Educação
O Cotidiano de uma Universidade Federal
Professores usando o sistema para perpetuar mentiras sobre aulas não dadas. Passeios no cinema computados como atividades complementares de graduação. Estratégias para enganar avaliadores do MEC. Tudo isso faz parte do dia-a-dia da Universidade Federal de São Paulo, um dos paraísos que abrigam professores com estabilidade irrestrita de emprego.
O texto abaixo é cópia de e-mail que recebi de Youssef Cherem, professor que recentemente colaborou com um rico texto ilustrado sobre arte islâmica publicado neste blog. Quando recebi esse e-mail, imediatamente pedi para publicá-lo aqui. Enquanto o professor Cherem pensava a respeito de minha proposta, ele redigia a postagem sobre arte islâmica. E, agora, finalmente consegui autorização do professor Cherem para reproduzir seu e-mail.
Espero que outros sigam este exemplo e aproveitem para usar o blog Matemática e Sociedade como veículo de denúncias da conturbada vida acadêmica brasileira.
Comentários entre colchetes são meus.
Desejo a todos uma leitura crítica.________________
(Sem Título)
escrito por Youssef Cherem
Sou professor há três anos no curso de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp – Guarulhos).
Tomei a liberdade de lhe escrever devido ao seu blog e aos vários depoimentos que tenho lido nele a respeito da educação superior no Brasil.
O meu percurso acadêmico foi um tanto quanto incomum. Aos dezesseis anos, e depois novamente aos dezessete, cursei aulas de verão em uma universidade dos Estados Unidos, Purdue, no Gifted Education Research Institute.
Graduei-me em Relações Internacionais na PUC-MG; e fiz mestrado e doutorado em Antropologia Social na UNICAMP.
Por não ter graduação e pós-graduação na mesma disciplina, e por dedicar-me ao estudo de uma área onde praticamente não há pesquisa no Brasil, acabei sendo impedido de prestar concurso para professor em várias instituições, embora estivesse capacitado para tanto. Houve também o caso em que todas as minhas avaliações foram as melhores em um concurso para professor; no entanto, não passei porque a pessoa cuja nota foi inferior à minha na prova escrita, didática e de currículo, tinha mais tempo (experiência) como professor.
Acabei, finalmente, passando em um concurso para o recém-criado curso de História da Arte na Universidade Federal de São Paulo, campus Guarulhos – mais por ser um especialista sobre história e cultura do mundo islâmico do que por ser especialista em história da arte, um campo até então novo para mim.
A disciplina que ensino é História da Arte Islâmica. Sou o único professor do Brasil dessa disciplina; de fato, talvez seja o único professor da área de história ou ciências sociais que tenha uma disciplina obrigatória versando exclusivamente sobre algum assunto a respeito do Oriente Médio.
A princípio, a perspectiva de poder lecionar sobre um assunto relacionado ao que já vinha desenvolvendo em minha pesquisa me animava bastante, apesar do grande desafio de ter que absorver a tradição de um campo de estudos que não era o meu. No começo, desgastei-me exageradamente nessa batalha – muitos livros, projetos de pesquisa, planos de aula etc. E então surgiram as primeiras dificuldades, contratempos e impasses. Isso tudo seria normal, se não houvessem continuado mesmo após mais de três anos.
Em primeiro lugar, a bibliografia que utilizo é quase que exclusivamente em inglês. Isso gera um grande transtorno, porque os alunos evidentemente, em sua esmagadora maioria, não têm um domínio mínimo dessa língua. Não existe inglês obrigatório, como disciplina, e os alunos não percebem a importância do inglês. (Mesmo entre meus colegas de doutorado, na UNICAMP, havia quem não lesse um único texto em inglês, ainda que fosse obrigatório. No Brasil, essa situação perdura: há professores que dizem ler inglês, mas são incapazes de se expressar no nível mais básico, de escrever uma carta, ou um projeto, ou uma apresentação.)
Em seguida, vem a estrutura absolutamente carente em termos de material didático disponível: até hoje, apenas um livro que utilizo em aula encontra-se disponível na biblioteca. Tentei contornar o primeiro problema traduzindo os próprios textos utilizados em aula; desisti quando percebi que essa atitude era vista com estranheza pelos meus colegas de departamento e com desleixe pelos próprios estudantes. Logo percebi que as notas e a compreensão do assunto não melhorariam se houvesse à disposição material em vernáculo. Além disso, o próprio "exotismo" do tema desestimula os alunos. Não há nada que eles possam ligar a seu "cotidiano", quase nada com que possam estabelecer ligações com aquilo que eles conhecem em sua própria cultura – e, por costume, parece que no Brasil quase sempre se tenta ligar a importância de algo ao fato de ser "nacional", ter "aplicações práticas", ser "ligado ao cotidiano do aluno".
Para completar, não há material para pesquisa no Brasil, tanto em termos de bibliografia quanto em termos de material empírico propriamente dito.
As pesquisas, quando existem, são medíocres; as supostas autoridades que dão suas opiniões sobre assuntos atuais do Oriente Médio, ou eventualmente lecionam uma disciplina optativa em uma universidade qualquer, não dominam, aparentemente, a bibliografia básica nem a historiografia atual sobre uma área de estudos que, por seu interesse geopolítico e cultural, supostamente deveria contar com mais interesse entre a população brasileira, principalmente de suas instituições federais de ensino ou de certos níveis do governo.
Mesmo sem qualquer financiamento para pesquisa, tentei prosseguir -- produzir artigos, e apresentar trabalhos. Em 2012, apresentei um trabalho em Montreal, e tive que arcar com todas as despesas. Em 2013, tive dois papers aprovados para congressos internacionais - um, para a Symposia Iranica, na Universidade de St. Andrews; outro, para a British Society for Middle Eastern Studies, em Oxford. Não fui a nenhum dos dois. Não consegui obter nenhuma ajuda de custo para apresentar meus trabalhos - nem da CAPES, nem do CNPq (que diz que minha área de pesquisa não é prioritária), nem da Unifesp. Depois disso, desisti (ao menos por enquanto) de todo o trabalho para redigir um paper para uma conferência. Em 2013, felizmente pude participar de um Simpósio de Arte Islâmica, mas como bolsista (Fellow) da Qatar Foundation.
A essas dificuldades, ainda se soma o desgaste físico e psicológico de toda a situação precária em que se encontra a UNIFESP – Guarulhos, e em particular, meu departamento. Você deve ter sabido que perdemos um semestre por causa da última greve das federais. Ainda estamos repondo as aulas este ano - isso, depois de passados dois anos. A infraestrutura (ou falta dela) é preocupante, mas talvez, por incrível que pareça, não seja o pior.
Tenho constatado, nos depoimentos de seu blog, uma grande insatisfação com as atitudes em relação à docência nas IFES [instituições federais de ensino superior]. O meu caso não é diferente.
Parece que ensinar para a graduação se tornou o objetivo secundário de um professor. Alguém poderia argumentar que o objetivo principal seria a pesquisa e produção de conhecimento - mas não é bem esse o caso. O objetivo principal parece ser: "aumentar estatísticas, para aumentar status". O pensamento dominante parece ser que, ao aumentar a quantidade, o Currículo Lattes de alguém ganharia um verniz de qualidade. Não importa, exatamente, que os artifícios seja espúrios.
Aqui posso dar vários exemplos. Um deles é o aumento da carga de horas-aula no sistema. Uma disciplina é dada por, digamos, três professores, que, em vez de dividirem a carga horária no sistema como dividem na prática, colocam no sistema que lecionaram o total das aulas. A consequência é o absurdo burocrático de que a carga horária fica menor do que o total de horas-aula lecionadas. Assim, se um curso de 60 horas tem três professores, e os três resolverem colocar como lecionando 60 horas, o total de horas lecionadas será 180 horas. Quando questionei esse fato, obtive evasivas e afirmações cínicas como "em todas as aulas havia dois professores em sala" ou "se o sistema aceita, então não há problema", ou pior: "coloque quantas horas quiser". Um caso semelhante foi uma disciplina com aulas "práticas" que tinha 150 horas-aula. Ao questionar quantas horas durava cada aula, não souberam responder. O cálculo é realmente absurdo: significa que deveria haver casos em que uma aula durava oito horas, ou, dependendo do cálculo, até 14 horas! Não importa se é aula prática ou não. Nenhuma aula dura 8 horas.
Houve um instante em que percebi que um docente havia colocado, em seu nome, no sistema, 140 “heroicas” horas em uma única disciplina! Mesmo se diminuísse pela metade, não equivaleria às horas de aulas realmente dadas. A lógica por detrás disso é que ter mais horas-aula, mesmo dando até menos aulas que outro colega, contaria mais que as simples 60 horas-aula de uma disciplina por professor.
Recentemente a Unifesp decidiu que não é mais possível que a carga horária das disciplinas seja maior que a carga horária dada; o que seria lógico. No entanto, sempre há um “jeitinho”. O mesmo e-mail afirma que, “para os professores não serem afetados”, as turmas serão divididas – no sistema, e não na prática: na prática, será a mesma turma (mesmo horário, sala etc.). Assim, o professor continua dando 30 horas de aula, e colocando no sistema que são 60! Ou, no caso de disciplinas divididas entre três professores (caso concreto para o próximo semestre, e recorrente), cada um dará 20 horas-aula, o que equivale a cinco aulas (por semestre!) e, segundo o arbítrio de cada um, pode constar no sistema que lecionou 60.
Eu não sei nem que nome eu dou a isso mais. Antes eu chamava de picaretagem ou cara-de-pau. Mas parece que a picaretagem está institucionalizada.
Outro artifício é “bombar” o seu Currículo Lattes com artigos obscuros, em revistas que nem o Google acha, sem ISSN, corpo editorial ou coisa que o valha; ou "publicar" livros que são anais de congressos (sim, a autoria está lá no Lattes); ou se dizer autor (do livro) ou organizador, quando não se trata de nenhum dos casos, e mesmo nesse caso de "autoria", a contribuição se reduz a meras quatro páginas. E isso contaria como “um livro publicado, constando no Lattes”. Aqui não estou tratando nem da relevância, nem do impacto dessas publicações. Mas tudo soa como uma tentativa de dar ares de nobreza a posições intelectualmente frágeis. É por artifícios assim que se galgam posições como "orientador de mestrado" (eu não faço parte do programa de mestrado do departamento).
Outra questão é a monografia ou “TCC”, que é obrigatória no curso.
Um professor anterior, depois de várias discussões, acabou afirmando que os professores dessa disciplina tinham um caráter “meramente burocrático”, e que não deveriam ser ensinados nem metodologia e nem redação científica ou coisas afins. Sugeriram inclusive que os alunos trocassem a palavra "Conclusão" por "Considerações Finais", porque "não existem conclusões definitivas", ou porque os alunos não teriam maturidade para chegar às suas próprias conclusões! Poderiam ser repassadas "dicas", mas "sem interferir na relação orientador-aluno", e também poderiam ser ensinadas as regras da ABNT, que, segundo esse professor, "não são óbvias e nem fáceis" (visto que ele próprio demonstra desconhecê-las, em seu "material didático").
Para completar, existe uma "disciplina", chamada de “Atividades Complementares”, que tem mais de 100 horas-aula, em que é calculada a participação do aluno em eventos externos ao curso. São calculadas horas de cinema, teatro, visita a museus, galerias, cursos de literatura, presença em defesas de trabalhos, organização de eventos e sim, pasmem, até leitura de livros. Não me perguntem como vão calcular (como estão calculando) tudo isso. Mas no absurdo conceitual (uma disciplina de "Atividades Complementares" para encher horas-aula com atividades que seriam naturalmente esperadas de qualquer estudante, ainda mais nessa área) e burocrático (existe uma tabela com as horas máximas aceitas em cada uma dessas atividades, para serem computadas), tudo isso passa como "natural".
No final das contas, torna-se impossível crer na viabilidade de um projeto pedagógico que resultou em apenas três ou quatro alunos formados em suas primeiras duas turmas - e mesmo assim com casos engraçados (ou patéticos), como o do orientador que deu nota dez a alunos que nem estavam matriculados em Monografia, ou de outro que aprovou seu orientando antes da defesa, também com nota dez (o orientando teria defendido a monografia depois do fim do semestre).
Um dos últimos casos foi a tentativa (se bem sucedida ou não, é esperar para ver) de “maquiar” a disponibilidade da bibliografia das disciplinas para a visita do MEC de aprovação do curso. Foi sugerido colocar textos gerais, em português, mesmo que não dissessem respeito ao assunto, porque "o pessoal do MEC raramente presta atenção nisso". Foi sugerido até mudar a ementa para quatro livros obrigatórios e quatro complementares... e que estivessem disponíveis na biblioteca. Com minhas ementas com muitos livros e artigos, todos em inglês, e nenhum disponível, isso seria um absurdo. Neguei-me a mudar minhas ementas. Até hoje eu não sei se mudaram as ementas das minhas disciplinas ou não.
É até desnecessário dizer tenho poucas esperanças de que algum dia isso possa melhorar. Questionar todos esses procedimentos e atitudes, exigindo uma atitude ética, me valeu o isolamento – repentinamente, muitas pessoas começaram a me evitar, e deixam de me cumprimentar.
Resta saber até quando poderei continuar – 10, 20 anos? – esperando, quem sabe, uma realocação para outro curso ou universidade.
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