Matemática como Arte
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Matemática como Arte















Compreender uma teoria física sob enfoques experimental, matemático e filosófico demanda a capacidade de apreciar tal teoria como uma obra de arte. Daí seu apelo estético. O próprio papel da matemática, área do conhecimento sem compromisso apriorístico com o mundo físico, passa a se destacar como multifacetado. Afinal, queiramos ou não, a matemática encontra fascinantes aplicações no mundo que chamamos de real.

Comparemos essa tese com a apreciação de obras de arte. Em pinturas de Leonardo Da Vinci, do século 15, são retratados fenômenos óticos impressionantes como:

(i) A difusão de cores em regiões do quadro onde outros artistas teriam colocado meras sombras escuras;

(ii) A interferência azulada que a atmosfera provoca e que se torna mais evidente em objetos distantes como montanhas;

(iii) Fenômenos de difração que fazem com que os objetos não tenham contornos bem definidos.

A difusão de cores, por exemplo, só foi novamente expressa com o mesmo nível de maestria no século 18, pelo holandês Jan Vermeer. E isso ocorreu principalmente pelo interesse do artista em ótica. Ou seja, como apreciar uma obra de arte do grande Da Vinci sem uma cultura técnica e científica adequada? Arte não se faz unicamente com sensibilidade, como reza a crença popular, mas com profundo conhecimento técnico. Alimentar-se de conhecimento científico ajuda a naturalmente se desenvolver a sensibilidade que dele se deriva. Só é sensível aquele que sente. Se formos cegos culturalmente, não poderemos sentir a arte e, muito menos, aprecia-la.

A arte é multifacetada, assim como a ciência. Aí reside parte do valor estético dessas duas manifestações culturais, a saber, arte e ciência. Consideremos outro exemplo.

Do ponto de vista puramente geométrico, a perspectiva de Da Vinci apresenta apenas um ponto de fuga, como muitas vezes é ensinado em aulas de educação artística ou de trabalhos manuais na escola. Agora consideremos um artista posterior, como o francês Paul Cézanne.

O célebre quadro Os Jogadores de Cartas (1890 – 1892; ver figura) pode ser facilmente interpretado como uma obra carregada de erros grosseiros de perspectiva e, por isso, subestimada por um observador mal informado e desatento. Isso porque vemos dois homens sentados a uma mesa, jogando cartas; sendo que a mesa não tem um único ponto de fuga, em termos de perspectiva, mas é vista simultaneamente de dois pontos de vista distintos. A idéia de Cézanne era retratar em uma só tela a maneira como realmente vemos o mundo. Não é normal ficarmos parados diante de uma imagem simples e provinciana como a de dois jogadores de baralho. Cézanne considerou o observador em movimento e que, por isso, muda seu ponto de vista continuamente. Essa dinâmica está retratada de maneira revolucionária sobre um tema banal. Daí deriva parte de sua beleza. Mas como apreciar tal obra se nos limitarmos ao famoso “gosto não se discute”? A apreciação de arte pouco tem a ver com gosto. O que está em jogo na apreciação da beleza é cultura, educação.


O apelo estético da arte nem sempre se limita a uma questão de gosto, mas se expande aos domínios do conhecimento, da cultura, da observação atenta. Hoje em dia, por exemplo, já se percebe como o simples uso de cores pode fazer emergir propriedades que as transcendem, como formas e profundidade, ainda que não se apele a contornos bem delineados ou técnicas geométricas que exaltem perspectiva.

Algo semelhante ocorre com a matemática, a qual tem forte apelo estético. Se um professor explorar criticamente com seus alunos um conteúdo matemático, poderá fazer com que seus pupilos apreciem a matemática como algo belo, devido às suas inúmeras facetas. E isso pode ocorrer até mesmo no ensino fundamental.

Consideremos como exemplo muito simples o número a seguir, representado em base decimal:

2.475.813.660.455.032.795.957.231.615

Digamos que alguém (um professor brincalhão, mas esperto) diga que este número contém uma mensagem pictórica em sua representação em base binária. Convertendo-o para a nova base, temos:

1111111111111110001111011110111011101111011101110111101110111011111000111101111111111111111.

Ele agora é uma seqüência de 91 algarismos limitados aos valores 0 e 1. Acontece que 91 é um número composto, resultado do produto entre dois números primos, 7 e 13. Se olharmos novamente para a seqüência em questão, do ponto de vista de uma matriz com 7 linhas e 13 colunas, teremos a seguir:

1111111111111
1100011110111
1011101110111
1011101110111
1011101110111
1100011110111
1111111111111

Ou seja, a mesma seqüência fria de zeros e uns é agora uma imagem cujo fundo é feito com repetições do algarismo 1, sobre o qual está escrito a mensagem “OI” com zeros.

Essa é uma maneira usual de compor imagens com seqüências de algarismos, as quais podem até ser transmitidas por um aparelho muito rudimentar de rádio ou mesmo sinais de fumaça. Um número em base binária que seja uma seqüência de n dígitos, tal que n é produto de dois números primos, só pode transmitir imagens bidimensionais em preto e branco, se interpretarmos o 1 como preto e o 0 como branco, ou vice-versa.

Mas um número em base decimal que tenha m dígitos, tal que m seja o produto de três números primos, pode corresponder a uma imagem tridimensional que envolve até dez cores. Se quisermos aumentar o número de cores, basta usarmos bases numéricas com mais algarismos ou dígitos. Se quisermos x dimensões, tudo o que temos que fazer é escrever uma seqüência com m dígitos tal que m seja o resultado de um produto entre x ocorrências de números primos, lembrando que o número de ocorrências desses fatores primos define a dimensão da imagem.

O número 2.475.813.660.455.032.795.957.231.615, anteriormente apresentado, é uma seqüência de vinte e oito algarismos. Acontece que o número 28, decomposto em fatores primos, pode ser reescrito como 2 ∙ 2 ∙ 7, o que pode ser visualmente interpretado como uma psicodélica imagem tridimensional em forma de uma matriz de 2 por 2 por 7 e com uma paleta de dez cores, sendo cada cor representada por um algarismo da base decimal. Essa mesma imagem tridimensional, diante do processo de redução de base, se transforma na coerente imagem bidimensional de duas cores na qual se lê a amigável mensagem “OI”. Ou seja, as mudanças de base numérica podem servir como meios de tradução entre imagens de natureza aparentemente sem qualquer correlação.

Não há limites para cores e nem dimensões. Seqüências numéricas podem representar imagens com cores que o olho humano não consegue sequer distinguir ou perceber, e em universos com quantias arbitrárias de dimensões igualmente não perceptíveis por nossos limitados sentidos. Isso significa que números podem esconder em seus meandros todas as imagens concebíveis pelo nosso intelecto e mais um elenco de imagens que jamais entenderíamos, por conta de nossas próprias limitações sensoriais e intelectuais.

Se uma simples brincadeira com números inteiros positivos demonstra esse tremendo potencial estético da matemática, imagine a matemática toda, com sua vasta riqueza em termos de estruturas algébricas, topológicas e de ordem, em fundamentações conjuntistas; ou em termos de formulações categoriais que substituem miríades de simples equações por complexos diagramas; entre outras tantas possibilidades conhecidas ou em desenvolvimento no dias de hoje.

A exploração de múltiplas facetas da matemática pode ser feita, a princípio, sobre todos os assuntos da matemática básica, das quatro operações elementares aos logaritmos e trigonometria.



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