A real importância do estudo de línguas estrangeiras
Educação

A real importância do estudo de línguas estrangeiras



Esta é a postagem de número 197. Para a postagem de número 200 estou preparando algo muito especial. E o texto que se segue é um pequeno aquecimento.

Sou professor de matemática há quase trinta anos. E sempre tive dificuldade de comunicação com os meus alunos, fossem estudantes de ensino fundamental ou de pós-graduação. Até mesmo neste blog, que é um veículo de textos não técnicos, encontro o mesmo problema. Em função disso criei uma página especificamente para leitores que encontram dificuldades para compreender certas teses aqui defendidas. Naturalmente tenho considerável responsabilidade diante dos problemas de comunicação que menciono, da mesma forma que certos leitores se precipitam com julgamentos baseados fundamentalmente em valores assumidos como indefectíveis. No entanto, existe um fator de extrema importância, usualmente ignorado, que assume um papel possivelmente dominante diante dos problemas de comunicação: linguagem.

Como já foi mencionado em postagem anterior, as linguagens humanas se dividem em duas categorias: formais e naturais.

Linguagens formais são usadas em lógica, matemática e alguns ramos do conhecimento que aplicam lógica e/ou matemática. Já as linguagens naturais são empregadas no dia a dia de praticamente todas as pessoas. São exemplos de linguagens naturais o português, esperanto, inglês, italiano, entre outros exemplos. E neste blog faz-se uso apenas de linguagem natural.

Na mesma postagem acima mencionada, é brevemente discutido o papel de sintaxe, semântica e pragmática nas linguagens naturais. As discussões na literatura especializada sobre linguagens naturais (geralmente feitas a partir do emprego de linguagens naturais) são muito extensas e certamente não posso explorá-las aqui. Mas eu gostaria muito que o leitor refletisse seriamente sobre o seguinte problema: a influência da linguagem sobre a cultura de povos

A língua mais falada no mundo é o mandarim. Estima-se que quase um bilhão de pessoas no mundo se comunicam em mandarim. Mas não é a língua culturalmente mais influente. A língua mais influente em nosso planeta, do ponto de vista cultural, é o inglês, que é a terceira língua mais falada, ficando atrás apenas de mandarim e espanhol. Já o português é a sexta língua mais falada, comparável em números com árabe, bengali e russo. 

Um dos estudos mais fascinantes em linguística é sobre a influência da linguagem na cultura de povos. Por exemplo, em estudo recentemente publicado por três pesquisadores da Stanford University no periódico Cognition, foi relatado que falantes de inglês e falantes de mandarim têm modos distintos de percepção de tempo. Até onde se sabe todos os povos do mundo percebem a noção de tempo em termos espaciais. Por exemplo, um evento do passado ficou para trás e um evento do futuro ocorre adiante. Esta associação entre passado-futuro e para trás-adiante é chamada de percepção horizontal de tempo. Já entre chineses que falam mandarim existe também uma percepção vertical de tempo, algo muito raro entre aqueles cuja língua nativa é o inglês. 

Na mesma época em que foi publicado o artigo em Cognition, The Wall Street Journal veiculou uma extensa reportagem sobre os avanços mais recentes nos estudos sobre as relações entre linguagem e cultura. Até mesmo o infame "wardrobe malfunction", envolvendo os cantores Janet Jackson e Justin Timberlake, é citado. Relatórios escritos sobre o mesmo evento, mas trocando a ordem de apenas duas palavras ("rasgou a roupa" e "a roupa rasgou") mudaram consideravelmente os modos de percepção do público a respeito do que viram no mesmo vídeo. 

A língua pirarrã, por exemplo, falada por menos de duas centenas de índios da região amazônica, pode ser expressa por música. E nesta língua não existe o conceito de número, o que dificulta a distinção entre, digamos, dez crianças e quinze crianças. 

Na língua inglesa, apenas para citar um último exemplo, existe forte ênfase na identificação de agentes responsáveis por ações. Uma das aparentes consequências disso é que a justiça dos países de língua inglesa foca na punição de quem comete crimes e não na restituição ou restauração daquilo que foi perdido por uma vítima. Em outras palavras, justiça é feita quando o criminoso é punido. 

Apesar dos inúmeros discursos sobre a diversidade da cultura brasileira, existem muitos pontos em comum entre diferentes regiões de nosso país. E um dos pontos que mais preocupa é o isolamento cultural do povo brasileiro. Somos uma nação cercada por países que falam espanhol, mas não conhecemos a rica cultura de nossos vizinhos argentinos, chilenos e peruanos. Somos um país inundado pela cultura norte-americana (roupas, cinema, música, tecnologias, alimentos etc) mas até mesmo professores universitários raramente dominam conhecimentos básicos da língua inglesa. Fomos colonizados por alemães, italianos e japoneses e praticamente nada conhecemos das línguas alemã, italiana e japonesa e nem mesmo das culturas dessas nações. E muito pouco sabemos também a respeito de nossas influências africanas. 

Conhecer a língua inglesa é básico, em qualquer nação e, especialmente, no Brasil. Conhecer outros idiomas é mais libertador ainda. Isso porque o foco na língua portuguesa é o foco em uma única cultura (por mais que se creia ser multifacetada), que pode estar severamente limitando até mesmo os modos de percepção do povo brasileiro a respeito do mundo em que vive e do país onde vive. 

E matemática não está fora desta discussão. Isso porque a matemática oferece outras formas de linguagem que libertam seus estudiosos de vícios linguísticos e culturais e de visões estreitas de mundo. São muitos os autores neste país que insistem no ensino de uma matemática que se identifique com o cotidiano dos alunos. Este é um caminho que apenas reforça o isolamento cultural de nosso país. Um dos aspectos mais belos da matemática é justamente o fato desta disciplina oferecer visões novas de mundo, não antecipadas pelo cotidiano. E simultaneamente lidar com a contradição das aplicações da matemática no cotidiano é uma forma de enriquecer mais ainda a visão de que o mundo em que vivemos é um grande mistério. 

Em postagem anterior apresentei uma proposta de estudo para ensino médio que concatene matemática com o estudo de línguas. Nada naquele texto é novidade. Mas no ensino médio brasileiro ainda é um grande anátema. Isso porque o tema quase nunca é discutido em graduações de letras e, aparentemente, profissionais de letras desconfiam das intenções dos matemáticos. 

Estudar línguas estrangeiras é uma forma de desenvolver novos modos de percepção do mundo. Estudar matemática oferece, ainda, uma visão que nenhuma linguagem natural consegue expressar. Ou seja, não existe apenas a contraparte pragmática na educação. Educação não serve apenas ao propósito de melhorar condições de vida de um povo. Mas serve também ao propósito de questionar aquilo que se crê já estabelecido. Não se iluda, leitor, com o discurso da diversidade cultural de nossa nação. A atual diversidade cultural brasileira é apenas prato com sopa de letras em meio a uma grande biblioteca.



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