Carta Aberta aos Alunos do Curso de Física da UFPR
Educação

Carta Aberta aos Alunos do Curso de Física da UFPR




Apesar de as críticas abaixo serem específicas a um curso, elas certamente se aplicam a inúmeros outros, de diversas instituições brasileiras de ensino superior.


Leciono para o Curso de Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR) há quase duas décadas. E tenho observado uma série de problemas graves, tanto na formação matemática de nossos alunos, quanto em sua cultura científica, e até mesmo na estrutura do próprio curso. Usualmente questões dessa natureza são discutidas no âmbito do Colegiado. No entanto, como há uma tradicional omissão dos representantes discentes deste órgão e uma falta de sensibilidade tanto de discentes quanto docentes, coloco aqui uma série de impressões pessoais que talvez possam ajudar a alavancar um futuro melhor. Meu objetivo não é esgotar os temas abordados, mas tentar iniciar uma discussão construtiva.


1) Falta, à maioria dos envolvidos, espírito de independência. Física é ciência. Ciência exige independência de pensamento. Se alunos ou professores se escravizam a definições e teoremas de livros-texto, sem sequer saberem qual é a diferença entre um teorema e uma definição, passam a ser meros repetidores de conteúdos comumente equivocados, irresponsáveis. Nossos alunos têm que se acostumar à ideia de que a física deve ser estudada criticamente e não dogmaticamente como forma ditada a partir das palavras de algum autor ou professor. Nossos alunos devem passar por um processo de formação que os permita não apenas fazer contas e experimentos, mas também avaliar criticamente tais contas e experimentos. Exemplo 1: o aluno que acredita que seno de um ângulo agudo, por definição, é a razão entre um cateto de um triângulo retângulo e sua hipotenusa (ou, equivalentemente, uma determinada projeção no círculo trigonométrico), demonstra preocupante falta de senso crítico. Basta perguntar a esse aluno, como se calcula o seno de um radiano a partir dessa alegada definição, e ficará patente que ele jamais pensou sobre a questão. Em geral, tais alunos sentem-se perdidos, sem saberem o quê fazer, quando colocados diante desse problema. Exemplo 2: O aluno que acredita que a Lei da Gravitação Universal estabelece que os corpos se atraem na razão inversa do quadrado da distância que os separa, também demonstra lamentável falta de senso crítico. A Lei da Gravitação Universal refere-se a um princípio de ação a distância. Portanto, não há meio material entre os corpos, que justifique qualquer afirmação de que os corpos efetivamente se atraem. Uma qualificação mais adequada estabelece que tudo se passa como se os corpos se atraíssem. Mas afirmar que efetivamente se atraem é uma afronta ao tirocínio crítico. Se físicos do século 19 discutiram exaustivamente essa questão, por que ainda se insiste nisso nos dias de hoje? Não se nutre espírito de independência de pensamento sem conhecimento de história, fundamentos e filosofia da física.

2) Falta, à maioria dos envolvidos, conteúdo matemático básico. Não são raros aqueles que desconhecem matemática do ensino médio e fundamental. Não sabem o que são conjuntos, funções, números reais, números racionais, funções circulares, funções logarítmicas, probabilidades, a diferença entre equações e funções etc. Na verdade, muitos (muitos mesmo!) sequer sabem somar. Se uma pessoa só sabe somar em base decimal, apenas domina um procedimento mecânico sem entender o quê de fato está fazendo. Saber somar exige no mínimo o domínio do conceito de soma, independente da base na qual se representa os números sob operação. Ou seja, não se pode confundir conceito com notação. E a matemática básica que se enfatiza e pratica é sustentada em vagas lembranças de procedimentos aplicados a meras notações, sem qualquer noção a respeito dos conceitos envolvidos.

3) Falta, à maioria dos alunos, motivação e, conseqüentemente, cultura. Nossos discentes não conhecem revistas como Scientific American, Scientific American Brasil, Nature, Pesquisa FAPESP, Physics Today, Notices of the American Mathematical Society, entre outras publicações não-técnicas. Também desconhecem autores consagrados na divulgação das ciências como Richard Feynman, Murray Guell-Mann, Carl Sagan, Albert Einstein, Henri Poincaré, Werner Heisenberg, Ian Stewart, Niels Bohr, Richard Dawkins, entre outros. Além disso, nossos alunos freqüentemente estudam apenas quando há avaliação agendada. Falta a cultura do trabalho constante, algo fácil para o indivíduo motivado.

4) Falta, ao Curso de Física, Memória. Qual o destino de nossos egressos? Eles exercem atividades profissionais compatíveis com a formação? São felizes com o que fazem? Pessoalmente, acompanho o destino profissional e acadêmico de diversos ex-alunos. E posso garantir que muitos deles enfrentam grandes dificuldades profissionais, mesmo entre os mais talentosos. Se a instituição não oferece uma radiografia daqueles que já se formaram, como nossos atuais estudantes podem avaliar o mercado que os aguarda? É imperativa a criação de uma associação de alumni. Um curso superior não se faz pensando-se apenas na colação de grau. A universidade deve estender seus braços para o passado, para que tenha condições de evitar erros no futuro. O fato de nossos calouros imediatamente se jogarem à lama, como forma de celebração pelo ingresso na UFPR, não deve se caracterizar como antecipação de cena sobre seus futuros profissionais.

5) Falta, ao Curso de Física, consistência nos ensinamentos de sala de aula. Se professores do Departamento de Física ensinam a modelar fenômenos físicos a partir de infinitésimos, estão em franco desacordo com o cálculo diferencial e integral lecionado pelo Departamento de Matemática. No cálculo diferencial e integral usual não há infinitésimos. Infinitésimos são um conceito que se encontra muito bem fundamentado na análise não-standard, na qual derivadas e integrais não são definidas a partir de limites. Ou seja: ou aqueles que lecionam física adaptam seu discurso para o cálculo diferencial e integral lecionado pelo Departamento de Matemática, ou o Curso de Física solicita ao DMAT para que o cálculo diferencial e integral seja adaptado para uma abordagem via análise não-standard. Essa falta de consistência apenas alimenta a visão de arbitrariedade que critico no item 1. E tal arbitrariedade está em desacordo com o espírito crítico que sustenta a atividade científica. Outra inconsistência é a insistente afirmação de que vetores são entes ou trecos que têm módulo, direção e sentido. Alguns ainda afirmam que vetores têm também unidade, algo mais difícil de entender. O tal do módulo (ou norma) somente existe nos espaços vetoriais normados ou munidos de produto interno. Não se pode associar a todo e qualquer vetor uma norma ou módulo. Não é assim que se define vetores. Algo análogo se aplica às tais “direção” e “sentido”. Já a “unidade” é falta de qualificação mesmo. Vetores são elementos de espaços vetoriais, os quais são estruturas matemáticas definidas axiomaticamente. Mesmo em física, o discurso do módulo-direção-sentido não se mostra coerente. No caso da mecânica quântica, por exemplo, o formalismo canônico se faz via casos especiais de espaços de Hilbert, os quais são espaços vetoriais complexos de funções. Qual é a direção e o sentido de uma função-de-onda que descreve o estado de um sistema quântico? Qual o significado físico disso? Tais considerações são usualmente feitas?

6) Falta, ao Curso de Física, consistência entre a ciência lecionada e a prática de sala de aula. Tema obrigatório para qualquer físico é a teoria dos erros, a qual estabelece bases metodológicas e epistemológicas para processos de mensuração. No entanto, quando um docente avalia um aluno, em geral ignora o fato de que tal processo de avaliação é também um processo de medição; medição de conhecimento. Isso se reflete na prática da reprovação por décimos de pontos. Físicos, mais do que qualquer um, deveriam determinar a margem de erro em suas avaliações. Se não o fazem e reprovam alunos sem o uso desse fundamental critério, estão simplesmente dizendo que ciência é algo bonito no papel, mas não realizável na prática. Isso apenas estimula uma visão idealista e dogmática que acaba por se afastar da atividade científica.

7) Falta formação matemática no Curso de Física. Quatro horas semanais de cálculo é pouco. Na verdade, é indecentemente pouco. Não há a possibilidade de os alunos amadurecerem ideias. Também não é possível demonstrar uma série de teoremas, por conta do pouco tempo disponível. No que se refere à álgebra linear (que os discentes carinhosa, mas equivocadamente, chamam de álgebra), a Coordenação deve exigir pelo menos o domínio do teorema espectral, tão fundamental em mecânica quântica. Para isso, uma carga horária maior também se faz necessária. Já o cálculo numérico deve contemplar métodos de integração que se referem a soluções aproximadas de equações diferenciais, algo que na prática não acontece. Não acredito que exista algum físico que discorde dessa necessidade. Mas a grande surpresa na formação matemática dos alunos do Curso de Física é a falta de uma disciplina obrigatória sobre teoria de grupos. Eu gostaria de saber como é possível uma visão abrangente e madura sobre física teórica, sem o reconhecimento do emprego de teoria de grupos. Este tópico não deveria ser optativo, mas obrigatório. Afinal, como comparar os princípios de invariância de teorias relativísticas (como o eletromagnetismo) com as não-relativísticas (como a mecânica clássica)? A base de tapa?

Os temas brevemente tratados acima são por demais extensos para serem discutidos em um só documento por uma só pessoa. Por isso espero suscitar a necessidade de discussões sérias para o melhoramento deste curso, cuja taxa de evasão já se tornou uma tradição que não se questiona mais. No entanto, jamais fez parte do espírito científico a credibilidade ao argumento da tradição. Citando Dawkins, recuso-me a aceitar argumentos sustentados na tradição, autoridade e revelação. Se aceitamos a tradição da reprovação em massa, não estamos adotando espírito científico. Se aceitamos a autoridade daquele que impõe sua formação como argumento, não estamos adotando espírito científico. Se aceitamos a revelação de ideias novas, sem bases diagnósticas e racionais, certamente não merecemos ser chamados de universitários.



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