Educação
O que é um número?
Algo que matemáticos aprenderam, melhor do que ninguém, é o convívio com a pluralidade de ideias. Não existe, em matemática, uma definição universalmente aceita para esclarecer o que é, afinal, um número. No entanto, matemáticos frequentemente trabalham com números, sem se preocuparem com a falta de convergência de ideias fundamentais. Então, qual é o sentido de escrever uma postagem sobre este tema?
O que pretendo fazer aqui é apenas esclarecer alguns pontos importantes sobre números, ao mesmo tempo em que procuro desfazer alguns mitos muito comuns, não apenas entre leigos, mas até mesmo entre estudantes e professores de matemática. A visão intuitiva e bastante comum, de que números servem para contar e medir, simplesmente espelha uma percepção limitada e até corrompida do que se entende por números em matemática.
Antes de mais nada, preciso qualificar a linguagem que emprego aqui. Tudo o que é dito nesta postagem sobre números pode ser traduzido para uma linguagem formal de conjuntos. Para minimizar ambiguidades, apelo para a mais usual das teorias formais de conjuntos: Zermelo-Fraenkel com o Axioma da Escolha (ZFC) e algumas de suas variantes. No entanto, é perfeitamente possível adaptar as afirmações aqui feitas para outras teorias formais de conjuntos.
ZFC é uma teoria formal com apenas dois conceitos primitivos: pertinência e igualdade. Em outras palavras, não existe em ZFC qualquer referência explícita a conjuntos. No entanto, compreender as "relações" entre pertinência e igualdade é um passo fundamental para entender conjuntos e, consequentemente, números.
Comecemos com os números naturais. Frequentemente se diz que números naturais são números inteiros estritamente positivos (1, 2, 3, 4, 5, ...) ou números inteiros não negativos (0, 1, 2, 3, 4, ...). Até mesmo o excelente site Wolfram apela para essa "explicação". Mas o problema aqui é óbvio: o conceito de número natural depende do conceito de número inteiro. Ou seja, o problema de qualificar números naturais está sendo delegado para números inteiros. Esta é uma solução deselegante e desnecessária.
Os números naturais são apenas conjuntos que pertencem a um conjunto comumente denotado por N. Como se define este conjunto N? A maneira mais usual é através dos axiomas de Peano, em sua versão de primeira ordem. De acordo com esses axiomas, existe uma constante, chamada de zero, pertencente a N. Além disso, há uma operação - chamada de Sucessor - de tal modo que, se n pertence a N, então o sucessor de n também pertence a N. Esta operação pode ser definida usando o conceito de união entre conjuntos (o qual é garantido pelos axiomas de ZFC, que - não custa lembrar - simplesmente estabelecem as "relações" entre pertinência e igualdade). Os demais axiomas de Peano dizem que: (i) zero não é sucessor de elemento algum de N; (ii) se m e n pertencem a N, de modo que os sucessores de m e n são iguais, então m e n são iguais; e (iii) se S é um conjunto que contém zero e também o sucessor de qualquer número natural, então S contém todos os números naturais.
Entre os números naturais é usual definir duas operações bem conhecidas: adição (+) e multiplicação (.). Essas duas operações são comutativas [m+n = n+m e m.n = n.m], associativas [m+(n+p) = (m+n)+p e m.(n.p) = (m.n).p] e admitem elemento neutro [m+0 = m e m.1 = m]. Além disso, vale a distributividade da multiplicação em relação à adição [m.(n+p) = m.n + m.p]. Tais operações podem ser recursivamente definidas a partir da operação de Sucessor. Em outras palavras, nada além de teoria de conjuntos está sendo usado aqui.
Sim, números naturais podem ser usados para contar, como fazemos para determinar o número de frutas em uma cesta. Neste sentido, a teoria dos números naturais pode ser também compreendida como uma teoria física. Mas não é apenas isso. O estudo de números naturais é legitimamente matemático, sem precisar de uma correspondência com o mundo real. Tanto é verdade que a espécie humana conta o número de frutas em uma cesta desde muito antes dos axiomas de Peano serem enunciados. Se os axiomas de Peano se tornaram tema de estudos entre matemáticos, é porque estes perceberam aspectos sobre números naturais que transcendem as aplicações cotidianas de métodos de contagem.
Já os números inteiros também podem ser definidos a partir de uma linguagem como aquela empregada em ZFC. Existem aqueles (e não são poucos) que insistem que números inteiros podem ser positivos ou negativos. Mas como expressar os conceitos de sinal positivo e sinal negativo na teoria de conjuntos? Os símbolos + e -, usualmente empregados para diferenciar um caso do outro, são meras notações. Nada esclarecem, do ponto de vista conceitual. Assim como uma farda não qualifica uma pessoa como policial, um sinal + ou - não qualifica um número inteiro como positivo ou negativo.
A principal diferença entre números naturais e números inteiros radica nas propriedades algébricas da operação de adição. A adição entre números inteiros admite a existência de simétricos, algo que não ocorre entre números naturais. Como se expressa isso? A resposta é simples. Análogos aos axiomas da adição entre números naturais são fortalecidos com um axioma extra para os inteiros que diz: para todo número inteiro m existe um inteiro n tal que m+n é igual ao neutro aditivo (zero). As demais propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números naturais (comutatividade, associatividade, elemento neutro e distributividade) são apenas copiadas entre números inteiros. Uma maneira de apresentar modelos para números inteiros é através de classes de equivalência de pares ordenados de números naturais (desde que certos cuidados sejam tomados em ZFC). Uma visão meramente intuitiva e indolor sobre essa construção de números inteiros a partir de números naturais pode ser encontrada neste link.
Neste contexto, é um erro a afirmação muito comum de que o conjunto dos números naturais está contido no conjunto dos números inteiros. O que de fato ocorre é que uma cópia canônica dos números naturais pode ser encontrada entre os números inteiros, uma vez que todas as propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números naturais estão copiadas entre os números inteiros. As famosas regras de sinais para a multiplicação entre inteiros são simples teoremas, neste contexto. É um mistério por que esse tipo de conhecimento não é abordado no ensino médio. Não há necessidade de apelar para ZFC, no caso de uma transposição de conhecimentos. Basta usarmos teoria intuitiva de conjuntos para que seja apresentada uma devida fundamentação para as conhecidas regras de sinais, as quais são costumeiramente vistas pelos alunos como meras arbitrariedades.
Com preocupante frequência costuma-se dizer também que números racionais são aqueles que podem ser representados na forma de frações p/q, sendo p e q inteiros e q diferente de zero. Ora, isso não faz sentido, por dois motivos: (i) Não existe divisão entre números inteiros (uma vez que não existem simétricos multiplicativos entre inteiros); e (ii) Não se estabelece um conceito a partir de uma notação.
O que difere números racionais de números inteiros são as propriedades algébricas da multiplicação. A multiplicação entre racionais admite a existência de simétricos, exceto para o neutro aditivo (zero). Isso não ocorre entre números inteiros! Como se expressa essa ideia? A resposta é novamente simples. Análogos aos axiomas da multiplicação entre números inteiros são fortalecidos com um axioma extra para racionais que diz: para todo número racional r diferente de zero existe um racional s tal que r.s é igual ao neutro multiplicativo (um). A partir disso costuma-se falar de uma "operação" de divisão: r dividido por s é igual a r vezes o simétrico multiplicativo de s. No entanto, a divisão, neste sentido, não se trata de uma operação entre números racionais, uma vez que usualmente não se divide por zero. Operações, em uma linguagem como aquela empregada em ZFC, são funções (um caso especial de conjunto). E funções definidas sobre os números racionais devem permitir a identificação de imagens para todo e qualquer número racional. Como usualmente não se define divisão por zero, logo a divisão não é uma operação, mas apenas uma relação. As demais propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números inteiros (comutatividade, associatividade, elemento neutro, distributividade e simétrico aditivo) são copiadas entre os números racionais. Uma maneira de apresentar modelos para números racionais é através de classes de equivalência de pares ordenados de números inteiros (desde que certos cuidados sejam tomados em ZFC). Uma visão meramente intuitiva e indolor sobre essa construção de números racionais a partir de números inteiros pode ser encontrada neste link.
É um erro comum afirmar que todo número inteiro é racional. Analogamente à discussão sobre naturais e inteiros, feita acima, entre os racionais existe uma cópia canônica dos números inteiros. De um ponto de vista meramente didático, gera-se muita confusão quando se afirma que todo inteiro é racional. Afinal, o número racional 3,000000... é conceitualmente diferente do inteiro 3. Isso porque números racionais podem ser representados por frações (uma vez que existe divisão). Por exemplo, 3,0000000... é igual a 30,00000... dividido por 10,00000... . No entanto, o inteiro 3 não é equivalente à razão entre os inteiros 30 e 10, uma vez que não é usual definir divisão entre inteiros. Quando um autor se refere ao racional 3,00000... através do símbolo 3, está apenas apelando para uma notação abusiva.
O 3 inteiro é uma classe de equivalência de pares ordenados de naturais, enquanto o 3 racional é uma classe de equivalência de pares ordenados de números inteiros. As respectivas relações de equivalência que permitem definir tais classes de equivalência são discutidas nos links indicados acima.
Números reais são diferentes de números racionais no seguinte sentido: além de admitirem cópias das propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números racionais, ainda garantem que toda sequência de Cauchy é convergente. A compreensão deste resultado demanda estudos sobre análise matemática. Números reais, do ponto de vista algébrico, constituem aquilo que se chama de corpo ordenado completo. Uma maneira simples para se apresentar um modelo de números reais a partir dos racionais é através de uma relação de equivalência entre sequências de Cauchy de racionais. Sequências de Cauchy de racionais que sejam convergentes (convergem para um racional) são representantes (em uma classe de equivalência) de cópias de racionais entre os números reais. Sequências de Cauchy de racionais que não sejam convergentes (não convergem para um racional) são representantes de números reais que não são cópias de racionais: estes são os conhecidos números irracionais. Uma explicação bastante acessível para este tipo de construção de números reais a partir de números racionais se encontra neste link.
Já os números complexos são diferentes dos números reais no seguinte sentido: toda equação polinomial de uma variável, com coeficientes complexos, admite pelo menos uma raiz (Teorema Fundamental da Álgebra). Entre os números reais este resultado não vale. Por exemplo, a equação polinomial x^2 + 1 = 0 não admite solução entre os números reais, mas sim entre os números complexos.
Portanto, o que diferencia números complexos de números reais são as propriedades algébricas da multiplicação. Todas as propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números reais são copiadas entre os complexos. No entanto, os complexos ainda permitem uma propriedade algébrica para a multiplicação que não pode ser copiada entre os reais: aquela que remete ao Teorema Fundamental da Álgebra.
Uma maneira simples de apresentar um modelo para números complexos a partir de números reais é através da definição de números complexos como pares ordenados de números reais. Não encontrei uma boa referência na internet para isso. Então explico rapidamente aqui mesmo.
Um número complexo pode ser modelado como um par ordenado de números reais (r, s), desde que as operações de adição e multiplicação sejam definidas da seguinte maneira:
(r, s)+(t, u) = (r+t, s+u)(r, s).(t, u) = (r.t-s.u, r.u+s.t).
Observe que, do lado direito de ambas as igualdades, estamos usando apenas operações entre números reais: adição e multiplicação (uma subtração a - b é apenas uma adição de a com o simétrico aditivo de b).
A partir dessas operações de adição e multiplicação entre complexos é possível provar os seguintes teoremas:
I) (0,0) é neutro aditivo entre complexos.
II) (1,0) é neutro multiplicativo entre complexos.
III) (-1,0) é simétrico aditivo de (1,0).
IV) (0,1) elevado ao quadrado [ou seja, (0,1).(0,1)] é igual a (-1,0).
O teorema IV é surpreendente! Garante a existência de um número complexo cujo quadrado é igual ao simétrico aditivo do neutro multiplicativo. Não acontece fenômeno análogo entre os números reais! Nenhum número real ao quadrado pode resultar em um número real negativo. E é este resultado dos complexos (Teorema IV) que viabiliza o Teorema Fundamental da Álgebra!
Consequentemente, podemos demonstrar o seguinte resultado: todo número complexo (a, b) pode ser escrito na forma (a, 0).(1, 0) + (b, 0).(0, 1). O que isso significa na prática? Ora, todos os complexos da forma (a, 0) ou (b, 0) são cópias dos números reais, no sentido de satisfazerem todas as propriedades algébricas da adição e da multiplicação entre números reais. Logo, podemos abreviar (a, 0), (b, 0) e (1, 0) como simplesmente a, b e 1, respectivamente. Esta é uma notação abusiva, mas muito comum. Como a constante (0, 1) tem uma propriedade algébrica bizarra (se compararmos com os números reais), costuma-se denotá-la como i e chamá-la de unidade imaginária. Logo, a expressão
(a, 0).(1, 0) + (b, 0).(0, 1)
é simplesmente abreviada como
a + bi.
O erro comum entre livros didáticos está na afirmação de que a e b são números reais. Isso é falso! a e b são números complexos que são cópias canônicas de números reais. Não faz sentido algum afirmar que a e b são números reais. Afinal, como pode um número real b ser multiplicado por i (algo que evidentemente não é real) e ainda somarmos o resultado com o número real a? É esse tipo de erro que contribui muito em visões distorcidas da matemática entre alunos.
Além de todos esses exemplos, ainda existem os números hipercomplexos, hiperreais, surreais, transfinitos, entre muitos outros. Quais seriam esses muitos outros? Bem, dependendo da fundamentação conjuntista adotada, os próprios conceitos de números naturais, inteiros, racionais, reais, complexos, hipercomplexos, hiperreais, surreais e transfinitos, mudam. A escolha de diferentes teorias formais de conjuntos acarreta em diferentes formulações para o conceito de número. Além disso, nada impede que tais conceitos de número sejam formulados em teorias formais axiomáticas que nada tenham a ver com conjuntos, como as formulações categoriais para a matemática.
E, para finalizar esta postagem, quero também lembrar que a visão usual de que números reais servem ao propósito de medir (como se faz em física ou engenharias), apresenta outro tipo de limitação. Físicos e engenheiros não precisam necessariamente usar números para medir.
Em seu célebre e brilhante livro Science Without Numbers, o filósofo Hartry Field apresenta uma convincente argumentação em favor do nominalismo em filosofia da matemática. Nominalismo em matemática se sustenta na tese de que objetos matemáticos simplesmente não existem ou, pelo menos, não existem na forma de conceitos abstratos. Neste contexto, Field mostra como desenvolver uma cópia da teoria gravitacional de Newton sem usar números.
Enfim, é bem possível que matemáticos simplesmente não saibam o que estão fazendo.___________Nota: Fui alertado agora há pouco (13/05/2015 - 22:16h) que existe sim uma ótima referência (em português) na internet para números complexos. Basta clicar aqui para acessar.
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