Matemática Angelical
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Matemática Angelical



Em 1946 um beduíno encontrou, por acaso, sete pergaminhos dentro de jarras escondidas em uma caverna em Qumran, a cerca de dois quilômetros da margem noroeste do Mar Morto, no Oriente Médio. Após passarem por muitas mãos de leigos curiosos e comerciantes céticos, em 1947 esses manuscritos finalmente chegaram ao arqueólogo John C. Trever, o qual rapidamente percebeu a fenomenal importância daquela descoberta. No entanto, a instabilidade política da região dificultou muito a busca por mais manuscritos. Foi somente em 1949 que escavações sistemáticas começaram a ser feitas em Qumran. O resultado foi assombroso. Mais de 900 manuscritos em hebraico, aramaico e grego foram encontrados em onze cavernas em Qumran. São documentos do período que compreende o século 2 a.C. até o primeiro século da Era Cristã. 

Esses textos são de incalculável valor histórico, religioso e linguístico, pois eles revelam trechos da Bíblia Hebraica, bem como registros de costumes e considerável diversidade de pensamentos religiosos da época. 

Nesta biblioteca digital o leitor pode ter acesso a imagens de milhares de fragmentos dos manuscritos do Mar Morto, incluindo as mais antigas cópias conhecidas de textos bíblicos. 

Mas nesta postagem me concentro apenas nos manuscritos 4Q208 e 4Q209. O número 4 nessa codificação se refere ao fato de que tais manuscritos foram encontrados na Caverna 4 de Qumran. 

Neste artigo de Helen R. Jacobus, publicado no ano passado em Mediterranean Archaeology and Archaeometry, a autora defende uma tese muito interessante. Segundo ela, os relógios de sol zodiacais que floresceram na cultura greco-romana entre os séculos 2 a.C. e 2 d.C. demonstram coincidências conceituais com um calendário zodiacal lunissolar identificado nos manuscritos 4Q208 e 4Q209. E um dos aspectos mais interessantes sobre o manuscrito 4Q208 reside nos diversos pontos de semelhança com o Livro de Enoch. 

Apesar de não fazer parte do cânone hebraico ou cristão (Enoch é apenas citado no Novo Testamento), a Igreja Ortodoxa Etíope reconhece o Livro de Enoch como um dos componentes bíblicos. Mas cristãos em geral assumem que esta obra carece de inspiração divina. 

No entanto, o fato é que esta escritura apresenta uma estrutura mitológica muito complexa, na qual se apresenta Enoch como um receptor de mensagens angelicais sobre magia, cosmologia, astronomia, astrologia e... um calendário. Sim, o arcanjo Uriel teria revelado um calendário a Enoch! E este calendário é sustentado por um sistema de doze "portões" celestiais. Apesar de ser praticamente unânime a visão de que esses "portões" celestiais nada têm a ver com os doze signos do zodíaco da cultura greco-romana, Jacobus insiste nesta tese a partir de evidências encontradas nos manuscritos de Qumran, os quais serviriam de ponte de ligação entre o Livro de Enoch e a cultura greco-romana. 

Apesar do caráter inevitavelmente especulativo do trabalho de Jacobus, há nestes estudos algumas informações importantes, que podem ajudar a compreender as origens históricas da própria matemática.

Se existe alguma ordem matemática no mundo real, esta é uma questão ainda em aberto. Mas o fato é que o ser humano tem buscado encontrar padrões matemáticos no ambiente em que vive. E os registros mais antigos desta busca por padrões matemáticos se confundem com o nascimento da astronomia, da astrologia e da religião. 

Na Idade Média a astrologia era levada muito a sério por alguns estudiosos respeitados no continente europeu. Até mesmo Johannes Kepler chegou a ganhar dinheiro fazendo horóscopo para pessoas ricas (uma curiosa maneira para manter seus estudos de astronomia). 

Hoje se sabe que astrologia carece completamente de qualquer fundamentação racional. E também se sabe que religião e ciência são atividades culturais distintas demais para se pensar seriamente em um caráter científico amplo o bastante para abranger todos os aspectos religiosos ou em uma visão teológica abrangente o bastante para abraçar toda a ciência. No entanto, é muito difícil negar a contribuição da religião para o desenvolvimento dos primeiros passos históricos da matemática.

Matemática se desenvolve a partir de processos de abstração. E anjos, arcanjos e Deus parecem ter um caráter tão intangível quanto as abstrações da matemática. E essa intangibilidade é algo que fascina a humanidade há milênios. É como a cena final do filme A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud. Após monumentais batalhas do personagem principal, para simplesmente sobreviver, ele então descansa ao lado da amada e sonha com a Lua. É a mesma Lua que inspirou aqueles que tentaram compreender o mundo em que vivem, seja por ações divinas ou pela identificação de padrões matemáticos. Assumir que esses padrões matemáticos foram revelados por um arcanjo é simplesmente reconhecer que eles são belos demais para serem concebidos por um limitado e imperfeito ser humano. Ou seja, esta pode ser entendida como uma postura de humildade perante a própria matemática. De tão bela, somente um arcanjo poderia revelá-la.

Não há mais sentido na veneração da matemática, confundindo-a com uma manifestação divina. Mas é ainda natural para um matemático perceber que este ramo do conhecimento age como um ser vivo, de caráter intangível. Se não fosse assim, não haveria como a matemática ainda surpreender mesmo o mais experiente profissional. E quem surpreende, demonstra vida, seja divina ou não. 



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