Educação
Aulas de Matemática Como Histórias
Matemática é uma ciência abstrata. Suas aplicações em situações concretas no dia-a-dia nem sempre ajudam no processo de ensino-aprendizagem, como muitos pedagogos e educadores que abdicaram da razão cegamente creem. Isso porque conceitos como os de conjunto, função, equação, triângulo, matriz, entre outros, não podem ser irresponsavelmente interpretados como objetos físicos, palpáveis. Conjuntos não têm forma. E os demais conceitos matemáticos citados são usualmente definidos a partir de conjuntos. Como conjuntos são meras abstrações que não existem de fato no mundo real - pelo menos nas acepções usuais - então não podemos limitar o ensino de matemática a essa única estratégia. Caso contrário, estaremos castrando aspectos fundamentais desta bela ciência.
Propomos então uma abordagem complementar, com apelo didático e respeito à matemática.
Qualquer ideia nova nesta ciência abstrata esbarra com os seguintes questionamentos:
(i) o que podemos fazer com isso?
(ii) Por que isso deve ser estudado?
E para responder a essas questões propomos o ensino de matemática como o contar de uma história. Mas primeiro precisamos saber o que é uma história.
A maioria das tramas que vemos no teatro, cinema, televisão e literatura conta com uma estrutura dividida em três atos. No primeiro ato a personagem principal é apresentada ao público. No segundo, esta personagem se defronta com uma situação que exerce pressão dramática sobre ela, seja física, moral, psicológica, ética, entre outras possibilidades. A personagem deve reagir, denunciando seu caráter relativamente àquela pressão. E no terceiro ato temos a conclusão de tal reação, a qual deve ser definitiva e irreversível, obedecendo a princípios de causalidade, consistência e cronologia. É claro que há histórias que são exceções a essas regras, mas raramente elas se tornam populares. Tal estrutura foi desvendada pela primeira vez há mais de dois mil anos, pelo grande pensador grego Aristóteles, um matemático.
Cito um exemplo bem conhecido na cultura popular.
Primeiro ato: um rapaz é filho de um italiano, o qual é chefe de uma família que vive nos Estados Unidos; essa família ganha muito dinheiro com negócios ilegais de jogo, prostituição, proteção e corrupção; no entanto, o rapaz não se envolve diretamente com os negócios da família.
Segundo ato: em determinado momento outras famílias italianas propõem ao pai do rapaz que os negócios sejam estendidos para drogas; o pai nega e sofre violentas represálias. O filho do italiano decide se envolver nos negócios ilegais, com o aparente propósito de proteger o pai e a família, mas sem ceder aos inimigos.
Terceiro ato: o filho do italiano mata todos os chefes das famílias inimigas e torna sua família ainda mais poderosa.
Esta é a história de O Poderoso Chefão, filme de grande sucesso dos anos 1970.
Em matemática podemos ter uma situação parecida, no que se refere à sua apresentação em sala de aula. Um corpo de conhecimento é apresentado aos alunos, em um primeiro ato. No segundo ato, problemas são propostos pelo docente. Mas tais problemas não devem ser um desafio aos alunos, como usualmente se pensa. Os problemas devem ser percebidos como um teste do caráter daquele corpo de conhecimentos! Cabe ao docente dar aos seus pupilos apenas as ferramentas necessárias para que eles mesmos, sob devida orientação, avaliem como esse corpo de conhecimento reage diante daqueles problemas. Ou seja, estamos propondo a visão de que a personagem principal da história contada em sala de aula é a teoria matemática e não o aluno. É como um RPG, no qual os jogadores estabelecem ações e reações de personagens fictícios, de acordo com os atributos de tais personagens e não em consonância com as características do jogador. Finalmente, no terceiro ato, podemos estabelecer se o problema foi resolvido ou não, obedecendo a princípios de consistência e causalidade.
Neste contexto é fundamental que o docente proponha também problemas que não podem ser resolvidos com aquela teoria. Essa não é uma tarefa complicada. No caso da trigonometria, quando se define o seno de um ângulo agudo de um triângulo retângulo como a razão entre a medida do cateto oposto ao ângulo e a medida da hipotenusa, podemos facilmente calcular o seno de ângulos notáveis, usando quadrados e triângulos equiláteros. Mas não conseguimos calcular o seno de ângulos como um radiano, usando a mesma noção. Esse tipo de postura coloca os alunos como avaliadores críticos do conhecimento e não como zumbis que devem simplesmente aceitar tudo o que lhes é ensinado.
Todas as tramas que seguem a aristotélica estrutura em três atos acima apresentada, contam com uma estrutura fina fundamental, a saber, as tramas paralelas.
Prosseguindo com o mesmo exemplo do filme O Poderoso Chefão: o filho do italiano (Michael Corleone) se envolve emocionalmente com duas mulheres; seus irmãos passam por diversas situações de conflito com familiares e outros mafiosos; protegidos do chefe da família pedem favores etc. Essas tramas paralelas têm a função de se cruzarem com a trama principal e a enriquecerem.
O mesmo pode e deve ser feito no ensino de matemática. Como matemática encontra aplicações em física, biologia, economia e na própria matemática, entre outras áreas, tais aplicações devem ser usadas como atividades paralelas que enriquecem essa ciência abstrata.
Seguir essas ideias corresponde a responder às perguntas apresentadas anteriormente:
(i) o que podemos fazer com isso?
(ii) Por que isso deve ser estudado?
Discutimos abaixo um exemplo de como nossa proposta pode ajudar no ensino de matemática.
No ensino médio brasileiro estuda-se teoria de conjuntos. Os alunos aprendem sobre relações entre conjuntos, como igualdade, pertinência, subconjunto e subconjunto próprio. Estudam também operações, como união, interseção, produto cartesiano e potência. Aprendem a definir funções a partir de conjuntos e até as classificam como sobrejetoras, injetoras, bijetoras e as demais. No entanto, a maioria dos textos didáticos de matemática em nosso país perdem de vista o propósito do estudo de conjuntos. O objetivo da teoria pioneiramente proposta pelo matemático russo Georg Cantor, no final do século 19, era qualificar o conceito de infinito. Cantor percebeu que muitos resultados da matemática poderiam ser esclarecidos se o conceito de infinito fosse devidamente qualificado.
Ou seja, se um professor ou autor de livro mostra noções elementares sobre conjuntos, mas não define (no contexto dessa teoria) o que é um conjunto infinito, está cometendo os seguintes erros didáticos:
1. Ignora o propósito dessa teoria;
2. Não propõe o mais relevante problema que permite testar a teoria (seu caráter);
3. Interrompe a "história" dos conjuntos no primeiro ato.
Após a apresentação das relações e operações elementares entre conjuntos, cabe ao docente provocar os alunos com o seguinte problema: "o que é um conjunto infinito?" Já ouvi as seguintes respostas em sala de aula:
(i) "É um conjunto tal que não é possível contar seus elementos."
Pois bem, não é possível contar o número de gotas de chuva que precipitaram do céu no ano passado em Curitiba, Paraná. No entanto, esse conjunto não é infinito.
(ii) "É um conjunto que não tem fim."
Ora, o que é o "fim" de um conjunto? No ensino usual, jamais se menciona qualquer conceito como o "fim de um conjunto". O objetivo do problema é resolvê-lo somente com os ingredientes da teoria. Se usarmos algum conceito não definido, estamos sendo ilícitos. Conjuntos são definidos apenas por seus elementos, sem quaisquer outras informações, como algum alegado "fim". Devemos lembrar que queremos testar a teoria e não os alunos. Ou seja, será que a teoria consegue esclarecer o que é um conjunto infinito, sem que precisemos apelar a conceitos novos?
(iii) "É um conjunto tal que, nunca é possível parar de contar seus elementos."
Bem, se não conseguimos parar de contar os elementos de um conjunto, isso pode acontecer por incompetência nossa ou por pura falta de tempo. Afinal, um conjunto pode ter 101000 elementos. Se este for o caso, por mais rápido que contemos, todas as gerações da humanidade não terão condições de concluir a tarefa. E ainda assim o conjunto é finito.
(iv) "É um conjunto do qual sempre é possível tirar um de seus elementos, sem que ele jamais fique vazio."
A crítica a essa resposta é a mesma do item (iii). Como saber se sempre conseguiremos tirar um elemento qualquer?
Após essas discussões, cabe ao docente mostrar e exemplificar o conceito de conjunto infinito. Há muitas soluções a esse problema. Mencionamos apenas uma, por sua elegância. Um conjunto x é infinito se houver subconjunto próprio y de x tal que existe função bijetora entre x e y.
Por exemplo, o conjunto dos números naturais N = {0, 1, 2, 3, ...} é infinito! Isso porque há pelo menos um subconjunto próprio de N, a saber, o conjunto dos números naturais pares p = {0, 2, 4, 6, ...} tal que existe uma bijeção entre N e p. A bijeção é a função f(n) = 2n. Em seguida o professor prova que a função f(n) é bijetora.
No caso de conjuntos finitos (aqueles que não são infinitos) tal função não pode ser obtida. Para convencer didaticamente os alunos, basta que o docente exiba um conjunto finito qualquer, como z = {0, 1, 2} e mostre que todas as funções entre z e qualquer subconjunto próprio de z necessariamente violam sobrejetividade ou injetividade; ou seja, nenhuma delas será bijetora.
A ideia por trás dessa noção de conjunto infinito é o mesmo princípio de contagem usado pelo homem primitivo nos primórdios da história. Para o pastor ter um controle sobre o número de ovelhas em seu rebanho, basta que ele associe cada ovelha a uma pedra em um saquinho. Como o bom pastor sabe diferenciar uma ovelha das demais e uma pedra das outras, tal correspondência bijetora entre ovelhas e pedrinhas se torna uma forma segura de contagem, sem que se saiba contar.
No caso de conjuntos infinitos, não há como contá-los. Portanto, apelamos à noção de bijeção, uma correspondência biunívoca. E esta é mais uma trama paralela que ajuda a compreender a teoria de conjuntos: os métodos antigos de contagem entre analfabetos.
O ideal seria que o professor mostrasse aos alunos que há uma infinidade de "infinitos" na teoria de conjuntos. Essa classificação de diferentes infinitos (alguns são "maiores" do que outros) novamente apela aos conceitos de sobrejeção, injeção e bijeção. É neste ponto que reside parte da elegância da teoria de conjuntos. Um conceito que antes era meramente poético ou teológico (o infinito), é agora também matemático. E aí já apresentamos outra trama paralela.
Para uma visão não técnica sobre um pouco do estado-de-arte das teorias de conjuntos, ver artigo meu publicado em março de 2006 na revista de divulgação científica Scientific American Brasil (páginas 66-72). Para uma visão técnica mas extremamente didática sobre teoria intuitiva de conjuntos recomendo o formidável livro Basic Set Theory, de A. Shen e N. K. Vereshchagin, publicado em 2002 pela American Mathematical Society.
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