Educação
ÉTICA E EDUCAÇÃO
ÉTICA DA ALTERIDADE NA EDUCAÇÃO
Por: Jorge Schemes
O anti-humanismo contemporâneo tem seus fundamentos numa ética individualista levando o ser humano a pensar suas próprias preocupações. Inserido nesse contexto surge Emmanuel Lévinas com sua proposta de uma ética voltada para o outro como prioridade sobre o eu. Lévinas nasceu em kovno, Lituânia, em 1906. Faleceu em Paris aos 25 de dezembro de 1995. Era de família judia e passou as agruras impostas pelos campos de concentração nazistas. Deixou atrás de si um trabalho filosófico excepcional. Lévinas defendia que se faz necessário sair do ser, e o seu propósito como filósofo é romper com o círculo egoísta de uma filosofia que vem desde Parmênides até Husserl e Heidegger. De acordo com Paiva, "Lévinas é aluno de Husserl e Heidegger. Encontra-se empenhado nos debates filosóficos do séc. XX sobre a subjetividade e sobre o problema da ontologia. Lévinas assume uma posição original e solitária. Mesmo aceitando a fenomenologia como método de pesquisa e utilizando as teorias da intencionalidade, ele se distancia muito da posição de Husserl sobre a consciência teorética e do pensamento do ser neutral heideggeriano”. (PAIVA, 2000:215). Estes pensamentos sobre o ser como essência de si e para si, levaram Lévinas ao questionamento ético como o centro de seu pensar filosófico. Desta maneira, “... O pensamento filosófico de Lévinas nutre-se constantemente da mediação sobre textos de Husserl e de Heidegger, sobretudo: interroga-os, com eles se enfrenta e progressivamente deles diverge e se separa, contestando-os e evidenciando os conteúdos do seu próprio pensamento. Se Heidegger elabora uma filosofia que se desarraiga da metafísica e se constitui como ontologia auto-sustentada e auto-suficiente, retirando o ser do esquecimento em que tombara na filosofia ocidental, Lévinas, por sua vez, aventura-se a dar um novo passo: desarraigar-se das amarras da ontologia para libertar o homem, e constituir a ética como filosofia primeira sobre a ralação absoluta da alteridade". (LÉVINAS, 1997:12-13). Percebemos nesta declaração que, embora Lévinas tenha iniciado seu pensamento filosófico nas correntes da fenomenologia de Husserl e no pensamento de Heidegger, ele foi mais além e emancipou o seu pensamento filosófico estabelecendo o outro como a prioridade ética (alteridade), e a ética como seu fundamento filosófico. Para Chailer, “... Nem Husserl nem Heidegger consentem a idéia de uma alteridade que orientasse o pensamento, nem um nem outro renunciam ao ideal da supremacia do sujeito. Se, se apaixonam pelos problemas da origem do sentido, eles não admitem a idéia de uma fonte de pensamento estranha à razão filosófica. As descrições fenomenológicas, iluminadas pela luz que a consciência e a razão trazem ao mundo, ignoram toda a orientação través de uma claridade que os precederia”. (CHALIER, 1993:37). Podemos deduzir por esta declaração que a filosofia de Husserl e Heidegger está fundamentada na idéia do ser para si, egocêntrico e individualista. Enquanto que para Lévinas, o qual iniciou sua fundamentação nos pensamentos de Husserl e Heidegger, mas deles foi tomando distância, a prioridade é o outro numa relação ética. Desta maneira, A corrente fenomenológica, na qual o pensamento de Lévinas se inscreve, introduz, todavia, uma nota discordante, visto que ela se fundamenta na idéia segundo a qual o movimento em direção à alteridade do mundo, ou à intencionalidade, habita o coração da consciência. Na escola de Husserl, fundador da fenomenologia e a cujos seminários assistiu em Friburgo, em 1928-1929, Lévinas começa a encarar um outro modo de filosofar, a tomar atenção àquilo que escapa ao saber e a considerar que o essencial do trabalho do pensamento consiste em esclarecer um fenômeno graças a uma sucessão de abordagens ou de atos de consciência que revelam a sua riqueza. “Ele fala da sua admiração pelo modo como Heidegger, descoberto na mesma época, praticava a fenomenologia, e do seu sentimento de que com ele se assistia a um novo resultado do pensamento grego”. (CHALIER, 1993:36-37). Enquanto para Husserl a correlação sujeito-objeto se dá no nível da consciência, para Lévinas essa correlação vai mais além, pois deve vir da exterioridade, o que Lévinas denomina de uma autêntica transcendência, a qual é manifestada no rosto do outro. A interioridade e a individualidade emergem da concreta relação do eu com um mundo exterior, concreto, real, palpável. Cada ser é totalmente separado do outro (psiquismo/egoísmo). É desse psiquismo (separação egoísta) que surge a necessidade do outro. Contudo, para que possa acolher o outro, é preciso estar mergulhado no mundo material, concreto, econômico, e ser indivíduo singular. É por meio da “alterpercepção”, do estar no mundo, que é possível perceber o outro. Na tradição clássica ocidental, de Descartes a Husserl e Heidegger, a primeira relação do ser humano no mundo é de si para si, é gozar a vida, é ser cego e surdo a outrem, egoísta e egocêntrico, é viver para si. Porém, em contraposição, em Lévinas é a partir da experiência da separação e independência egoísta, que o psiquismo pode abrir-se e refletir as situações na qualidade de sujeito concreto e inserido no mundo, realizado na existência econômica. Husserl fundamenta todo o vivido na representação, enquanto que Lévinas resgata o valor do corpo como ponto de partida e base da consciência no mundo. Enquanto Husserl se fundamenta no intelectualismo, Lévinas descreve uma intencionalidade da encarnação, o ser erigido como corpo sobre um mundo de felicidade e sensibilidade. A consciência não encarna, mas é antes uma desencarnação. A morada para o corpo é a referência para ele, para o mundo e do mundo para a morada. É a casa que propicia o acolhimento necessário para que a natureza humana possa ser representada e trabalhada (ser cidadã). É na família (familiaridade), com o choque do rosto, que irrompe a necessidade, o trabalho como ação do corpo, visando o provimento material na exterioridade. Nesse processo, desejo e necessidade podem se confundir na busca pelo gozo (felicidade). Segundo Chailer, "O humano no ser começa quando o homem renuncia a essa liberdade violenta, própria daquele que identifica a lei do ser com um absoluto, quando o ‘eu’ se interrompe no seu projeto de ser, desvia seus passos e a sua atenção da finalidade que se tinha proposto, porque ouve a voz do estrangeiro, da viúva e do órfão. O humano freme, assim, a partir do instante em que consente em receber a investidura que torna justa a sua liberdade. A filosofia de Lévinas ensina que isso supõe dirigir à liberdade uma experiência infinita, um mandamento de bondade que transcende o duro exercício do ser". (CHALIER, 1993:37). Para Lévinas, “o eu é antes de tudo constituído pela separação, é vivido antes que representado e erguer-se a partir de uma verdadeira exterioridade. Tal experiência, quando acumulada pode propiciar abertura para o entendimento de que o outro lhe falta. É da alteridade que irrompe um apelo heterônimo que o ser e o saber não podem circunscrever, apelo que incessantemente transgride os parâmetros ontológicos pelo questionamento que introduz e pela exigência que exprime. O eu percebe-se criticado e investido pela alteridade irredutível. Lévinas pensa que a partir daí será possível criar o humanismo do outro homem, com relações melhores e instaurar o humano como reino do Bem para além do ser”. (LÉVINAS, 1997:15-16). Diante do exposto, ousaria propor a adoção da ética da alteridade no contexto da práxis pedagógica em todas as áreas do conhecimento, tal proposta está fundamentada na possibilidade de que esta seja a ética que dê mais conta das relações humanas. Para Lévinas, o princípio da ética da alteridade é o respeito pelo diferente. O rosto do outro nos convoca, nos interpela e nos convida. A ética da alteridade no rosto do outro revela o seu infinito. Esta ética quebra os paradigmas tradicionais estabelecidos por outras éticas. O que identifica o outro é o seu rosto, e é muitas vezes no rosto do outro que eu encontro a minha própria identificação. Cada rosto é diferente, mas me dá o sentido do respeito, face a face, olho no olho (alteridade), eu me vejo no outro, pois há uma interpelação quando estamos diante do rosto do outro. Assim, quando o professor aprender a olhar no rosto de seus alunos e não apenas no diário de classe, quando permitir ser olhado, o senso do respeito ao outro e ao que é diferente, surgirá. Este senso surge quando identificamos o rosto e permitimos ser identificado. Apreender o sentido e o infinito no rosto do outro é a ética da alteridade. Ensinar os alunos a respeitar o outro é ensiná-lo a ver e perceber o rosto do outro.Muitas vezes para ver o rosto do outro é preciso olhar com outras lentes, de preferência com a lente do outro, e procurar ver como o outro vê. Uma das constatações é o fato de que nosso discurso hoje não pode estar fundamentado em "éticas reducionistas", mas necessita de um sentido mais amplo que contemple o diálogo e a reverência diante da diversidade. A prática está enraizada na teoria, no discurso, na fala. Sendo assim, deveríamos, enquanto educadores, perguntar: Que tipo de fala (teoria ética) está fundamentando a nossa prática em educação? Que discurso e que ética está sendo teorizada e manifestada em sala de aula? Porventura serão discursos antagônicos de éticas reducionistas ou discursos que revelam uma prática excludente? Nesta reflexão, deve-se levar em consideração que ética não é apenas um discurso, mas a vida. Portanto, ética da alteridade não é um discurso vazio, pois deve primeiro ser interiorizada, introjetada e vivida, para que possa criar laços e relações, e não excluir, separar ou romper. Há muitas “verdades” cristalizadas na educação que precisam ser jogadas fora, pois são excludentes e ferem a ética do diferente, da alteridade, a qual é a favor da inclusão. Educação seja no nível que for, não é mais doutrinar e excluir o diferente, por isso deve estar centrada num comportamento e numa atitude ética de alteridade. Éticas reducionistas levam à discriminação, enquanto que a ética da alteridade leva a uma prática de respeito e reverência, pois esvazia o indivíduo do preconceito. Há discursos que levam a princípios de verdades que são excludentes, ou seja, que não promovem a solidariedade e o respeito ao diferente, ao outro. Um dos grandes desafios para a educação e para os educadores é usar o discurso da ética da alteridade para que as ações sejam de inclusão, ou seja, interiorizar os princípios éticos de relação com o outro, priorizando-o como propõe Lévinas. E tudo isso começa pelo olhar o rosto do outro, prestar atenção e saber ouvir o outro olhando em seus olhos e vendo de perto o seu rosto (alteridade). Não é um olhar superficial, é um olhar de empatia, sentir o que o outro sente, sentir o que pensa e como vê a vida. Resumindo, é uma ética da alteridade empática que estabelece relações de inclusão. Este pensamento nos remete a outra questão: Com que autoridade um professor ou educador pode estabelecer juízo de valor e definir o que é e o que não é? Se o seu discurso estiver embasado numa ética reducionista, certamente a sua prática pedagógica de ensino-aprendizagem será excludente do diferente. Todavia, se o seu discurso e vivência tiver como parâmetro uma epistemologia da ética da alteridade, a sua prática pedagógica será libertadora dos estereótipos, pré-julgamentos, pré-conceitos e exclusão do diferente, pois sua prática será face a face, olho no olho, tendo como resultado o respeito pelo outro como ser humano único e especial. Para tanto, talvez seja necessário quebrar paradigmas ultrapassados, quebrar o próprio conhecimento construído de maneira fragmentada e formatado para não ver o rosto do outro. Se isso for preciso, será necessário ao mesmo tempo, alimentar o espírito com novos paradigmas e com embasamento teórico epistemológico a favor da ética da alteridade. Para isso, é essencial e sumamente necessário ter humildade. Os alunos percebem se o professor é coerente ou não, se está fazendo um bom trabalho ou um papelão na frente deles. A ética da alteridade pressupõe um comportamento de imparcialidade, justiça, humildade e interpelação do outro, acolhimento do que é diferente. Assim, ter ética é ter uma atitude positiva perante o outro, pois ética é um princípio que se manifesta em ações que não causam sofrimento em ninguém, porque o objetivo final da ética é o bem. Uma pessoa ética torna o ambiente saudável. Fazer uma reflexão e uma auto-avaliação é fundamental para que o professor ou educador possa rever seu discurso, sua postura ética e conseqüentemente sua prática pedagógica. A coerência entre teoria e prática é fundamental na educação. O grande desafio é formar uma consciência crítica “autoconsciente” e “alterconsciente”, e estabelecer uma coerência entre a epistemologia da ética da alteridade e a prática desta ética no cotidiano das relações interpessoais, seja dentro da comunidade escolar ou na própria vida. Segundo Pivatto, "Lévinas aponta para algo ainda mais desconcertante: o outro como rosto não é constituído, objetivado. É à guisa do infinito que desconcerta o eu e suas certezas. Trata-se da inquietude que o outro desperta no mesmo. Inquietude não é um estado psicológico, não é constitutiva da subjetividade, atravessa o eu de ponta a ponta, “inspira” e faz transir o eu a tal ponto que vai despertando e se abre à guisa de resposta, de responsabilidade para com aquele que o inquieta e, assim, o chama a ser para, isto é, surge como relação". (PIVATTO, 2001:221). Diante do exposto, podemos concluir que não é o que eu digo sobre o outro, mas o que o outro me impõe (relação), que produz a ética da alteridade. A essência é a relação, até mesmo no silêncio é possível perceber o rosto do outro. Pois, de acordo com Pivatto, "O outro com que o eu está em relação, em contato, é “Rosto”. Com este termo, Lévinas quer significar o enigma que constitui todo ser humano, para além de todas as idéias e objetivações que dele as ciências elaboram. Note-se que a relação é linguagem, antes da fala e do texto. Qual é a linguagem do rosto? Qual é a pro-vocação da inquietude? É o imperativo: “não matarás”; é a súplica: “não me deixes morrer de fome”. O rosto é ao mesmo tempo interdito e súplica, majestade e indigência. Para a nossa sociedade, para o nosso contexto cultural que se habituou à objetivação sumária e, sobretudo, à indiferença, Lévinas é paradoxal". (PIVATTO, 2001:221). Toda a Filosofia procura a verdade. Partindo dessa premissa geral abrem-se dois caminhos. O primeiro, em que a verdade se destaca de forma real, mas não é uma realidade dele, e sim outra, ou seja, estaria ligada a exterioridade, ao diferente, seria a “heteronomia”. Já a outra vertente está ligada a “autonomia”, não aceitando interferências exteriores, assegurando a identidade, tendo como base a liberdade do pensador, sendo esta a escolhida pela filosofia ocidental. Neste caso, a verdade não se choca com a liberdade do “eu” de pensar, mas se integra ao seu pensamento. Existe uma conexão no existir (do homem) com o modo de ser da verdade, ou seja, a verdade pode ser revelada ou revela-se ao homem. Como o ser humano vive em eterna busca de conhecimento, assim também acontece com a verdade. O outro se torna objeto de investigação, sendo que o “eu” tem a necessidade de trazer para si coisas exteriores para sua compreensão, tendo que avaliar e administrar toda essa novidade dentro do seu “eu”. Só se adquire o conhecimento vivendo a realidade. Para Heidegger o homem é livre e é ele que escolhe, sendo responsável por si e por todos os homens. Na idéia de infinito estabelecida pela filosofia de Lévinas, tem-se que é uma idéia posta em nós. Quando pensamos no Infinito temos que pensar muito além, porque é algo não muito fácil para nossa compreensão. É algo misterioso, que está ligado ao outro. Este outro, que representa a exterioridade para o eu podemos chamar de “Rosto”. A manifestação do rosto é toda ela linguagem. O outro se revela outro em seu rosto, mas manifesta ser infinitamente outro pela sua palavra. A idéia de Infinito também está ligada diretamente ao desejo, pois o outro como outro se revela infinitamente outro não podendo ser preso em conceito com suas determinações imanentes, manifestando-se sempre como surpresa e novidade. Ao buscarmos o conhecimento do outro através do rosto estamos aderindo livremente a estes novos conhecimentos. Mas nossa consciência nos pergunta seao aderirmos livremente ao outro, este novo conhecimento do outro não estaria tirando nossa liberdade? Isto acontece quando questionamos as nossas próprias verdades comparadas com as verdades do outro. Quando o infinito nos incomoda. Nossa consciência moral sempre está nos questionando em relação ao outro, e nosso desejo está ligado intimamente as nossas insatisfações e decepções em relação a ele. Heidegger tem uma visão existencialista do homem. Para ele os seres humanos não podem se separar do mundo, sendo que somos “seres do mundo”. Refere-se ao grande interesse ativo que as pessoas tem por tudo o que percebem, tais como: família, animais, política, história e o futuro. Sendo assim, há uma grande preocupação com o “eu” e com o “outro”. Entende que o “eu” deixa o outro (ser) entrar, mas não muda sua identidade, deixando somente interferir no conhecimento. Há um movimento sem regresso, ou seja, um movimento sem regresso do “mesmo” para o “outro” chamado de “liturgia”. Essa palavra grega não se refere a religiosidade, mas a ética. Esse regresso é uma necessidade de voltar para o eu, para as coisas que são próprias da pessoa, da identidade pessoal. Por outro lado para Lévinas quando se faz o movimento de buscar o outro, há o desejo de buscar algo. Esse desejo é a investigação no outro, que às vezes pode nos satisfazer e outras não. O outro se exterioriza para o eu pelo rosto através da linguagem, que é a própria manifestação. A busca pelo Outro causa uma perturbação na consciência do eu, pois a responsabilidade e a necessidade chocam-se com a novidade. A relação que liga o eu e o outro chamamos de “idéia do infinito”. A “idéia de infinito” é desejo. A consciência do ser humano é tudo, pois as coisas existem para nós através dessa consciência que percebe as coisas, lembra, imagina, pensa. O ser está no mundo para transformar, criar, agir, conhecer. Não podemos viver sozinhos, pois vivemos na companhia de outras pessoas. A realidade é este mundo material em que vivemos, onde criamos a linguagem, a ética, a moral. Quando o outro se revela através do rosto e da linguagem, cabe a nós conservar ou rejeitar esta exterioridade. Esta forma do outro buscar o meu reconhecimento, de manifestar-se de maneira incógnita Lévinas chama de “enigma”. Todo falar é enigma, que diz respeito à subjetividade, que é a abertura original ao outro. Existem fenômenos que fazem a existência compreensível e inteligível. São fenômenos como os valores, os sentimentos, a linguagem, o entendimento entre outros que fazem com que o homem introduza esses conhecimentos no projeto de sua vida. O Fenômeno é o “em si” da coisa, em sua manifestação. Não constitui uma aparência da coisa, mas identifica-se com o seu ser. A revelação do objeto em si. Existem para Lévinas dois aspectos da linguagem: O dizer e o dito. Enquanto o “dito” se constitui de temas, idéias e observações que comunicamos através do discurso, o “dizer” nunca pode ser envolvido no “dito”. O dizer é o lugar utópico onde me aproximo do outro, onde o Infinito é buscado e desejado, mas nunca plenamente apreendido ou capturado. Pois o outro será um mistério infinito como o é o próprio transcendente. Todavia, uma das características do pensamento Ocidental é a separação do eu e do outro. Este pensamento está fundamentado na filosofia de René Descartes (1596-1650). Descartes é considerado o pai da filosofia moderna. Foi ele que instituiu a visão mecanicista da natureza e definiu amente e o corpo como substâncias distintas (dualismo psicofísico). Segundo Bergman, "A primeira grande idéia de Descartes foi: ‘Penso, logo existo’. Descartes prova a realidade da mente primeiro que algo deve colocar tudo em dúvida, como sua famosa máxima institui: ‘Penso, logo existo’. Ele também institui que ‘Sou uma coisa pensante’. Pensar é nossa essência e, dessa forma, nossa mente (razão) é distinta de nosso corpo (natureza). Isso é conhecido como dualismo Cartesiano". (BERGMAN, 2004:42). A segunda grande idéia de Descartes de acordo com Bergman é que, "Descartes fornece provas não apenas de sua própria existência como uma ‘coisa pensante’, mas também para a existência de Deus e do mundo ao redor dele. Mais importante é a sua prova da existência de Deus. Um prova de Descartes para a existência de Deus é que como uma coisa pensante ele tem idéias. Uma dessas idéias é de um Deus perfeitamente bom e absolutamente poderoso. Descartes afirma que nada, exceto Deus, poderia lhe dar essa idéia. A seguinte afirmação é de que como Deus é supremamente bom, ele não pode ser um enganador. Deus, então, não me deveria enganar. Segue que a minha crença em um mundo externo baseado em minha apreensão de formas geométricas ‘clara e distinta’ ou da ‘extensão pura’ não pode ser falsa, pois isso implicaria que Deus fosse um enganador. Enquanto aceitava a afirmação cética de que nossos sentidos humanos não apresentam o mundo como realmente existe, Descartes também diz que o conhecimento humano de ‘extensão pura’ é possível. Este mundo externo de extensão é absolutamente distinto do mundo da mente. Enquanto os atributos como as cores e os cheiros existem apenas na mente daquele que os percebem, há coisas fora da mente que podem ser matematicamente determinadas“. (BERGMAN, 2004:42). Embora Descartes admitisse a existência de Deus como base para a realidade do mundo externo, todavia, na filosofia moderna a qual ele foi o precursor, há um esquecimento do outro (alter), sendo admitido, somente no momento quando for incorporado e integrado ao mesmo (ego), quando houver a necessidade da busca do desejo. Quando esta oposição for unificada, ou seja, outro (alter) e mesmo (ego), Lévinas vai chamá-la de "totalidade". Segundo Lévinas, “O cogito cartesiano dá-se de fato, no fim da terceira meditação como apoiado na certeza da existência divina, enquanto infinita... A relação com o infinito na dupla estrutura do infinito que está presente no finito, mas é presente fora do finito, não é estranha à teoria?”. Vimos aí a relação ética. Se Husserl vê no cogito uma subjetividade sem nenhum apoio fora dela, ele constitui a própria idéia do infinito e apresenta-a como objeto. A não-constituição do infinito em Descartes deixa uma porta aberta. A referência do cogito finito ao infinito de deus não consiste numa simples tematização de Deus... A idéia de infinito não é para mim objeto. O argumento ontológico faz na mutação desse objeto em ser, em independência a meu respeito. Deus é o outro“. (LÉVINAS, 1980:188-189). Ao receber o outro, na sua subjetividade, esse passa a se tornar um mistério, um enigma, pois nunca é totalmente conhecido. Lévinas substitui a filosofia do fenômeno pela filosofia do enigma, uma filosofia onde o outro nunca é plenamente visto ou possuído. Quanto o eu aceita a exterioridade, o outro coloca em questão a própria identidade. Este colocar em questão Lévinas denomina de ética. A imagem que o outro me passa, nunca consigo compreender em sua plenitude. Ao penetrar na esfera religiosa, Lévinas diviniza o outro, pensando Deus como expressão máxima da alteridade, da qual nunca terá pleno conhecimento, não conseguindo, portanto, integrá-lo em si mesmo. Na concepção de Paiva, "Daí surge a necessidade de uma evasão, sair da ontologia, vista por Lévinas como a metafísica da violência que constrói verdades a partir da consciência, do Eu autoritário que tudo quer capturar, tematizar, fazer seu na absoluta identidade do Uno-ser, esquecendo toda diferença. Lévinas se opõe à filosofia da consciência trabalhando a alteridade absoluta, da evasão rumo a uma terra prometida, aquela de Abraão que exclui qualquer retorno ao lar, todo retorno do Eu sobre Si, segundo o movimento dialético do idealismo que quer edificar um eu autônomo. Por que tomar descartes como ponto de partida? Certamente porque na idéia de infinito que o eu tem se revela o caráter transcendente da metafísica que precede a ontologia". (PAIVA, 2000:216-217). Percebemos por esta citação que Lévinas, por meio da idéia cartesiana de infinito, consegue traduzir na linguagem filosófica a religiosidade inerente ao outroe a si mesmo. Todavia, embora Lévinas tenha o seu ponto de partida na abertura transcendental deixada no pensamento filosófico de Descartes, dele se distingue porque, segundo Paiva, "A solidão é sinal da centralidade do eu como unia e verdadeira substância: o sujeito-fundamento. É isso que permaneceria caso não se encontrasse alguma outra idéia cujo conteúdo objetivo significasse uma substância que se apresenta com mais ser do que o Cogito. A solidão é conseqüência inevitável se o inventário das idéias não oferece pelo menos uma idéia que vá além das possibilidades do Eu, dado que significa uma natureza superior e exige uma causa proporcional, diversa e mais poderosa do que o Eu. Descartes, porém, não encontra nenhuma idéia de tal gênero, a não ser a idéia de Deus. O Cogito, que num primeiro momento pensava ser sozinho, não é mais. Descobrindo deus, o Eu se salva porque encontra a alteridade que o pode fundar, o pensamento é fundamento inconcurso do real, mas Descartes não permanece fiel a este princípio: Deus expropria o Eu e se torna garantia absoluta de toda verdade, porque é o criador de todo ser". (PAIVA, 2000:216-217). Podemos concluir que é partindo da meditação cartesiana que Lévinas elabora a originalidade da separação entre o Eu e Deus estabelecendo a diferença entre objetividade e transcendência. A idéia cartesiana de infinito torna possível aquilo que seria inseparável, ou seja: a idéia de um sujeito fechado em si. Com efeito, a idéia de infinito abre este sujeito à transcendência do infinito e, segundo Paiva (2000:220), “se torna a categoria filosófica que exprime o modo de apresentação do Outro que sobrepuja a idéia do Outro em mim, modo que Lévinas chama rosto”. Assim, de acordo com Nodari, “... Para Lévinas urge cessar com a descida vertiginosa ao abismo do cogito cartesiano... o outro não é o que eu sou. Não é um alter ego, mas um alter do ego. Sua originalidade está exatamente na alteridade que vem de fora, de além do ser, de além do mundo e de outro tempo. O outro não se opõe a mim, apresenta-se como grandeza, como o mestre por excelência. É o absolutamente outrem que não faz número comigo. É outro desigual, o qual, não sendo o que eu sou em razão de sua alteridade que não é alter ego, está mais baixo e mais acima de mim, é desigual. Logo, a relação face-a-face será uma relação entre desiguais, uma relação irrecíproca”. (NODARI,2002:200). Por essa razão Lévinas defini o rosto como epifania de outrem. Ou seja, conforme nos revela Nodari, "O rosto de outro ser humano é a sua forma de apresentar-se, não de ser representado, diante do eu que o olha e o toca, mas sem objetivá-lo. O rosto na relação face-a-face supera a idéia que o eu tem do outro... o face-a-face supera em originalidade e radicalidade as representações inteligentes e a idéia que se pode ter do infinito do ser humano inteligido. O rosto é a revelação plena do infinito. No rosto, no outro brilha de alguma forma a presença enigmática do infinito. Na presença do rosto abre-se uma dimensão do infinito, despertando um desejo que, para se tornar ético, deve reconhecer o outro como absolutamente outrem. Este enquanto infinito, é uma alteridade absoluta que se manifesta concretamente na relação ética, que se produz sob a aparência de uma relação. O fundamento, portanto, da relação ética está no encontro com um rosto". (NODARI, 2002:201-202). Sob este prisma, a ética da alteridade denuncia o esquecimento do rosto do outro, denuncia também toda e qualquer forma de segregação, pré-conceito, pré-julgamento, pré-juízos e atitudes excludentes e de indiferença em relação ao outro, àquele que é diferente. É uma ética que resgata o valor do ser humano diante de um mundo fundamentado numa cultura individualista, egocêntrica e egoísta. A ética da alteridade estabelece o princípio da manifestação e da encarnação do transcendente, do infinito, no rosto que está sempre manifestado diante de nós.
Jorge Schemes
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BERGMAN, Gregory. Filosofia de Banheiro: sabedoria dos maiores pensadores mundiais para o dia-a-dia. São Paulo: Madras, 2004.
CHALIER, Catherine. Lévinas: a utopia do humano. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980.
LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997.
PIVATTO, P. S. Responsabilidade e justiça em Lévinas. In Revista Veritas. Porto Alegre: V 46 Nº 2, Junho 2201, p. 217-230.
PAIVA, Márcio. Subjetividade e Infinito: o Declínio do Cogito e a descoberta da Alteridade. In Revista Síntese. Belo Horizonte: V. 27, Nº 88 (2000), p. 213-231.
NODARI, Paulo César. O rosto como apelo à responsabilidade e à justiça em Lévinas. In Revista Síntese. Belo Horizonte: V. 29, Nº 94 (2002), p. 191-220.
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