Livro-Texto: o Exemplo da Álgebra Linear
Educação

Livro-Texto: o Exemplo da Álgebra Linear




Não existe autor ou professor inquestionavelmente confiável como profissional do ensino.

Um dos principais problemas na formação de professores e pesquisadores é a adoção do (quase bíblico) livro-texto nos estudos universitários. Se compararmos cuidadosamente diferentes livros usados como referência única em disciplinas comuns aos cursos de graduação em matemática, sempre perceberemos variações conceituais, muitas delas significativas. Elas são devidas a diferenças de abordagens, ignorância de autores, erros ocasionais, abusos de linguagem, falta de uma devida contextualização, erros de tradução, erros de digitação, falhas de revisão, entre outras possíveis e frequentes causas. Analisemos, como exemplo, o caso da álgebra linear.

Álgebra linear é uma disciplina estratégica e, por isso, sempre lecionada em cursos superiores de matemática. É o estudo de espaços vetoriais e de transformações lineares entre tais espaços. Trata-se de importante área tanto do ponto de vista de aplicações quanto da visão matemática que encerra em si. 

Em aplicações, espaços vetoriais viabilizam, por exemplo, a descrição matemática de campos em física. Um campo, grosso modo, é uma atribuição de uma grandeza física a cada ponto do espaço e do tempo. Como existem infinitos pontos no espaço e infinitos instantes em um intervalo de tempo (nas formulações usuais, pelo menos), o conceito de espaço vetorial torna-se útil pelo fato de permitir a descrição desses infinitos pontos a partir de uma quantia menor (muitas vezes finita) de informações. Isso deriva do conceito de base de um espaço vetorial. Um campo vetorial que descreve um campo elétrico no espaço tridimensional – apenas para citar um caso muito especial – pode ser caracterizado por apenas três vetores e três funções escalares correspondentes, uma vez que usualmente considera-se que o espaço físico nesta situação tem três dimensões. 

Já do ponto de vista matemático, a álgebra linear fornece ferramentas para o estudo de outras áreas da matemática, como equações diferenciais. Viabiliza, desse modo, a visão de equações diferenciais (citando apenas um exemplo) sob uma nova perspectiva, em comparação com o cálculo diferencial e integral. Teoremas de álgebra linear podem ser usados nessa área do conhecimento cujas metas são muito diferenciadas.

Do ponto de vista didático, há pelo menos duas abordagens muito comuns para lecionar álgebra linear. Na primeira se inicia com o estudo de matrizes, geometria analítica, sistemas de equações lineares e funções polinomiais. O objetivo é motivar o estudo posterior dos espaços vetoriais a partir de exemplos menos abstratos do que o tratamento axiomático usual que fundamenta a álgebra linear. A outra abordagem começa diretamente com uma teoria axiomática de espaços vetoriais – assunto extremamente abstrato – e o professor posteriormente introduz espaços de matrizes, de n-uplas ordenadas e de funções como modelos (exemplos) de espaços vetoriais. 

Cada uma dessas abordagens apresenta pontos fortes e fracos. A primeira parece mais adequada para alunos ignorantes sobre teorias de conjuntos. A segunda é mais recomendável para alunos verdadeiramente dedicados. Isso porque a segunda abordagem permite qualificar imediatamente quais são os objetivos da álgebra linear.

Independentemente desse tipo de diferença no tratamento didático, ainda é possível perceber distinções profundas entre livros populares sobre o tema, mesmo do ponto de vista conceitual. Cito dois livros, para ilustrar o que quero dizer. 

Na obra de T. Lawson (Álgebra Linear, Edgar Blücher, 1997), um espaço vetorial é definido como um conjunto V de vetores que tem duas operações binárias (adição de vetores e multiplicação de escalar por vetor) e que satisfazem a certas propriedades colocadas logo a seguir. Já no livro de E. L. Lima (Álgebra Linear, IMPA, 2004), espaço vetorial é definido como um conjunto no qual estão definidas duas operações (novamente a adição de vetores e a multiplicação entre um número real e um vetor) satisfazendo a certas condições chamadas de axiomas de espaço vetorial, também dadas em seguida. 

O linguajar em ambas as obras é confuso já no início, a partir do momento em que um autor fala em um conjunto que tem duas operações e outro discute sobre um conjunto no qual estão definidas duas operações. Ainda que ignoremos essa falta específica de qualificação do vocabulário empregado, em um livro os espaços vetoriais são definidos a partir de propriedades de duas operações, enquanto no outro eles são definidos a partir de axiomas

Para um aluno crítico que conheça qualquer um dos dois livros, isso pode provocar grande confusão, sem que necessariamente ele perceba. E confusões não percebidas conscientemente tendem a se transformar em preconceitos perenes. 

Tais definições podem sugerir que axiomas e propriedades são conceitos do senso comum e que não demandam demais explicações. Do ponto de vista lógico, pode existir uma profunda diferença entre os conceitos de propriedade e axioma. Nenhum dos autores citados deixa claro o que entende por axioma ou propriedade. Estes não são termos triviais, cujos significados possam ser ignorados. Tratar levianamente os conceitos de axioma e de propriedade, mas enfatizar o de espaço vetorial, pode induzir uma visão preconceituosa de que certos termos da matemática são ignoráveis (por serem triviais) e outros não. Essa atitude pode provocar (e na prática provoca!) a sensação de que a matemática é uma arbitrariedade, um fruto da vontade de autores e professores. O segredo para se obter uma boa nota – pode pensar o estudante – é decifrar o que é importante para o professor e o que não é. Trata-se do famoso "tenho que responder como o professor quer". Como matemática exige o exercício de senso crítico, esse tipo de descuido sobre o significado de termos comumente usados em matemática pode distanciar o estudante do que é, de fato, essa ciência. Nenhum livro-texto consegue esgotar assunto algum em matemática, dada a extrema riqueza desta ciência em termos de pontos de vista. 

E se o aluno tiver contato com os dois livros citados, a confusão pode ser pior. Isso porque pode se desenvolver a sensação de que axiomas e propriedades são sinônimos, o que dificilmente pode ser considerado como verdade sem uma devida qualificação.

Minha tese sobre esta questão é a de que a política do uso de um livro-texto em sala de aula pode gerar uma tendência no aprendizado a uma postura preconceituosa. É fundamental que o aluno encontre diversidade de abordagens na literatura, já que ele raramente pode contar com diversidade de professores em uma mesma disciplina. Se o professor de ensino superior limita sua aula àquilo que está escrito no livro, nas notas de aula ou na apostila, jamais deixará claro o que significam termos usualmente não explicados, como as noções de axioma, demonstração, tese, teorema, corolário, lema, proposição, definição etc. Isso pode deixar várias impressões equivocadas nas mentes dos alunos. Podem achar, por exemplo, que não há necessidade de esclarecer o que significa uma propriedade ou um axioma, pois estes são termos comuns em linguagem coloquial, com significados intuitivos do senso comum, facilmente encontrados em dicionários de língua portuguesa. Porém, matemática não se faz com dicionários; não importando se são dicionários de língua portuguesa ou mesmo de matemática.

O senso comum, com freqüência, estabelece que um axioma é uma sentença ou afirmação naturalmente verdadeira e que não precisa ou não pode ser demonstrada. Mas, matematicamente falando, axiomas podem eventualmente ser falsos (em sentido muito preciso) e certamente podem ser demonstrados. Detalhes podem ser vistos, por exemplo, nas postagens Algumas Curiosidades Lógicas e  Espaço, a Fronteira Final?. Se o leitor acha que há alguma contradição ao se afirmar que um axioma pode ser falso e ainda assim demonstrável, é porque este mesmo leitor confunde o aspecto lógico-sintático de uma demonstração com a noção semântica de verdade/falsidade. Lógica é um assunto altamente não-trivial que demanda considerável responsabilidade e muita reflexão. Como a lógica está sempre subjacente (explícita ou implicitamente) a qualquer disciplina matemática, seu estudo sistemático torna-se evidentemente uma necessidade básica pelo menos para o docente e, principalmente, para o autor de livros didáticos.

Definir o conceito de espaço vetorial a partir de propriedades é uma estratégia muito perigosa, pois pode facilmente distanciar o estudante de uma visão mais fundamental sobre espaços vetoriais, limitando-o a uma perspectiva estreita sobre o tema. Se um estudante com forte senso crítico questionar um professor sobre o conceito de propriedade, estará este profissional preparado para responder tal questão? 

Quando um professor adota um livro-texto, parece estar querendo deixar a responsabilidade sobre a parte técnica por conta do autor do livro, para que possa administrar mais livremente questões de ordem didática. Mas o fato é que matemática não se faz sob um único ponto de vista. Enquanto atividade social, a matemática é uma pluralidade de ideias e abordagens, as quais nem sempre podem ser transmitidas aos alunos por uma só pessoa, seja autor ou professor. 

No entanto, o professor ou o autor não podem se perder em detalhes que escapem aos objetivos do tema principal. Se o assunto é álgebra linear, o detalhamento sobre questões de lógica pode desviar severamente do objetivo principal: o estudo de espaços vetoriais. Portanto, encontramo-nos diante de um dilema.

Existem pelo menos três possíveis soluções para as limitações da adoção de livro-texto. Todas, em minha opinião, devem ser adotadas simultaneamente:

1) Todos os conteúdos dados em aula devem ser qualificados da melhor maneira possível, sem fugir aos propósitos da disciplina. Se álgebra linear for lecionada do ponto de vista de sua fundamentação axiomática, o autor do livro e o docente devem deixar claro que o conceito de axioma é não-trivial, mas deve ser estudado em outra ocasião. Para os propósitos imediatos da disciplina, conceitos como axioma, postulado, teorema, demonstração e definição podem ser tratados de maneira puramente intuitiva, a partir da prática matemática. Mas isso tem que ser esclarecido. Ou seja, o estudo usual sobre álgebra linear em livros-texto ou disciplinas usualmente levadas a cabo nas universidades, trata-se apenas de uma primeira aproximação ao assunto, não o esgotando. Referir-se a axiomas como meras propriedades é um perigoso distanciamento da prática matemática de qualidade, pois fomenta a ignorância.

2) Citações a textos complementares devem ser feitas tanto por autores quanto docentes. Essas citações devem ser acompanhadas de breves explicações sobre seus conteúdos. No caso da álgebra linear, devem ser citadas referências sobre lógica (para fundamentar o assunto), física e engenharias (para apontar possíveis aplicações) e história (para ilustrar o desenvolvimento da disciplina), entre outras.

3) Deve existir uma estreita comunicação entre professores de diferentes disciplinas, para que eles mostrem aos seus alunos que os ramos da matemática não estão isolados, mas fazem parte de uma rede multifacetada de conceitos e relações entre conceitos. 

Outro problema preocupante com ambas as definições de espaço vetorial nos livros de álgebra linear mencionados acima é o conceito de conjunto. Quando o aluno se depara com uma definição única de espaço vetorial, pode ficar com a equivocada impressão de que não há ambiguidade em tal conceituação. No entanto, é bem sabido que existem inúmeras teorias de conjuntos na literatura, sejam formais ou intuitivas.

Muitas das teorias de conjuntos que assolam a literatura matemática são incompatíveis entre si, tendo pouquíssimas características em comum. Ou seja, se mudarmos a teoria de conjuntos, mudamos o conceito de espaço vetorial. Para cada teoria de conjuntos pode existir (pelo menos) uma nova definição de espaço vetorial. O fato de os alunos (ou mestres) não conhecerem diferentes teorias de conjuntos não significa, de forma alguma, que elas não possam existir. Se o objetivo de uma universidade ou faculdade é minimizar a ignorância em áreas de especialização, temos aqui um problema sério que somente pode ser resolvido se professores e autores começarem a encarar mais seriamente o fato de que a matemática é um rico fenômeno social que envolve contribuições de muitos especialistas.

Um exemplo bem conhecido da relação entre álgebra linear e lógica é a questão sobre a existência de bases em espaços vetoriais. Se a fundamentação axiomática para espaço vetorial for feita na teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel com o Axioma da Escolha, todo espaço vetorial admite base. Sem o Axioma da Escolha ou uma fórmula equivalente, não há como provar este resultado.

A adoção incondicional de livro-texto pode também dificultar qualquer comunicação entre diferentes disciplinas. Um livro-texto pode ser facilmente percebido como uma ilha no universo da matemática. Se o professor de cálculo diferencial e integral adota apenas um livro como referência, e o professor de álgebra linear adota outro texto único, o estudante pode fixar a ideia, já enraizada desde os medíocres ensinos fundamental e médio, de que a matemática é formada por múltiplas células sem quaisquer conexões entre elas. Essa visão fragmentada também distancia o estudante da matemática em si. Certos problemas bem conhecidos deixam claro que não é possível estabelecer uma fronteira precisa que diferencie cálculo diferencial e integral de álgebra linear. É notório, por exemplo, que um operador de derivação sobre um espaço de funções polinomiais de grau menor ou igual a n (n é um número natural) pode ser representado por uma matriz quadrada de ordem n+1. E representação matricial de operadores lineares é tópico de álgebra linear, apesar de operadores de derivação serem objetos de estudos do cálculo diferencial e integral.

É claro que questionamentos infindáveis sobre fundamentos e interdisciplinaridade podem atrapalhar consideravelmente o estudo de uma disciplina como álgebra linear. Afinal, os alunos precisam conhecer em um semestre ou dois, assuntos como base, dimensão, transformações lineares, operadores lineares, autovalores e autovetores de operadores, sub-espaços vetoriais, bem como resultados de vital importância estratégica, como o teorema espectral. Não há muito espaço, em uma disciplina comum de álgebra linear, para discussões sobre fundamentos, formalismo, rigor, intuição e outras questões que escapem da ementa planejada. Aqueles que se matriculam em um curso superior de matemática precisam aprender tópicos muito específicos e de maneira objetiva e rápida. Isso é vital para o futuro profissional deles, principalmente levando em conta que o tempo de realização de um curso superior não pode ser exageradamente extenso, por motivos institucionais, sociais e individuais. O que fazer, então? 

Já discutimos acima algumas posturas que, concatenadas, podem promover uma solução parcial a este problema. Mas sugiro a seguir outra proposta que pode ser interessante, dependendo do perfil da instituição de ensino.

Uma possível solução ao dilema acima é a introdução de uma série de disciplinas de carga horária reduzida, nos cursos superiores de matemática, nas quais se promovam debates críticos sobre os livros até então usados na graduação. Disciplinas dessa natureza não seriam ministradas por apenas um professor. Elas seriam coordenadas por um docente, o qual convidaria pesquisadores e professores experientes que tenham disposição para debater com os alunos matriculados sobre questões de caráter fundamental. Tais disciplinas deveriam ser ofertadas, uma por vez, em cada semestre ou ano letivo, de modo a sempre estimularem o senso crítico dos alunos que assistem aulas expositivas tradicionais. Se forem semestrais, em um curso de quatro anos de duração, poderiam se chamar Fundamentos I, Fundamentos II, ..., Fundamentos VIII. Para que isso não cause profundo impacto sobre a carga de trabalho  acadêmico dos discentes, as avaliações poderiam ser amenas (com trabalhos feitos em casa, por exemplo) e a carga horária de cada disciplina poderia se limitar a duas horas semanais. Seriam duas horas semanais nas quais os alunos teriam tempo para refletir sobre a matemática altamente técnica e limitada que foi estudada nas disciplinas usuais. Tais disciplinas seriam de interesse aos discentes que se sentissem atraídos por uma visão mais profunda sobre sua formação e que buscassem uma compreensão mais ampla da matemática.

Esta postagem é uma versão preliminar de uma discussão mais aprofundada que pretendo veicular aqui em futuro não muito distante. A ênfase neste texto foi sobre aspectos didáticos do ensino de álgebra linear. Futuramente pretendo discutir sobre os aspectos técnicos desta disciplina, mostrando uma forma rigorosa e bem qualificada para definir o que, afinal de contas, é um espaço vetorial.



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