O estado da educação nas faculdades de direito do Brasil
Educação

O estado da educação nas faculdades de direito do Brasil



O texto abaixo é uma extraordinária contribuição de Ítalo José da Silva Oliveira, mestrando em Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Já há algum tempo venho negociando com ele a publicação desta postagem, a qual é um retrato sóbrio mas incisivo sobre o ensino nas faculdades de direito de nosso país. Devo confessar que eu mesmo fiquei surpreso com o que li, pois sempre percebi que, de fato, os melhores alunos da Universidade Federal do Paraná (instituição onde trabalho) são os do curso de direito. No entanto, não há como negar: mesmo os mais brilhantes cedem à mediocridade social que inunda nosso país. 

Espero que o leitor saiba aproveitar o artigo abaixo. O Brasil precisa urgentemente de significativas transformações sociais.
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O estado da educação nas faculdades de direito do Brasil
escrito por Ítalo José da Silva Oliveira



Pretendo descrever a situação da educação, incluindo a pós-graduação, nas escolas de direito do Brasil. Como me formei na Faculdade de Direito do Recife (FDR), integrada desde 1946 à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), minhas considerações naturalmente estão baseadas em minha experiência como discente; no entanto, dado que muito do que ocorre na FDR está relacionado a uma conjuntura nacional, não é descabido supor, como os relatos que conheço indicam, que grande parte disso se repete nas faculdades de direito ao redor do país – de modo que há razões para admitir que as induções empíricas feitas neste texto têm certa plausibilidade, mesmo quando carentes de estatísticas. Também falarei um pouco sobre a produção acadêmica na área e a prática profissional. Ainda que minha avaliação seja limitada e sujeita a imprecisões, tenho esperança de que sirva para estimular o debate sobre a educação superior em direito, algo com que me preocupo.

Atualmente o vestibular tradicional não é mais o principal critério de seleção dos interessados em ingressar na UFPE, que recentemente aderiu ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e usará a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem); mas isso não deve mudar o fato de que o curso de direito, como o de medicina, esteja entre os três cursos mais concorridos da UFPE. Dada as grandes diferenças sociais de acesso à educação e a condições apropriadas para uma boa formação, a concorrência elevada para o curso de direito, em regra, tende a atrair os melhores e mais bem qualificados alunos (alunos com uma boa base educacional), enquanto cursos de baixa concorrência, como filosofia, atraem, em regra, os piores alunos no momento do ingresso (alunos com uma base não tão boa). Apesar disso, um professor eminente da casa costumava criticar a faculdade dizendo que na FDR os alunos “entram inteligentes e saem burros” (não exatamente com essas palavras) – o que parece paradoxal.

Ora, tradicionalmente, a FDR é considerada uma das melhores escolas de direito do Nordeste e por ela já passaram (como docentes ou discentes) personalidades influentes da cultura e da história do Brasil: filósofos e juristas como Tobias Barreto, Sílvio Romero e Pontes de Miranda; o famoso abolicionista Joaquim Nabuco; os escritores Castro Alves, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego, João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna; o empresário Assis Chateaubriand; os políticos Miguel Arraes e Marco Maciel; o músico Alceu Valença; o tradutor e lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (editor do popular “Dicionário Aurélio”); só para citar alguns.

Lembrando que foi na FDR onde surgiu um movimento intelectual brasileiro importante que abrangia diversas Humanidades, denominado Escola do Recife, sobre o qual Antônio Paim escreveu em seus estudos de história das ideias brasileiras.

Os desempenhos dos alunos da FDR no Exame de Ordem (no qual é necessário ter a aprovação para poder se inscrever na Ordem dos Advogados do Brasil [OAB] e, assim, poder exercer legalmente a advocacia) também sugerem a boa qualidade do curso: em 2012, no V Exame de Ordem, por exemplo, a UFPE obteve o segundo maior índice de aprovação do país, com 78,57%, sendo que o total percentual dos aprovados entre todos os inscritos foi de apenas 24%. Por que então alguém diria aquilo?

Em primeiro lugar, a razão para pessoas como aquelas terem circulado pela FDR teve a ver, no passado, com fato de ela ter sido, por muito tempo, uma das únicas instituições de ensino para onde a elite econômica da região Nordeste poderia mandar seus filhos, e isso atraiu jovens com os mais diversos interesses; a faculdade tinha um perfil mais humanístico do que hoje (mais “técnico”). Atualmente, essas pessoas poderiam estar mais bem alocadas em cursos como sociologia, história, letras, filosofia, administração, economia, música, cinema e outros – à época inexistentes. O fato de haver certa tradição familiar em direito, associada ao prestígio e às possibilidades econômicas do curso, também contribuiu, e ainda hoje contribui, para o ingresso de pessoas com diferentes interesses, mas sujeitas àquela tradição. Algo semelhante ocorre com a “irmã-gêmea” da FDR, a Faculdade de Direito de São Paulo (hoje parte na Universidade de São Paulo, USP).

Em segundo lugar, ao aceitarmos um bom aproveitamento no Exame da OAB como critério de qualidade do curso de direito, deixamos de questionar os próprios critérios usados pelo exame e pelos concursos públicos em geral, e veremos que é duvidoso que sejam avaliações produtivas.

A estruturação dos cursos de direito do país é inevitavelmente influenciada pelo mercado de serviços jurídicos, mas, e talvez isso seja mais relevante, também pelo Exame da OAB e pelos concursos públicos em geral. Esses dois últimos são, na imensa maioria dos casos, tanto em faculdades públicas quanto privadas, os maiores desejos dos estudantes de direito: o sonho brasileiro da estabilidade financeira. Uma ressalva: o Exame de Ordem é almejado principalmente na medida em que é necessário para a aprovação em concursos públicos, como em cargos para a Defensorias Pública, Procuradorias e Promotorias. Há um ditado interno irônico que diz que é advogado quem ainda não passou em concurso. Com isso quero ressaltar que o interesse em empreender e buscar o sucesso profissional na iniciativa privada não é tão comum entre os estudantes brasileiros de direito quanto o interesse em concursos públicos. Metaforicamente, podemos dizer que hoje em dia não existem sonhos nas faculdades de direito do Brasil. Diante da pergunta “O que você quer ser quando crescer?”, o estudante de direito típico vira os olhos, confuso, sem saber o que dizer, até responder: “Passar em concurso”. “Sim, mas o que você quer ser?” insistem os sonhadores. O estudante então diz: “Ah, a minha profissão. Aí vai depender do concurso em que eu passar, né!”. E como passar nesses concursos?

No Brasil, as provas de concurso público, bem como as do Exame de Ordem, em geral requerem, acima de tudo, uma habilidade: memorização. O candidato precisa sempre saber o que está escrito na legislação (em alguns casos literalmente) e, eventualmente, o que está dito no momento em decisões judiciais e doutrinas jurídicas dominantes. A avaliação usual é feita mediante provas de múltipla escolha (sobre alguns problemas desse tipo de avaliação, ver AQUI), na qual o candidato precisa separar, dentre as alternativas, as respostas certas e erradas, sendo que o critério de certo e errado consiste basicamente na identificação de passagens da legislação, decisões e manuais de direito. Isso oferece um critério bastante objetivo e neutro para a seleção de candidatos, mas quase inteiramente inútil na avaliação das competências e dos conhecimentos do candidato – mesmo das competências e dos conhecimentos relevantes para o cargo do concurso.

Assim, a maioria dos alunos tende a menosprezar quaisquer disciplinas e iniciativas pedagógicas que não sejam imediatamente úteis para o propósito de passar em um concurso público. Matérias como filosofia, sociologia, psicologia, economia e ciência política são vistas com a suspeita de inutilidade; são entraves aos seus objetivos. As disciplinas que lhes interessam não têm sufixo “-logia”, nem começam com “Teoria”; são matérias que quase sempre começam com “Direito” (Constitucional, Civil, Penal, etc.) e devidamente lecionadas: os alunos desejam que o professor siga a ordem da legislação, apresentando-a passo a passo (algo que poderia ser feito, individualmente, por qualquer um, em qualquer lugar tranquilo, apenas lendo). Na verdade, o imediatismo dos alunos chega a tal ponto, que a própria faculdade de direito é com frequência vista apenas como um obstáculo entre o aluno e seu tão sonhado cargo público bem remunerado, de modo que muitos alunos menosprezam quaisquer disciplinas, focando-se nos assuntos de cursinhos preparatórios e estudos em casa para concurso, além de fazerem de tudo para concluir o curso no menor prazo possível (há outro ditado interno que diz que as maiores felicidades do aluno da FDR ocorrem quando entra na faculdade e quando sai). Em resumo, a questão é obter um diploma. A recente proliferação de faculdades de direito privadas pelo Brasil é, em parte, consequência dessa demanda, ao mesmo tempo em que contribui para a manutenção dela.

Há professores (não todos, é claro) que são lenientes com o desprezo dos alunos pelo estudo sério e pelo conhecimento acadêmico e, sob estímulo do menor esforço, compactuam com os alunos de diversas formas: dando aulas restritas à apresentação da legislação; facilitando a aprovação na disciplina; não exigindo tarefas ou projetos extraclasse, senão para facilitar a aprovação; realizando seminários durante toda a disciplina, fazendo, na prática, com que os alunos deem aulas no lugar do professor; etc. Qualquer exigência que não conste na ementa de uma disciplina ou não tenha sido verticalmente dada em sala de aula pelo professor é motivo para revolta dos alunos – insatisfação essa que os professores procuram evitar. Esse equilíbrio de interesses que satisfaz tanto a maioria dos alunos quanto boa parte dos professores é às vezes chamado nos corredores de “pacto de mediocridade”.

Vale ressaltar que, nas faculdades públicas de direito, mesmo os piores professores – ainda que sob os critérios de memorização e de aulas expositivas desejados pelos alunos –, mesmo os professores mais arbitrários e intransigentes, dificilmente (para não dizer “nunca”) são demitidos ou exonerados, dada a estabilidade do emprego público. Ou seja, a não ser que seja um professor substituto, o professor tem seu emprego garantido independente da qualidade de seu trabalho. Na prática, isso contribui para a reprodução das práticas de educação, quaisquer que sejam, boas ou más, nas faculdades de direito do país – a despeito do fato de uma das finalidades da estabilidade ser garantir a independência do pesquisador. Essa é uma discussão complexa e não estou sugerindo que não deva haver essa estabilidade no Brasil, mas que isso precisa ser discutido e repensado. AQUI um texto útil para começar a discussão, falando sobre como funciona a estabilidade (tenure) nas universidades americanas.

O professor Torquato Castro Júnior (UFPE), da FDR, investigando as práticas de ensino nas faculdades de direito em relação com a prática profissional, costuma dizer, concordando com o jurista Luis Alberto Warat, que as faculdades de direito mais se parecem com misteriosos templos religiosos (o “monastério dos sábios”, nas palavras de Warat) do que com instituições produtoras de conhecimento, pois “doutrinação”, para não dizer “adestramento”, é o termo mais apropriado ao que é feito pelos professores de direito no culto aos deuses “Norma Jurídica”, “Estado Democrático de Direito”, “Constituição”, “Princípios Jurídicos”, entre outros. Os professores, segundo ele, mais parecem sacerdotes que realizam a catequese dos alunos inculcando coisas como “Isso é certo”, “Aquilo é errado”, “Isso pode”, “Aquilo não pode”, e a pergunta mais frequente nas salas de aula tem a forma de “Isso pode, professor?”, ao que o professor responde com a autoridade de um padre pregador da religião “Direito”, à qual os alunos estarão convertidos ao final do curso. Esse processo de catequese é reforçado pela prática jurídica, em questões massificadas ou burocráticas, quando o aluno, em estágio ou como profissional (seja em escritórios de advocacia, seja em cargos do poder judiciário), realiza as operações clássicas de copiar e colar textos no computador ou no máximo um exercício argumentativo pobre baseado em hábitos aprendidos na faculdade e na prática profissional. Naturalmente, essa catequese e esses hábitos são totalmente inapropriados para lidar com questões complexas, nas quais o profissional se depara com problemas que exigem soluções individuais e criativas, que envolvem conhecimentos e sensibilidade que vão muito além da capacidade de memorização.

Uma educação assim, alheia às práticas de pesquisa científica, gera efeitos curiosos quando alunos e professores são chamados a escrever textos acadêmicos: suas monografias, dissertações, artigos e teses mais se parecem com petições iniciais, nas quais interesses prévios são defendidos ou contrapostos face a um julgador através de “argumentos” que recorrem sempre ao que “a lei diz” ou ao que “o legislador quis dizer” ou ao “espírito da lei” ou aos “princípios jurídicos” ou ao que “a Constituição diz” ou à “doutrina majoritária”, etc. Assim, alunos e professores escrevem sobre coisas como a aplicabilidade (ou não) da Lei Maria da Penha para homens, a constitucionalidade (ou não) da Lei Seca, se o conceito de família da Constituição inclui (ou não) uniões homoafetivas, se há “colisão de direitos fundamentais” entre direito à propriedade e direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, etc. Através de diversas estratégias retóricas, criam uma série de justificações com algum encadeamento lógico questionável que tentam firmar uma escolha política com ares quase científicos, para tornar sua retórica mais eficaz. Hipóteses, inferências a partir delas, pesquisas e testes empíricos, coleta de dados, produção ou uso de estatísticas, consideração de consequências, consideração de posições divergentes, explicações de fatos, teorias, autocrítica, reconhecimento de dificuldades ou fraquezas (fora as vantagens) da própria posição, apresentação de problemas em aberto, simplicidade teórica, tudo isso são procedimentos marginais, raríssimos nos textos acadêmicos de professores e alunos de escolas de direito no Brasil – mesmo sendo esses procedimentos, entre outros, fundamentais à atividade científica. E, ironicamente, a literatura jurídica está cheia de “teorias” – termo usado para nomear, de modo retoricamente eficaz, interesses prévios defendidos em fóruns. Obviamente, a defesa acadêmica séria de uma solução jurídica para um caso ou para um tipo de caso pode ser feita, mas, sem dúvida, não da forma como tem sido feita na imensa maioria dos casos – com pretensões pseudocientíficas e argumentação “estritamente” jurídica. Para entender um pouco sobre como pode ser feita uma pesquisa empírica em direito, recomendo o ensaio acessível AQUI. Um curto artigo, de 1999, do professor João Maurício Adeodato (UFPE, FDR) já denunciava alguns problemas e tentava oferecer “Bases para uma metodologia de pesquisa em direito”.

Outro vício ainda mais curioso que pode ser amplamente encontrado em textos acadêmicos de professores e alunos de direito é a sequência: a) introdução; b) evolução histórica; c) conceitos; d) fontes do direito; e) princípios; f) questões legais e jurisprudenciais; g) conclusão. Sem nenhuma razão lógica, essa sequência aparece em monografias de graduação, teses de mestrado e doutorado e até em artigos. E professores chegam a repreender alunos que não incluam um desses elementos em seus textos acadêmicos, pois esses professores foram formados acreditando na correção e na utilidade desse procedimento – o que contribui para a reprodução desse hábito. De onde ele vem? Sua causa próxima está nos manuais de direito (“Manual de Direito X”, “Curso de Direito Y”, “Noções de Direito Z”, etc.), que seguem irrefletidamente essa sequência, mas também por motivos didáticos – o que, em geral, não deveria ser o caso de um texto acadêmico fruto de uma “pesquisa”, cujo objetivo é diferente.

Costumo dizer que, no Brasil, não existe propriamente academia em direito. Isso porque existem relações tais entre a prática profissional e a “academia” (incluindo aqui as “pesquisas”), que o ambiente autocrítico e o compromisso e a curiosidade intelectuais são severamente restringidos ou postos de lado. Por quê? Há várias razões: (1) aparentemente, parte das especializações em direito são fundamentalmente cursinhos preparatórios para concurso, cujo principal objetivo não é aprimorar as competências práticas profissionais ou produzir conhecimentos úteis à prática, mas ajudar na aprovação dos seus alunos em concursos públicos, ao mesmo tempo em que atribui ao aluno um título que agrega status e valor ao seu currículo profissional (servidores públicos, por exemplo, ganham adicionais pela titulação que possuem, e os concursos em geral contam com uma prova de títulos, incorporados à pontuação do candidato); (2) o interesse no mestrado e no doutorado nem sempre é na pesquisa acadêmica ou científica, mas no título que confere ao currículo várias vantagens (além das já citadas): aumento de status no meio social (o que tem implicações no fortalecimento de sua retórica forense, dando mais valor também aos seus pareceres jurídicos); a pós-graduação se torna acessória da prática profissional; o professor e Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Lênio Luiz Streck (UNISINOS), crítico constante do ensino jurídico no Brasil, fala um pouco disso AQUI, uma matéria sobre o “jeitinho” de juristas obterem doutorado na Argentina; (3) trabalhos polêmicos ou críticos, por mais bem fundamentados e por mais importantes que sejam socialmente, podem ter uma repercussão negativa para o autor, em seu meio profissional, podendo gerar inimigos ou represálias; existe uma cultura de aparências amistosas entre os profissionais do direito do país (e professores de direito normalmente também atuam na prática jurídica), uma cordialidade, que é uma das bases de sustentação da retórica (e do sucesso) dos profissionais – de modo semelhante ao que ocorre na política; obviamente, networking e boas relações pessoais são fundamentais em qualquer profissão, mas em direito isso está de tal modo atrelado à academia, que dificulta a existência de um ambiente livre para críticas, típico da academia e da ciência em qualquer área; (4) alguns trabalhos considerados “acadêmicos” que seguem o modo de operação de uma petição inicial e são com frequência classificados como “doutrina jurídica” estão diretamente ligados a interesses econômicos do autor, cuja atividade profissional (digamos, um escritório de advocacia) se beneficia da aceitação da visão doutrinária defendida por ele quanto a uma questão jurídica; não estou sugerindo que haja má fé por parte do autor; trata-se de uma tendência à adequação entre sua visão de mundo e seus interesses econômicos – ou, em outros termos, um conflito de interesses entre seu interesse científico e seu interesse econômico; algo semelhante também parece ocorrer entre economistas, como mostrou o documentário Inside Job (2010) sobre a crise financeira de 2008. Isso parece comprometer gravemente qualquer noção aceitável de imparcialidade científica.

Nenhum desses fatores e considerações já citados, nada do que eu disse até agora, implica que, em direito, no Brasil não existam pesquisadores e estudantes sérios, curiosos, ambiciosos, que tentam realizar um bom trabalho sob padrões internacionais e almejam a excelência, fazem críticas e autocríticas independentes, e buscam uma formação além da mera reprodução de leis e doutrinas. Com certeza, existem; eu mesmo conheço vários. Receio, entretanto, que sejam a minoria, embora eu não tenha dados ou argumentos que confirmem em definitivo essa suspeita.

Mais considerações sobre o estado atual dos cursos de direito podem ser encontradas em textos do professor João Maurício Adeodato – por exemplo, na sua entrevista à Revista Jurídica CONSULEX, em 15 de fevereiro de 2012.

O “Documento de Área” (disponível AQUI) que faz parte da Avaliação Trianual (2013), da CAPES, no tópico “I. Considerações gerais sobre o estágio atual da área” (neste caso, de direito) diz o seguinte: “Hoje a produção científica brasileira da Área do Direito adquiriu inserção e respeitabilidade internacionais, o que se deixa traduzir pelo elevado número de publicações e participações de docentes e discentes brasileiros no exterior, bem como o despertar do interesse pelas escolas superiores brasileiras de Direito.”.

Resolvi investigar a consistência dessa afirmação quanto à inserção da produção jurídica brasileira no cenário internacional. Suponho que o “elevado número de publicações” se refira a publicações em periódicos estrangeiros respeitados, já que as produções em periódicos nacionais dificilmente alcançam qualquer repercussão na comunidade acadêmica internacional (a não ser, é claro, que sejam publicadas em inglês em algum periódico nacional respeitado, sob critérios internacionais). Seguirei um procedimento semelhante ao seguido AQUI e AQUI, com algumas alterações substanciais, numa avaliação da produção filosófica brasileira feita pelo professor Adonai Sant’Anna (UFPR). Por limitações minhas, usei apenas a Plataforma Lattes, do CNPq, para acessar informações quanto à produção jurídica brasileira. De certa forma, isso tende a criar uma distorção estatística em favor dos pesquisadores (a não ser que eles tenham preenchido errado, possibilidade que não levarei em consideração), já que a plataforma é usada por eles para obter bolsas dos órgãos de fomento à pesquisa e, portanto, eles têm interesse em manter a plataforma com informações atualizadas e úteis para esse fim – ainda que exista a possibilidade de haver informações inconsistentes com o que poderíamos encontrar numa comparação com um banco de dados internacional importante como o Web of Knowledge.

Quero deixar bem claro que, por mais que meu objetivo aqui seja unicamente discutir a educação jurídica do país, na esperança de contribuir para melhorá-la, evitarei fazer uma avaliação caso a caso dos pesquisadores, a fim evitar que alguém se sinta difamado ou injuriado, e farei, portanto, apenas comentários gerais, descrevendo padrões nos resultados.

Objetivo: avaliar a repercussão internacional da produção acadêmica brasileira em direito; avaliar se “Hoje a produção científica brasileira da Área do Direito adquiriu inserção e respeitabilidade internacionais, o que se deixa traduzir pelo elevado número de publicações (...)”, tal como o “Documento de Área” da Avaliação Trianual (2013), da CAPES, afirma.

Procedimento: usei os filtros do espaço de busca da Plataforma Lattes para identificar os pesquisadores 1A e 1B, que, para o CAPES e CNPq, representam o topo do ranking dos pesquisadores “Bolsistas de Produtividade do CNPq” e no campo de “Atuação profissional”>“Grande área: Ciências Sociais Aplicadas”>“Área: Direito”>“Subárea: Todas”>“Especialidade: Todas”. Ao todo são onze pesquisadores, sendo sete classificados como 1A, e quatro como 1B. Em seguida, avaliei, através dos “Indicadores de Produção”, o total de “Artigos Completos Publicados em Periódicos”, o “Total de Artigos com Citações” e a “Soma das Citações”, esses dois últimos em relação a duas bases de dados, o Web of Science (que faz parte das ferramentas do Web of Knowledge) e o Scopus – de ambas as quais o CNPq recupera os dados. Algumas eventuais informações adicionais foram encontradas ao longo do Lattes do pesquisador. As aspas indicam a expressão exatamente como está escrita na Plataforma Lattes. Minha avaliação buscou encontrar padrões, em vez de apresentar análises individuais. Os dados da plataforma foram coletados entre os dias 21 e 27 do mês de abril, de 2014.

Uma ressalva: do grupo 1B, dois pesquisadores são, na verdade, da área de exatas (um de engenharia, outro de geociências), sendo que um deles tem graduação em engenharia civil, administração e direito, mas seu mestrado e doutorado são em engenharia civil, e em ambos as “Áreas de atuação” de 1 a 5 são em exatas e apenas a sexta área é, conforme os próprios pesquisadores definiram, em direito (“Legislação Ambiental” e “Direito Ambiental”). Esse último detalhe deve ter sido a causa de o filtro da pesquisa da plataforma incluí-los, mas percebemos que, numa avaliação qualitativa, não temos razões para incluí-los dentro do grupo da área de direito. São amostras alheias ao objeto da nossa análise que por acaso passaram pela filtragem automática. Portanto, não os levarei em consideração aqui, de modo que a amostra passa a ser de nove pesquisadores.

Resultados:



Se esses resultados estão certos, é correto afirmar que “Hoje a produção científica brasileira da Área do Direito adquiriu inserção e respeitabilidade internacionais, o que se deixa traduzir pelo elevado número de publicações (...)”? Se pensarmos meramente na quantidade de artigos publicados, mesmo que em português e em periódicos de circulação nacional ou local, então está confirmado o “elevado número de publicações”, embora não esteja clara qual a suposta relação desse número com a “inserção e respeitabilidade internacionais” que supostamente a produção científica brasileira na área de direito teria adquirido. Ao contrário, nossos dados sugerem que essa produção passa praticamente desapercebida para a comunidade científica internacional na área de direito. Nossos dados sugerem que praticamente não existe inserção internacional da produção científica brasileira na área de direito – ao menos não, se considerarmos apenas a produção dos representantes dos dois mais altos níveis de pesquisa do CNPq, os 1A e os 1B.

Nesse ponto, colocamos (e deixaremos) uma pergunta em aberto: por que o “Documento de Área” da Avaliação Trianual (2013), da CAPES, afirma algo tão radicalmente inconsistente com informações oficiais presentes na própria Plataforma Lattes?

Vale destacar que nossos resultados não implicam que os pesquisadores analisados não sejam intelectualmente competentes; é possível, inclusive, que sejam intelectualmente brilhantes e eruditos (como eu creio que são, pois conheço alguns deles). Não é isso o que está sendo colocado em questão aqui.

Nossos dados também nada dizem sobre o conteúdo das publicações dos pesquisadores brasileiros analisados – se são produções boas ou não. O que os dados mostram claramente é que, seja o que for que os pesquisadores da amostra andem produzindo, a repercussão internacional desses trabalhos é quase nula.

É importante deixar claro que nossos resultados não implicam que pesquisadores “Bolsistas de Produtividade do CNPq” das classes 1C, 1D e 2, em direito, não tenham produção internacionalmente relevante. É possível que tenham. Para avaliar isso, convido meus leitores a realizar uma pesquisa empírica semelhante à apresentada neste texto. O número total de “Bolsistas de Produtividade do CNPq” das cinco classes é, atualmente, menor que 110 pesquisadores – um número tratável até para uma análise feita por apenas uma pessoa, desde que disponha de algum tempo; se a análise for feita por uma pequena equipe, pode ser mais rápida.

Outro ponto que é preciso deixar claro é que existem pesquisadores (incluindo mestres, graduados, estudantes, técnicos, etc.) que hoje não são “Bolsistas de Produtividade do CNPq” em um número, a princípio, não tratável por apenas nosso procedimento de análise (mais de cento e quarenta mil). Dentro dessa amostra existe a possibilidade de haver pesquisadores com trabalhos de repercussão internacional (medida pelo número de artigos e citações registradas em base de dados como a Web of Science). Por outro lado, é importante frisar também que os pesquisadores “Bolsistas de Produtividade do CNPq” das cinco classes (especialmente das duas primeiras) representam, nos critérios das agências brasileiras de fomento à pesquisa científica, o topo do ranking nacional – de quem é natural esperar produções científicas internacionalmente relevantes.

Um ponto importante que os resultados dessa pesquisa (bem como os da pesquisa sobre a área de filosofia no país realizada pelo professor Adonai Sant'Anna AQUI e AQUI, já citada acima) colocam em questão são os critérios de mérito usados para classificar os “Bolsistas de Produtividade do CNPq” em cinco classes. Se os órgãos de fomento à pesquisa científica do Brasil estão realmente preocupados com a “inserção e respeitabilidade internacionais” da produção acadêmica brasileira, então seus critérios de promoção parecem necessitar ser mais rigorosos quanto a isso, ao mesmo tempo em que deveriam estimular nossos pesquisadores a publicar em periódicos internacionais respeitados (principalmente em inglês), pois, ao menos nas áreas e amostras analisadas pelas duas pesquisas, os atuais estímulos e avaliações não parecem estar funcionando.

Eu gostaria de falar ainda sobre duas iniciativas acadêmicas interessantes dentro da área jurídica, uma realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e outra por um grupo de alunos da FDR. Ambas vão na contramão do perfil da educação jurídica brasileira e merecem nossa atenção. No primeiro caso, trata-se da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV (EDRJ)e da Escola de Direito de São Paulo da FGV (EDSP). A segunda iniciativa é um projeto idealizado pelos alunos da FDR chamado Direito em Foco (DF), do qual falarei agora – para depois falar da FGV.

O DF é um grupo criado e mantido por estudantes da FDR (sendo que alguns membros já se formaram) cujos objetivos integram três eixos de atividades paralelas: o “Eixo 1 – Teoria Geral e Filosofia do Direito”, o “Eixo 2 – Ensino Jurídico”, o “Eixo 3 – Laboratório Direito em Foco (LDF)”. Entre os membros do grupo estão os estudantes André Lucas Fernandes, Saulo Calado, Fernando Henrique Melo, Dã Felipe Mario, Raphael Tiburtino, Vitor Galvão Fraga, Waldo Ramalho, João Amadeus, Hélio Lemos Júnior, eu próprio, e vários outros – todos preocupados com a educação jurídica brasileira, bem como com a prática profissional. O DF também é aberto a quaisquer interessados – pertencentes ou não a um curso da UFPE.

O grupo surgiu a partir de insatisfações, ideias e discussões de dois alunos da FDR: André Lucas Fernandes e Saulo Calado. Juntos, no segundo semestre de 2011, eles idealizaram um grupo que estudasse assuntos marginalizados pela maior parte do currículo da FDR, especialmente teoria e filosofia do direito, com a ousada esperança de, quem sabe, reviver o ambiente da antiga Escola do Recife (citada no começo deste texto). No início de 2012 as atividades do grupo iniciaram-se propriamente com a criação de um grupo no Facebook e de reuniões periódicas nas quais havia discussões, organizadas por módulos de estudo, sobre temas fundamentais da teoria e filosofia do direito (Eixo 1), como a obra do jurista Hans Kelsen e a tradicional dicotomia entre Direito Natural e Direito Positivo. O grupo cresceu bastante desde sua criação. Entre as conversações, eram frequentes críticas ao ensino jurídico da FDR e das escolas de direito brasileiras. Dessas discussões surgiu o Eixo 2, que, segundo o blog do grupo, está “voltado a discutir as questões estruturais da falha no ensino da Faculdade de Direito e no ensino do direito no Brasil. Esse eixo manifesta uma complementação na formação do aluno, pois busca estimular, além do estudo, uma efetiva ação política contextualizada. É que o estudo, como exercício do saber, basta por si; contudo, pode servir para mudar a realidade em que vivemos.”.

André Lucas Fernandes, inclusive, foi bastante ativo nas discussões sobre o novo Projeto Político Pedagógico (PPP) da FDR e ajudou na idealização e realização de um seminário sobre ensino jurídico organizado pela comissão do PPP, da qual ele era um dos membros. O DF apoiou diretamente esse seminário, inclusive na execução. Além disso, em diversas ocasiões o DF expos críticas ao ensino jurídico, como nesta “NOTA SOBRE INADEQUAÇÃO PEDAGÓGICA E DESVIO DE FUNÇÃO NOS ESTÁGIOS DE DIREITO” e neste post “Sobre Ensino Jurídico e suas Mazelas”, além de ter publicado uma “NOTA SOBRE ASSÉDIO NO ESTÁGIO”.

O grupo chegou ainda a criar o denominado “Eixo 3 – Laboratório Direito em Foco (LDF)”, cujo objetivo era treinar os estudantes de direito para serem profissionais jurídicos diferenciados, em vez de meros reprodutores; por várias razões, esse eixo enfrentou dificuldades e falhou até agora, mas o DF pretende continuar insistindo para o sucesso desse eixo.

O DF solicitou este ano (2014) ser reconhecido pela UFPE como grupo de extensão, mas sempre enfrentou dificuldades para se enquadrar nas classificações burocráticas da administração universitária, por causa da variedade das atividades que o DF realiza, além de sua própria estrutura organizacional ser diferenciada. Mesmo sem apoio oficial, além de contribuições informais de professores como Torquato Castro Júnior, o grupo fez dois anos em 2014. Alguns dos membros do DF tem se destacado notavelmente: Hélio Lemos Júnior e Waldo Ramalho, juntos com mais dois alunos da UFPE organizados num grupo liderado pelo professor Artur Stamford, venceram em primeiro lugar um concurso de vídeo promovido pela “Missão dos Estados Unidos no Brasil” e participaram de um evento em Nova York sobre propriedade intelectual. Waldo Ramalho, atualmente, está estudando na EDRJ, graças a uma bolsa de estudos que ele obteve da instituição.
O primeiro ponto que vale a pena destacar sobre a EDRJ é o ensino nas salas de aula: as aulas expositivas são reduzidas ao mínimo, enfatizando a participação dos alunos e a discussão da matéria, em vez da mera exposição da matéria. Com compromisso a esse modelo, os alunos costumam ler previamente os textos, a fim de integrar-se à discussão. Projetos extraclasse que integram a nota ou dão pontos extras são exigências comuns feitas aos alunos.

Os professores são preparados para esse modelo de ensino e os testes de contratação de professores incluem uma banca interna, uma externa, mais a participação de pedagogos e a opinião de alunos, de modo a realizar uma avaliação competente e ampla das capacidades do docente. Além disso, há avaliações periódicas do corpo docente, sendo, inclusive, seriamente considerada a opinião dos discentes sobre ele (ver, por exemplo, Avaliação Institucional, da EDSP, e a Ouvidoria Acadêmica, da EDRJ). A autonomia de uma instituição privada também facilita a manutenção de um quadro qualificado de docentes, uma vez que professores que têm realizado um mau trabalho podem ser demitidos sem grandes dificuldades. A contratação de professores também leva em consideração um plano que a instituição possui para o docente contratado, de modo que sua experiência é tão importante quanto seu título – havendo, assim, professores que ocupam ou passaram, no Brasil ou no exterior, por importantes cargos públicos ou privados, relacionados à matéria que irão lecionar.

Do sétimo ao décimo período, o graduando passa a cursar somente disciplinas eletivas nas escolas de direito, administração, ciências sociais ou economia da FGV, ou ainda nas instituições conveniadas no Brasil e no exterior; também somente a partir do sétimo período é permitido ao aluno estagiar, sendo que até o sexto período o aluno estuda em tempo integral. Entre as disciplinas obrigatórias da graduação da EDRJ estão: Análise Econômica do Direito; Direito Global I; Ideologias Mundiais; Estatística; Finanças Públicas; Oficina de Pesquisa (3º e 4º períodos); Direito Penal Econômico; Teoria da Decisão; Mediação e Negociação; Regulação do Mercado de Valores Imobiliários, entre outras. Citei essas disciplinas em especial, porque são bastante diferentes do currículo da maioria das faculdades de direito do país, incluindo a FDR; notemos, por exemplo, as disciplinas de Estatística e Oficina de Pesquisa, que preparam o aluno para realizar pesquisas empíricas qualificadas. Isto é, todos os alunos terão, pelo menos a partir do terceiro período, experiência com pesquisa, porque a instituição percebe a relevância da atividade de pesquisa tanto para a produção de conhecimentos úteis à sociedade e ao mercado quanto para a formação dos profissionais aptos às demandas contemporâneas. Aliás, ambas as escolas de direito da FGV têm tradição em pesquisa, mantendo vários centros de pesquisa: Centro de Justiça e Sociedade (CJUS), Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS), Centro de Pesquisa em Direito e Economia (CPDE), Centro de Direito e Meio Ambiente (CDMA), na EDRJ; e o Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada, na EDSP. Mais sobre o Projeto Pedagógico do Curso da EDRJ AQUI.

Vale observar que a EDRJ foi criada 2002 e, portanto, é uma instituição muito jovem comparada, por exemplo, à FDR (fundada em 1827 na cidade de Olinda e transferida para o Recife em 1854).

Tanto as escolas de direito da FGV quanto a iniciativa do DF mostram um pouco do que pode ser feito na área jurídica brasileira; são belos exemplos de vontade, imaginação e persistência.

Por fim, quero dizer que não tenho propostas de soluções milagrosas para os diversos problemas encontrados na educação jurídica brasileira. Espero que tenha ficado claro que tais problemas existem numa escala e profundidade tamanhas, que quaisquer soluções precisarão atingir diferentes pontos de forma contundente. Tentativas de solução puramente internas às escolas de direito dificilmente darão conta da complexidade dos problemas em nível nacional – tampouco tentativas puramente externas. É preciso que empresas, gestores, políticos, alunos e professores tenham força de vontade política para mudar esse quadro, além de criatividade e persistência.


Peço perdão, se alguém se sentiu ofendido com o que foi dito. Meu compromisso desde o início foi tão somente com a discussão e a melhoria da educação jurídica brasileira. Em qualquer área, principalmente quando falamos de temas sociais, é muito difícil fazer críticas importantes sem acabar causando insatisfação por parte de alguns setores.




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