Sobre entrevista de Artur Avila no programa de Jô Soares
Educação

Sobre entrevista de Artur Avila no programa de Jô Soares



O texto abaixo é de autoria de Maria Lewtchuk Espindola, física que trabalha no Departamento de Matemática da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O que ela escreve é motivado por uma entrevista recentemente concedida pelo matemático Artur Avila, único brasileiro a conquistar a Medalha Fields, em programa de televisão conduzido por Jô Soares. Apesar de eu discordar de alguns pontos importantes defendidos por ela, julgo que vale a pena ler e pensar criticamente sobre os temas abordados. Isso porque ela também defende ideias dignas de atenção. Ao final do texto de Espindola faço alguns comentários sobre o que ela escreve.

Desejo a todos uma leitura crítica.
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Comentário sobre a entrevista do matemático Artur Ávila, ganhador da medalha Fields, no programa do Jô
de Maria Lewtchuk Espindola

Fiquei extremamente afetada pela entrevista de Artur Ávila no programa do Jô, aliás deprimida até. Procurei então assisti-la de novo para me certificar que os absurdos que escutei não teriam sido mal interpretados e, infelizmente, concluí que o meu entendimento não estava equivocado. Resolvi então entrar em contato com o professor Adonai e sugerir que ele escrevesse sobre o assunto. O professor me respondeu propondo uma colaboração, a qual aceitei com muito gosto. Na verdade, sou uma admiradora deste blog e costumo divulgá-lo pois, com certeza, hodiernamente é uma das melhores leituras. Em muitos casos não concordo com algumas ideias e esse é um dos motivos deste comentário. Numa determinada postagem se discutiu a necessidade de existir no Brasil um incentivo a jovens talentosos, os  quais não precisariam passar pelos cursos normais de formação. Acredito que o direcionamento de mentes muito jovens, para uma certa área em detrimento das demais, acaba prejudicando o desenvolvimento normal do adolescente. Creio que existem etapas que não podem ser saltadas. Isso é claro quando existe um único direcionamento, e que acaba não favorecendo a sedimentação do conhecimento como um todo, sendo que o mesmo ocorre quando o direcionamento é para qualquer outra carreira, sem que haja uma formação paralela. Isso acaba gerando pessoas que não apresentam quaisquer possibilidades de se relacionar com os demais seres viventes, ou indivíduos frustrados, que muitas vezes acabam sendo conduzidos ao suicídio, como testemunhei em diversos casos.

A entrevista começou com enorme dificuldade, uma vez que o entrevistado não respondia às perguntas. Na sequência foi piorando: perguntas sem resposta, ou com respostas evasivas, incompletas, com conceitos errados ou com ar de escárnio.  E, em alguns casos, com manifestação de uma superioridade intelectual de quem não acha pertinente explicar aos apedeutas o que só determinados cérebros privilegiados podem entender. Acredito que o entrevistado é a prova viva do que não deve ser feito; o conhecimento não pode ser incorporado como se fosse por milagre... A falta evidente de maturidade do entrevistado ficou visível, assim como a falta de um embasamento científico e cultural. O desconhecimento das áreas onde está sendo aplicada por ele a técnica matemática que ele desenvolve fica evidenciada não só nessa entrevista como em outras que pesquisei¹

Acredito que nenhum jovem deve ser conduzido ao mestrado ou à universidade sem passar pelas etapas normais, apesar de que estas poderiam ser aceleradas, sem prejudicar o desenvolvimento nas demais áreas de conhecimento. Aqui é importante ressaltar que não defendo o fato de que todos os alunos devem obrigatoriamente cumprir as etapas no mesmo período, mas o que gostaria de ressaltar é que nenhum jovem passa de um estágio onde ele resolve uma série de problemas de uma olimpíada para a de pesquisador ou cientista... O chamado espírito científico precisa ser construído, e não creio que a atividade de competir em olimpíadas que premia o mais bem treinado é o melhor parâmetro para avaliar a possibilidade de que esse será um profícuo cientista no futuro. Na verdade, a quantidade de premiações não habilita ninguém como gênio ou cientista, uma vez que o desenvolvimento da criatividade não é premiado. Um cientista não pode ser somente um solucionador de problemas formulados (como foi designado por um dos seus colaboradores e pela comissão do prêmio²) mas, com certeza, deve ter a capacidade de discernir e formular novos problemas. Isso pode ser justificado historicamente, ao nos depararmos com os vinte e três problemas formulados por Hilbert no início do século passado (atualmente acrescido do que se refere a simplicidade das resoluções ou teorias formuladas). Das diversas reportagens e depoimentos de colegas de Artur fica esclarecido que ele é considerado como um solucionador de problemas. Por outro lado, em todas essas reportagens e entrevistas fica claro o seu despreparo na formulação até de simples ideias ou explicações. E me assusta quando ele reconhece a desnecessidade de quaisquer tipos de leituras; não tem o hábito de ler livros ou artigos, nem sequer possui uma biblioteca em casa³. Diz que o contato e a conversa com os seus colegas é suficiente, pois os palpites dados o conduzem à resolução dos problemas, mesmo desconhecendo o assunto abordado³. Segundo Einstein: "A formulação de um problema é muito mais importante que a sua solução. Esta pode ser apenas uma questão de habilidade matemática ou experimental. Propor problemas novos e encarar os velhos sob um novo ângulo é o que requer imaginação criadora e promove o progresso da Ciência". É evidente que esse contato é imprescindível em muitos casos,  principalmente quando o pesquisador trabalha em assuntos da moda, como define Santaló, apesar de existirem muitos exemplos de cientistas que acabam se isolando e produzindo grandes teorias, como Descartes, desde que possuam um cabedal de conhecimento que os torna capazes.4 

Tanto o comunicado do IMU ao premiá-lo, como o reconhecimento do próprio em diversas entrevistas, de que os últimos anos foram dedicados a escolher parceiros e problemas que o conduziriam ao prêmio, me induz a fazer uma pergunta: qual é a efetiva contribuição que as premiações têm no desenvolvimento da ciência? O que de fato está sendo premiado? Os resultados que podem ser considerados como gerais ou simplesmente aqueles que estão mais visíveis no momento ou que se tornaram os mais famosos? Quais, de fato, vão conduzir ao desenvolvimento da matemática ou de suas aplicações? Estão sendo premiadas a resolução de problemas particulares ou a formulação de teorias em ciência pura ou aplicada? São de fato os cientistas que estão recebendo essas premiações? Ou meros especialistas na falange distal do dedo mindinho da mão esquerda? Na verdade, esse comentário pode ser estendido a outras premiações em ciência, música, literatura, artes etc. Ao passo que os premiados se tornam celebridades, raramente o senso crítico predomina. 

Ainda gostaria de ressaltar que fiz questão de difundir, inclusive criticar a falta de divulgação, da premiação de Artur, pois de fato a mídia não deu o mesmo tratamento que é dado a qualquer premiação em esportes ou em outras atividades. Mas, isso é compreensível,  uma vez que um cientista não gera verbas diretamente, como qualquer outra celebridade na nossa sociedade. Como também foi quase nula a divulgação do Prêmio Balzan em 2010, que o professor Jacob Palis recebeu e que talvez seja mais próximo ao Nobel. O Professor Palis também foi entrevistado pelo Jô. E que belíssima entrevista, onde o premiado tanto respondeu a todas as perguntas como ainda conseguiu esclarecer mesmo para leigos qual a relevância dos seus resultados e da teoria desenvolvida. Na verdade, o professor Palis é considerado o avô científico do atual premiado, desde que ele orientou o Professor Welington de Melo, o orientador de doutorado de Artur. Para fazer justiça devemos dizer que existem ainda outros matemáticos que deveriam ser citados. O IMPA foi criado em 1951 pelos matemáticos Lélio Gama, Leopoldo Nachbin e Maurício Peixoto, com o intuito de estabelecer no Brasil um centro de excelência de pesquisa em matemática pura e aplicada. E é importante ressaltar que o Professor Maurício Peixoto foi um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da área de sistemas dinâmicos e pode ser considerado o bisavô de Artur. Inclusive o estágio atual do IMPA, nessa área, se deve ao fato de que não só o professor Peixoto iniciou a formação dos pesquisadores como tem resultados de extrema relevância, sendo que existe um resultado denominado de teorema de Peixoto em sistemas dinâmicos. 

Quero acreditar que esse menino tem ainda a possibilidade de amadurecer e, como os matemáticos acima citados, se tornar um dos grandes cientistas brasileiros deste século. Por outro lado, acredito que existem várias lições a serem tiradas desse episódio, que ainda não foram citadas. Em parte costumo atribuir a centros de pesquisa como o IMPA, o CBPF, o Bourbaki, entre outros, um defeito que de certa forma conduz a determinados comportamentos que acabam atrapalhando o desenvolvimento da ciência. São academias onde uma parte dos seus membros adota o estilo da Academia Pitagórica. Apesar de serem responsáveis pela formação de pesquisadores muito produtivos e cientistas geniais, além de estarem entre as poucas opções para quem gosta da ciência pura, existe uma série de subprodutos que ficam evidentes. Eventualmente manifestam a sua superioridade de forma constrangedora, como foi o caso do entrevistado que se ofendeu quando Jô Soares o chamou de professor. Por exemplo, tenho observado que os alunos que são formados acreditam que não precisam transmitir seus conhecimentos, e  não valorizam a atividade didática, o que fica evidente em aulas, palestras e livros publicados. Isso fica bastante evidenciado no caso da arrogância do entrevistado, pois só considera importante a comunicação com os seus coautores ou em ambientes acadêmicos. Acredito que a ciência que é produzida passa a pertencer à humanidade. Somos pagos para produzir e isso nos coloca na posição privilegiada de seres aptos a transmitir o conhecimento, aliás com o dever de bem o fazer. O ensino não deve ser encarado como uma atividade de menor valor social do que a pesquisa e seria muito interessante que este fosse o lema de todos os nossos pesquisadores e cientistas. Na minha experiência de atuação em física e matemática desde o curso de graduação, como parte do grupo de iniciação científica, conheci grandes cientistas, os quais nunca se recusaram a transmitir seus conhecimentos, ao contrário, quanto maior é o saber mais simples e modestos são.  Os verdadeiros gênios, não só transmitem seu saber, como ainda sabem valorizar novas ideias e incentivar o seu desenvolvimento.* O entrevistado aliás deve a esses o seu desenvolvimento... 

Referências

¹ Artur Ávila - I Congresso de Jovens Matemáticos: 
   
Sobre sua trajetoria acadêmica

Matematica Pura vs Aplicada

A habilidade de transpor conhecimentos              


² Artur Ávila ganha a Medalha Fields 

ICM2014 Awards

³ Na entrevista para a FAPESP: O homem que calcula

…Você fez vários trabalhos com colaboradores. Gosta de trabalhar em equipe?

Gosto principalmente quando é para aprender. Não tenho o hábito de ler….”

…Mas como se faz pesquisa assim?

Em matemática, é possível avançar sem ter um conhecimento mais profundo da literatura. É mais importante ter uma compreensão bem precisa das coisas fundamentais. E essas coisas importantes pego mais facilmente conversando com outros pesquisadores. Aí entra o aspecto da colaboração. Você vai conversando e a pessoa diz exatamente qual é o pulo do gato. Não precisa necessariamente passar por uma leitura extensa de toda a bibliografia em torno de um problema…” 

* Entre esses gênios cito os professores: Nelson Lima Teixeira  (meu orientador de doutorado na UFPB, onde de fato ele foi realizado e posteriormente defendido na UFRJ),  Newton Carneiro Affonso da Costa e o professor Luiz Adauto da Justa Medeiros.
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Observações
de Adonai Sant'Anna

Exponho, a seguir, algumas das minhas impressões sobre o texto de Espindola.

1) De fato considero que existem excessivos obstáculos em nosso país contra o desenvolvimento e aproveitamento de jovens superdotados. O próprio Artur Avila enfrentou esses problemas, uma vez que a legislação brasileira o obrigou a obter um diploma de graduação. No entanto, também entendo a preocupação de Espindola no que se refere à adaptação social de superdotados. Por isso mesmo julgo que podemos aprender muito com programas de ajuste social e acadêmico voltado a jovens e crianças. Neste site, por exemplo, o leitor pode encontrar um belo programa cujo público-alvo inclui até mesmo crianças com três anos de idade.

2) Realmente Artur Avila não colaborou muito em sua entrevista no programa de Jô Soares. Mas isso pode se dever a fatores não contemplados por Espindola. Afinal, convenhamos, televisão remete a um ambiente muito diferente do acadêmico. Certa vez Newton da Costa foi convidado para participar deste show de TV. E ele perguntou o que eu achava disso, antes de decidir se aceitaria o convite. Respondi que provavelmente ele ficaria chateado com o resultado final. Isso porque o formato do show não abre muito espaço para uma exposição cuidadosa de ideias. Resultado: da Costa recusou o convite.

3) O fato de Avila declarar que não lê muito é certamente algo perigoso. Jovens sem familiaridade com a vida acadêmica podem interpretar essa afirmação de formas completamente corrompidas. E não há dúvidas de que o exemplo de Avila é muito influente sobre jovens. Neste sentido, não há quaisquer evidências convincentes de que Avila tenha (pessoalmente) um compromisso social maior, além da própria matemática. E como ele se tornou muito rapidamente uma perene figura pública, esta responsabilidade precisa ser reavaliada por ele.

4) O IMPA é um centro de excelência mundial em matemática. Este é um fato extremamente claro. E isso significa que os valores matemáticos lá cultivados estão em perfeita sintonia com o que há de melhor em matemática no mundo. Portanto, se existe algum problema de metodologia de pesquisa e investigação matemática no IMPA, este problema se espalha por todo o planeta. Matemática é a área do conhecimento com o menor número de citações. Isso decorre por vários motivos. Um deles é o fato de que matemática faz uso de linguagens formais muito difíceis de serem transpostas para leigos. Mas outro motivo, que considero o mais grave, é o fato de que aplicações da matemática raramente podem ser publicadas em periódicos de matemática. A maioria esmagadora das aplicações de matemática são publicadas em periódicos de física, engenharias, psicologia, direito, medicina, entre outras áreas. Portanto, matemáticos têm uma tendência natural de se isolarem de outras realidades. Físicos, porém, têm uma mente muito mais aberta. Se o leitor clicar aqui, encontrará alguns exemplos fascinantes de pesquisas sobre cinema, vida sexual e medicina publicados em excelente periódicos de física teórica. Se existe alguma imaturidade em Avila, não é apenas por culpa dele. Matemáticos em geral são criaturas academicamente imaturas.

5) Resolver problemas matemáticos famosos é uma atividade científica legítima e extremamente importante. Criar teorias também é importante. Mas desenvolver as teorias hoje existentes é fundamental. Não vejo como uma atividade possa ser mais relevante do que a outra.

6) Adotar estratégias de investigação científica com o objetivo de conquistar prêmios também é importante e socialmente necessário. Existem cientistas que buscam respostas a questões formuladas por eles mesmos. Mas existem aqueles que adotam condutas diferentes. Se uma pessoa prefere a conduta de um sobre a de outro, esta é uma questão de mero gosto pessoal. Um prêmio como a Medalha Fields não representa retorno apenas ao contemplado, mas a uma variedade de segmentos sociais. Ou seja, querendo ou não, Artur Avila beneficia sim o Brasil. Devemos ser gratos a ele e ao IMPA, por isso. Tanto é verdade que a própria professora Espindola sempre fez questão de divulgar essa premiação. 

7) Para não ser criticado, basta não ser lembrado. E para não ser lembrado, basta não fazer coisa alguma. Quem faz, se expõe. E quem se expõe está sujeito a críticas. O IMPA erra? Certamente! Artur Avila erra? Sem dúvida! Espíndola erra? Claramente! Eu erro? Bem, se eu não errasse jamais teria mudado o perfil deste blog ao longo dos anos. Erros devem ser apontados não com o objetivo de destruir pessoas, mas com a meta de revisar ideias infelizes e preconceitos, e mudar as práticas que não funcionam. No vídeo que Espindola elogia, Palis também erra. Ele conta uma história sobre Alfred Nobel que tem sustentação altamente questionável. No entanto, conta como se fosse real. 



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