim destaca quatro artigos entre suas cinco publicações mais relevantes.
Renato Janine Ribeiro (USP). De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 30/07/2013), Ribeiro é autor de setenta e quatro artigos completos em periódicos especializados. Deste total, três foram veiculados em periódicos indexados em WoK. Apesar disso, há algumas publicações em periódicos estrangeiros, o que pelo menos demonstra uma diversidade de publicações maior do que a média dos pesquisadores nível 1A em filosofia. No entanto, Ribeiro também confere maior valor a livros do que artigos. Entre as cinco publicações destacadas pelo autor, apenas uma é artigo em periódico especializado. O restante são quatro livros publicados no Brasil. Zero citações em WoK e umas poucas citações em outros bancos de dados.
Ricardo Ribeiro Terra (USP). De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 02/09/2013), Terra é autor de quinze artigos completos em periódicos especializados. Apesar de algumas publicações no exterior, nenhuma delas foi em veículo indexado em WoK. Entre suas publicações mais relevantes, Terra destaca um livro organizado e publicado na Alemanha, dois livros escritos e publicados no Brasil e uma conferência plenária.
Roberto Cabral de Melo Machado (UFRJ). De acordo com a Plataforma Lattes (atualizada em 04/09/2013), Machado é autor de oito artigos completos publicados em periódicos especializados. Quatro foram em periódicos indexados em WoK, apesar de apenas um aparecer. Isso porque temos novamente um autor que prefere publicar em Kriterion. Entre suas publicações mais relevantes, Machado destaca cinco livros veiculados no Brasil.
Em suma, salvo raríssimas exceções, os pesquisadores nível 1A do CNPq em filosofia estão isolados demais do mundo. Isso, na prática, reflete em isolamento do Brasil. Afinal, essa gente exerce considerável influência sobre jovens universitários.
Espero que o exemplo aqui dado seja seguido por outros. A academia brasileira está doente. Precisamos tratá-la, antes que seja tarde demais. Para acompanhar algumas críticas a esta postagem, clique aqui.
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