A matemática necessária para compreender física
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A matemática necessária para compreender física




Frequentemente jovens perguntam o quão profundamente devem estudar matemática para compreender física teórica. Honestamente, nunca gostei desta pergunta. Isso porque implicitamente ela encerra a noção de que há um limite de conhecimento matemático necessário para compreender física. E tal limite simplesmente não existe. Quem interrompe seus estudos de matemática, limita seriamente seus conhecimentos físicos.

No entanto, existe um conhecimento matemático mínimo necessário para iniciar estudos básicos em física teórica: cálculo diferencial e integral, equações diferenciais, álgebra linear, teoria de probabilidades e teoria de grupos. 

Sobre cálculo diferencial e integral e equações diferenciais já discuti em postagem anterior. Grosso modo, equações diferenciais (fundamentadas a partir do cálculo diferencial e integral) constituem o coração de qualquer formulação usual das teorias físicas mais comuns. O eletromagnetismo clássico, por exemplo, se fundamenta nas equações de Maxwell. Mecânica quântica se sustenta na equação de Schrödinger. Mecânica clássica é fundamentada na segunda lei de Newton. Teoria da relatividade geral se baseia nas equações de Einstein. E as equações de Maxwell, Schrödinger e Einstein são equações diferenciais, assim como a segunda lei de Newton. Comentários análogos podem ser feitos em relação às teorias de gauge, a termodinâmica e demais exemplos de teorias físicas. 

A álgebra linear minimamente aceitável para iniciar estudos em física teórica é aquela que envolve o enunciado, a demonstração e aplicações do teorema espectral. Se uma pessoa conhece bem os pré-requisitos necessários para discutir criticamente sobre aplicações do teorema espectral, já domina um conteúdo matemático necessário (apesar de insuficiente) para desenvolver alguns estudos sobre mecânica quântica. A rigor, estudos avançados de análise funcional (espaços de Hilbert e espaços de Banach) é extremamente recomendável. Caso contrário, o estudante corre o risco de apenas repetir procedimentos usualmente adotados em livros sobre mecânica quântica, mas sem compreender o significado de tais procedimentos. 

Existem também inúmeras aplicações fundamentais de teoria de probabilidades em física teórica. As mais conhecidas ocorrem em mecânica estatística clássica e mecânica quântica. No entanto, físicos ainda não conseguiram explicar de forma clara o papel de probabilidades no último caso. 

Usualmente teoria de probabilidades deve ser estudada a partir dos axiomas de Kolmogorov, apesar de existirem outras formulações para a noção de probabilidades. Mas se o estudante de física conhecer bem a formulação devida a Kolmogorov, já poderá contar com uma visão privilegiada sobre o tema das probabilidades. Porém, vale observar que existem aqueles que creem que a teoria de Kolmogorov não é aplicável à mecânica quântica, apesar de muitos físicos pensarem o contrário, sem de fato compreenderem o que são probabilidades. 

Finalmente, teoria de grupos constitui uma base fundamental para a compreensão dos princípios de invariância ou simetria em física teórica. Como entender a diferença entre eletromagnetismo clássico e mecânica clássica, sem um adequado conhecimento de teoria de grupos? Simplesmente não é possível. As leis físicas da mecânica clássica são invariantes sob transformações do grupo de Galileu. Já as leis do eletromagnetismo (descritas pela teoria relativística de Maxwell) são invariantes sob a ação do grupo de Poincaré. E esses dois grupos de transformações são simplesmente incompatíveis entre si. Foi uma simples aplicação de teoria de grupos que permitiu a concepção da noção de quark, partícula fundamental que permite descrever a estrutura interna de partículas que compõem o núcleo de átomos. Uma obra excepcional sobre aplicações de grupos em física é o livro Group Theory and Physics, de S. Sternberg.

Mas a física-matemática (que corresponde ao estudo de métodos matemáticos aplicados em física teórica), como era de se esperar, vai muito além dos tópicos acima abordados. 

O russo Vladimir Arnol'd, por exemplo, apresenta uma formulação para a mecânica clássica que se sustenta fortemente em elementos de geometria diferencial, tratando fenômenos mecânicos via variedades diferenciáveis e geometria simplética, com um formalismo muito empregado em teorias clássicas de campos. E como conhecer variedades diferenciáveis sem uma visão adequada de topologia geral? Mecânica clássica é apenas um exemplo, entre muitos, de teoria física que apresenta inúmeras formulações não equivalentes entre si do ponto de vista matemático. 

Também convido o leitor a comparar os livros Mathematical Physics, de Eugene Butkov, e Mathematical Physics, de Robert Geroch. Os dois têm o mesmo título, mas não há qualquer outro ponto em comum entre ambos. Isso porque a obra de Butkov trata do tema da física-matemática sob o ponto de vista conjuntista usual, enquanto o livro de Geroch aborda o mesmo tema sob o ponto de vista categorial. Portanto, como conhecer amplamente física teórica sem um estudo aprofundado sobre teoria de categorias? Existem inúmeras aplicações importantes de teoria de categorias em física teórica. Eu mesmo já fiz uma modesta contribuição nesta área.

Existem ainda as aplicações de métodos de lógica matemática em física teórica. Um exemplo bem conhecido é o resultado obtido pelos brasileiros Newton da Costa e Francisco Doria, no qual se demonstra a impossibilidade de conceber um algoritmo que permita decidir se um sistema dinâmico qualquer é caótico ou não. Esta é uma das aplicações mais importantes de lógica matemática em teoria do caos. Portanto, sem um conhecimento profundo de lógica matemática, qualquer visão a respeito de física teórica torna-se extremamente limitada. 

Em suma, o tema é por demais extenso para ser explorado de forma detalhada em uma postagem de blog. Mas espero ter convencido o leitor de que não faz sentido perguntar qual é o conteúdo matemático minimamente necessário para compreender física teórica.

Porém, vale um importante alerta para aqueles que pretendem aprofundar seus estudos matemáticos com o objetivo de melhor compreender física. É muito fácil um pesquisador se distanciar da física quando exagera em sua visão matemática do mundo. Um exemplo interessante é o estudo das teorias de gauge. As teorias de gauge são provavelmente as teorias físicas mais fiéis à matemática. E são provavelmente as teorias físicas com maior número de casos de conceitos matemáticos sem interpretação física ou com interpretação polêmica. 

Nas demais teorias físicas, muito comumente pesquisadores e cientistas fazem manobras teóricas sem fundamentação matemática alguma. Um exemplo bem conhecido são as famosas aproximações. Isso ocorre porque mesmo a física de hoje é fortemente sustentada em intuição. E intuições são muito difíceis de serem justificadas racionalmente. Um exemplo histórico bem conhecido é o átomo de Bohr, nos primórdios do nascimento da mecânica quântica. Niels Bohr criou um modelo para explicar a estrutura de átomos, o qual se baseia em ideias absolutamente contraditórias. Uma discussão detalhada sobre o tema pode ser encontrada no livro O Irracional, de Gilles-Gaston Granger. 

Ninguém até hoje estabeleceu de forma clara qual dose de formalismo matemático deve ser usada em física teórica e qual a dose de intuição, sem apelo racional imediato, que deve ser tolerada. Portanto, a melhor saída deste dilema é a discussão crítica. Física, como todas as demais ciências, é uma atividade social. Se alguém tem uma ideia nova, deve submetê-la à análise crítica promovida pelos seus pares. Sem discussão, não há ciência. 

Físicos usam a matemática como se estivessem escrevendo torto em linhas retas. Por isso mesmo muitas teorias matemáticas certas surgem a partir de ideias aparentemente tortas dos físicos, estabelecidas a partir de meras intuições. Quando Paul Dirac empregou a função delta que hoje é conhecida pelo seu nome, os matemáticos ficaram alarmados com a ignorância do físico britânico. Hoje a teoria de distribuições mostra claramente que todas as intuições de Dirac estavam corretas do ponto de vista matemático. Ou seja, fazer física é como navegar em um oceano de ideias, sendo algumas delas racionais e outras nem tanto. 



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