Ética!
Educação

Ética!



Uma das mais graves falhas de professores de matemática em nosso país é a incapacidade de fazer perguntas inteligentes aos seus alunos. E essa constatação cabe à maioria dos docentes, desde a pré-escola até a pós-graduação. Cito exemplos.

Uma pergunta típica que professores de matemática dirigem a seus alunos é a seguinte: o que é uma função? A maioria dos supostos mestres que levanta essa questão simplesmente não tem ideia do que está perguntando, principalmente nos casos em que se espera de fato por uma resposta.

Nas teorias intuitivas usuais de conjuntos, uma função f é um conjunto de pares ordenados (a, b) tais que, se (a, b) e (a, c) pertencem a f, então b = c

O domínio de f é o conjunto de todos os a tais que (a, b) pertence a f

Um dos problemas deste conceito reside na noção de conjunto, a qual usualmente não se qualifica. Costuma-se dizer, neste contexto, que um conjunto é uma coleção de objetos distintos entre si. Mas esta, evidentemente, não se trata de uma definição formal ou sequer rigorosa de conjunto. Afinal, o que é uma coleção? Além disso, o que são objetos distintos entre si? E, pior, o que são objetos? 

Matemática não se faz com discursos não qualificados.

Na formulação axiomática de Zermelo-Fraenkel (ZF, a mais popular teoria axiomática de conjuntos) a noção de conjunto sequer faz parte dos conceitos primitivos da teoria. Além disso, conjuntos não podem ser definidos em ZF. No entanto, é possível definir função como um conjunto f de pares ordenados (a, b) tais que, se (a, b) e (a, c) pertencem a f, então b = c. Fazer alunos compreenderem isso não é fácil. Demanda estudos muito aprofundados sobre as sutilezas da lógica matemática.

Em certas formulações muito usuais das teorias abstratas de categorias, funções não são conjuntos. E uma das características mais notáveis dessas formulações é o fato de que o domínio de uma função é também uma função. Por conta disso, geralmente essas funções são chamadas de morfismos.

Na teoria de conjuntos de von Neumann, conjuntos são efetivamente definidos como casos particulares de funções. E, nesta formulação, funções não têm domínio.

Ou seja, a pergunta "o que é uma função?" simplesmente carece de sentido. Responder a essa questão é assinar um pacto com a incipiência intelectual. Existem, na literatura especializada, muitas acepções radicalmente distintas entre si para o conceito de função. Apresentei apenas algumas delas. Existem, virtualmente, infinitas acepções. Isso leva, portanto, a uma pergunta natural: como um professor responsável deve conceituar função?

Se o docente lecionar para o ensino médio ou a graduação, a melhor solução que vejo para iniciantes é a seguinte: uma função f é um conjunto de pares ordenados (a, b) tais que, se (a, b) e (a, c) pertencem a f, então b = c; no entanto, esta é apenas uma noção extremamente usual, entre muitas outras. 

É fundamental que os verdadeiros mestres deixem claro que artigos definidos raramente se aplicam à matemática. Não existe a teoria de conjuntos. Não existe o conceito de função. Existem infinitas acepções para conceitos como os de conjunto e função. Para fins pragmáticos, em salas de aula de ensino médio ou de calouros de graduação, geralmente se trabalha apenas com uma acepção usual e meramente intuitiva.

Ou seja, uma pergunta que faria sentido seria a seguinte: no contexto da teoria intuitiva usual de conjuntos, o que é uma função?

Mesmo assim existem muitas tolices sobre funções, escritas em livros e apostilas e vomitadas em sala de aula por profissionais incompetentes do ensino. Uma delas é a velha história de que uma função se define a partir de um domínio (conjunto), um contradomínio (também conjunto) e uma regra que associa cada elemento do domínio a um único elemento do contradomínio. 

Esta lamentável e corrompida visão está em completo desacordo com todas as noções usuais sobre funções em matemática. Há, pelo menos, dois problemas graves em tal noção. 

Um deles é o conceito de regra. 

O que é uma regra? É um procedimento efetivo que pode ser descrito através de um algoritmo? Se for, então estamos automaticamente excluindo uma vasta gama de funções ditas não computáveis. E se a tal da regra não puder ser descrita por um algoritmo, então não deveria ser chamada de regra! Além disso, como conceituar regra no escopo das teorias usuais de conjuntos? É possível definir o conceito de regra a partir das noções conjuntistas usuais de pertinência e igualdade? 

O segundo problema é igualmente grave. Nos tratamentos conjuntistas usuais, o domínio de uma função se define a partir da própria função, e não o contrário! Quase sempre vejo a infelicidade de se definir função a partir de um domínio e um contradomínio. Por que autores e professores se resumiram a papagaios que apenas repetem aquilo que foi dito por outros papagaios? Onde está o estudo das fontes originais? Onde está a aplicação da transposição de conhecimentos?

Outra aberração comum em livros de matemática se refere a exercícios com enunciados do seguinte tipo: Dada a função (por exemplo) f(x) = 1/x, determine o domínio de f

Ora, f(x) = 1/x não é uma função! É apenas uma igualdade. Uma função f é um conjunto de pares ordenados, nas formulações usuais. A partir deste conjunto é possível definir o domínio de f. Uma igualdade entre dois termos não é um conjunto. Não é por acaso que alunos confundem função com equação! Responder a questões como esta é um exercício compreensível apenas entre indivíduos com tendências à fantasia ou pessoas de extraordinária ingenuidade e irresponsabilidade intelectual.

O estudo bem sucedido de matemática não é aquele que conclui com respostas, mas aquele que abre universos de questionamentos qualificados. Um professor de matemática que apresenta qualquer tema de sala de aula como assunto fechado, conclusivo, é necessariamente um tolo. Praticamente todos os livros e apostilas de matemática cometem o erro do uso de artigo definido em conceitos e definições. E um professor cujo conhecimento está confinado a esses textos é um profissional medíocre, que não pode e não deve ser levado a sério.

Pois bem. O que isso tudo tem a ver com o título da postagem?

Alguns leitores deste blog têm insistido em questões sobre ética, principalmente em função da postagem sobre a APUFPR (que é recordista de visualizações e hoje citada ou reproduzida em vários blogs do país). Criaturas precipitadas e desinformadas me acusaram de não ser ético naquele texto. Como raramente percebo pessoas que demonstrem minimamente saber o que é ética (recomendo que referências sérias sobre o tema sejam consultadas e que não se confie apenas na infeliz sabedoria popular do senso comum), aqui vai um conselho útil.

Precisamos criar um código de ética para professores no Brasil!

Isso poderia viabilizar punições reais aos docentes que meramente copiam conteúdos de livros no quadro-negro. Eu adoraria ver professores com suas licenças cassadas por incompetência ou sistemáticos atos de má fé que frequentemente testemunho. Eu adoraria ver o Brasil se livrando da alcatéia de professores insanos, arrogantes e ignorantes que influenciam nossos jovens, tornando-os verdadeiros zumbis. 

Por que médicos podem ter suas licenças cassadas e professores não? O que há de tão especial entre os professores? Eles são incapazes de errar? Ou será que seus erros são menos significativos do que imperícia médica? O câncer social de uma educação falida é menos prejudicial para a sociedade do que um médico que esquece equipamento cirúrgico dentro do paciente? Se for, eu gostaria de saber o por quê. 

Um código de ética poderia finalmente alavancar a carreira docente. A tão sonhada valorização desta atividade profissional poderia finalmente se tornar uma realidade. Mas, honestamente, duvido que isso aconteça, diante do atual momento que vivemos. Não vejo articulação inteligente e séria entre profissionais do ensino de nosso país. O que vejo são pessoas que jamais discutem com propriedade sobre ética (apesar de muitos insistirem na verborréia pseudo-intelectual sustentada em frases prontas creditadas ao maldito senso comum) e que continuam a mendigar por salários melhores sem realmente merecerem.

Ética e moral não são sinônimos, professores! Condutas de moral contam frequentemente com dilemas. Já os códigos de ética devem obedecer a princípios da lógica deôntica e, pelo menos em princípio, podem ser protegidos contra a existência de dilemas. 

Condutas sustentadas em moral são confusas, frágeis, contraditórias, excessivamente flexíveis e de apelo fortemente individual. 

Códigos de ética são desenvolvidos racionalmente e representam e protegem categorias profissionais inteiras. 

É claro que há extensas discussões na literatura especializada sobre os conflitos entre ética e moral. Mas essas discussões existem justamente porque ética é uma coisa e moral é outra. Parem de confundir os termos, professores!

Para finalizar, aproveito para anunciar que continuarei a postar a respeito de graves erros em textos de materiais didáticos específicos e amplamente usados no país. Esse projeto inclui apostilas de cursos preparatórios para vestibular. E pretendo também gravar aulas de professores em video e exibi-las a partir deste blog, acompanhando as imagens com críticas e sugestões. 

Talvez isso finalmente motive a concepção de um código de ética para a prática da docência. Afinal, eu adoraria que um código de ética para professores me impedisse de expor publicamente a mediocridade de meus colegas de profissão. Isso porque, havendo um código de ética e um consequente Conselho Nacional de Professores, finalmente existiria um fórum adequado para julgar e eliminar de uma vez por todas a massa incompetente de educadores que estão matando a esperança de um futuro melhor para a nação.

Valorização da docência não se conquista com greves e discursos primários, como aqueles defendidos pela lamentável APUFPR e outros sindicatos igualmente questionáveis. Valorização da prática docente se conquista com ações inteligentes, bem fundamentadas e estratégicas.



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