Educação
O Problema da Cola nas Universidades
Existem alunos que colam porque não estudam. Existem aqueles que colam porque sabem pensar criticamente. E existem até mesmo professores que trapaceiam em avaliações, para favorecer seus alunos.
Como já afirmei anteriormente, decidi que não reprovarei mais aluno algum por nota. Tomei essa decisão a partir do momento em que a UFPR assinou o satânico contrato REUNI com o Governo Federal, o qual impõe aprovação mínima de 90% dos alunos. Mesmo assim, muitos dos jovens que supostamente acompanham minhas aulas ainda agem como se estivessem submetidos às regras usuais de avaliação.
É claro que ainda aplico provas. Mas independentemente de qualquer nota conquistada, cada um deles tem a aprovação garantida com média final mínima de 50. Tudo o que precisam fazer é simplesmente comparecer nos dias de avaliação e assinar suas respectivas provas. Ainda assim houve um evento bizarro recentemente, que ilustra a inercial submissão de muitos à tradição da avaliação com poder punitivo.
Durante uma prova que apliquei dias atrás, um aluno pediu para ir ao banheiro. Naturalmente permiti. O curioso foi o gesto seguinte dele. Este aluno pegou um rolo de papel higiênico que carregava em sua mochila e o estendeu para mim, sacudindo aquele utensílio diante de meu olhos. Inicialmente fiquei confuso, vendo aquele rolo de papel balançando em minha frente. O que exatamente aquele jovem queria? Esperava que eu usasse seu papel higiênico? Nele? Foi então que compreendi. Ele queria provar que não havia cola alguma no rolo de papel.
Quando ingressei na UFPR como professor, em 1990, eu ainda tinha uma certa preocupação sobre trapaças de alunos - herança de minha experiência anterior, trabalhando em escolas de ensino fundamental e médio, como Barddal, SESC, Colégio Estadual do Paraná e Positivo Junior.
No ano seguinte fui liberado pelo Departamento de Matemática (onde estou lotado) para realizar meu doutoramento. A partir de 1994, quando retornei às minhas atividades docentes, mudei de postura em relação a cola (trapaças em avaliações). Como não existe código de ética entre professores, decidi não procurar por fraudadores durante minhas avaliações. Apenas tomei cuidado para que não houvesse evidentes flagrantes de desonestidade. Por sorte, jamais tive este problema em qualquer uma de minhas turmas. Se algum aluno meu colou, foi sensato o bastante para fazer isso de forma discreta.
No livro How to Teach Mathematics (citado várias vezes neste blog), Steven Krantz discute sobre o tema da cola. Na opinião dele a cola é um problema insolúvel que gera frustrações em professores e em alunos que não trapaceiam. Afinal, o estudante honesto pode se sentir prejudicado ao perceber que seu esforço poderia ser substituído por mero embuste.
Por um lado, o professor não pode ser leniente com alunos desonestos em suas avaliações. No entanto, Krantz recomenda que ações contra estudantes trapaceiros não devem ser tomadas pelo professor sem o apoio institucional da escola. Isso porque há muitas situações nas quais a identificação da cola se baseia apenas em evidências circunstanciais e não necessariamente em flagrantes. Além disso, o tratamento a estudantes que colam deve ser igualitário, atendendo à política da instituição de ensino. Isso porque há casos até mesmo de expulsão de alunos, que pode ser legalmente sustentada sob a acusação de falsidade ideológica. O Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e o Instituto Militar de Engenharia (IME) são raros exemplos de instituições brasileiras de ensino superior que adotam políticas enérgicas contra o logro em avaliações.
Nas grandes universidades norte-americanas (aquelas pertencentes à Ivy League) existe um código de honra que deve ser rigorosamente seguido por estudantes e mestres. Os alunos prestam um juramento e o assinam. Esse código de honra inclui alguns procedimentos práticos. O professor, por exemplo, distribui as provas e escreve na lousa a frase “Eu juro pela minha honra que não entreguei ou recebi informações durante esta avaliação”. Essa frase deve ser copiada pelos estudantes ao final da avaliação e assinada. Em seguida o professor se retira da sala, deixando a responsabilidade do honesto andamento da avaliação integralmente nas mãos dos alunos. Eventualmente o professor pode retornar à sala para responder a questões individuais, mas sem se preocupar com a honestidade de seus alunos. Afinal, o termo de compromisso escrito e assinado por aqueles que estão realizando a avaliação constitui instrumento legal.
Segundo Krantz, o aspecto crítico do código de honra é o fato de que estudantes são responsáveis também pela denúncia de colegas que foram vistos colando. Na prática, porém, a experiência tem mostrado que os estudantes preferem deixar o papel da denúncia nas mãos de autoridades escolares. A figura do “dedo-duro” é fortemente rejeitada entre alunos.
Como no Brasil não há instituições civis de ensino superior que sejam comparáveis a alguma universidade norte-americana da Ivy League, tal método sustentado em código de honra talvez não funcione. Somos um povo que desconhece o conceito de honra. No Brasil as instituições militares de ensino superior, como o ITA, adotam posturas comparáveis. Mas isso é reflexo da disciplina militar e não necessariamente de uma postura de compromisso com o exercício de cidadania, o qual deve ser entendido também como um constituinte na formação de caráter.
Porém, se quisermos pensar seriamente sobre a imposição de códigos de honra nas universidades brasileiras, precisamos ponderar sobre as diferenças sociais consideráveis entre estudantes universitários brasileiros e norte-americanos. Já tive a oportunidade de testemunhar a chegada de calouros ao primeiro dia de aula na Universidade Stanford. Os rapazes, em sua maioria, chegam vestindo terno com gravata. E as moças usam delicados vestidos. A chegada de todos é calma, em meio a um ambiente de civilidade. Muito diferente dos selvagens trotes que até hoje se praticam por aqui. No Brasil ainda existem casos de rituais de trote contra calouros que resultam em violência, humilhação e hospitalização.
As famosas fraternidades das universidades norte-americanas, que operam como grêmios estudantis, estão sujeitas a rígidas regras de civilidade que, em caso de violação, preveem severas punições. Isso ocorre pelo menos nas universidades da Ivy League.
Ainda assim, no caso de avaliações objetivas, algumas instituições de ensino superior dos Estados Unidos chegam a empregar métodos estatísticos para a detecção de correlações anômalas entre avaliações de diferentes alunos. Diante desse tipo de identificação, frequentemente o estudante sob investigação fica sem argumentos para se defender durante uma simples entrevista. Mesmo assim, o código de honra das universidades da Ivy League garante a existência e a prática de instrumentos para a defesa de estudantes que são suspeitos de fraude.
Mas há alguns aspectos que Krantz não leva em conta em seu excelente livro e que julgo importantes, principalmente sob o foco da realidade brasileira. Ele afirma que o professor não deve ser leniente em relação a fraudadores. No entanto, esquece que professores que leem um livro como o dele são profissionais que desejam refletir seriamente sobre maneiras para melhorar a qualidade de suas aulas e avaliações. E quanto aos demais?
Existem professores que exigem absurdos de seus alunos, como a memorização de complicadas fórmulas matemáticas, tabelas, nomes, datas. Lembro de uma prova que fiz na quinta série do ensino fundamental, na qual eu deveria saber os nomes e as localizações de vinte rios brasileiros. Por sorte, minha mãe ajudou no processo de memorização e conquistei nota máxima naquela absurda avaliação. Dias depois, porém, esqueci os dados decorados sobre a maioria dos rios. O que se prova com isso? Se o professor exige o domínio de informações que não refletem conhecimento real, não seria justificável o emprego de cola? Não pode a cola ser encarada também como um gesto de autodefesa contra a prejudicial falta de bom senso de certos docentes?
Meras informações não estimulam estudantes. Conhecimento, por outro lado, pode ter um papel bastante estimulante para o intelecto. No entanto, nem todos os docentes estão cientes disso. Quantos são aqueles que sabem a diferença entre um fato e uma verdade? A distinção entre fato e verdade não é algo que interessa apenas aos estudiosos da teoria do conhecimento. Essa diferença de conceitos tem reflexos até mesmo na prática de ensino.
Conheço muitos casos de profissionais de alto nível que, em seus tempos de estudos em instituições de ensino, colaram em várias ocasiões. Eu mesmo colei na escola, quando percebi que o professor era um paspalho. Conheço o caso de um famoso cientista brasileiro (de excelente reputação internacional) que ocasionalmente enviava o irmão em seu lugar para fazer certas provas nos tempos de faculdade. E esse cientista é indiscutivelmente um amante do conhecimento como poucos que conheci. No entanto, diante de uma instituição de ensino que age como uma farsa, por que não se justifica a defesa contra essa farsa?
Quando fiz o vestibular em 1982, sentei na carteira que eu usaria pelas próximas horas, com bastante antecedência. Comecei então a deduzir várias fórmulas matemáticas que julguei serem necessárias para a avaliação. Eu não lembrava das fórmulas, mas sabia como demonstrá-las. Fiz isso sobre a carteira de madeira, antes de receber as folhas com as questões. Se o fiscal tivesse visto aquilo, penso quais poderiam ser as consequências. Minha carteira continha evidências inquestionáveis de cola. Por sorte o fiscal estava mais interessado em conversar com seu colega durante a realização do vestibular.
Não estou justificando erros através de outros erros. Não é essa a questão. Estou colocando a ideia de que certos casos de cola podem ser justificados como mecanismos de autodefesa contra a estupidez de certos docentes ou até mesmo de todo o sistema de educação. Não se justifica um assassinato por conta de outro. Mas matar alguém como forma de autodefesa é plenamente justificável pelos parâmetros de nossa própria sociedade.
No Reino Unido algo mais bizarro ainda foi identificado. Os próprios professores estão trapaceando para que seus alunos tenham resultados melhores em avaliações. Isso decorre da pressão que docentes recebem diariamente de instâncias superiores.
Portanto, a política de tolerância zero contra a cola é certamente absurda. Os contextos social e individual sempre devem ser avaliados. O aluno que não estudou, pratica a cola como ato de desespero. Ele quer marcar cartas em um jogo de azar. Portanto, está fomentando o fracasso profissional de seu próprio futuro. E o aluno que estudou, pode colar como mecanismo de defesa contra professores medíocres ou até mesmo como instrumento psicológico de segurança. Pressões sociais não podem ser negligenciadas.
No caso das universidades federais e estaduais brasileiras, desconheço a existência de qualquer uma que adote alguma política séria para lidar com fraudes. Isso acontece talvez porque nosso sistema de ensino seja reconhecidamente uma fraude, muito pior do que qualquer ato de cola. Quem, portanto, devemos condenar?
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