Educação
Como ler sobre ciência sem ficar lelé da cuca
Enquanto desenvolvo os vídeos educativos anunciados, além de cumprir com as minhas obrigações como docente e pesquisador, consigo encontrar algumas brechas de tempo para escrever postagens. Vamos lá.
A neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel lançou no mês passado o livro Falando Ciência: Guia prático para comunicar ciência aos seus pares e ao público sem arrancar os cabelos. A ideia da autora, em princípio, é muito boa. Afinal, qual é o valor social do conhecimento científico se ele não puder ser aplicado ou, pelo menos, compartilhado? E como justificar a investigação científica perante o público se seus resultados forem conhecidos apenas por aqueles que desenvolvem a ciência?
Mas creio que seria igualmente importante alguém escrever uma obra um pouco mais fundamental, intitulada "Ouvindo Ciência: Guia prático para entender ideias novas sem arrancar os cabelos dos outros".
Como muitas atividades sociais (incluindo educação, música, teatro, cinema e política, entre outras), a ciência enfrenta grave crise. A última novidade foi publicada hoje, no site de notícias The Independent. De acordo com Richard Smith, ex-editor do prestigiadíssimo British Medical Journal (BMJ), "a maior parte do que é publicado em periódicos científicos hoje em dia está simplesmente errado ou carece de sentido". Em palestra na Royal Society, Smith relatou um experimento muito simples, realizado quando ele editava o BMJ. Um pequeno artigo científico, contendo oito erros intencionalmente colocados, foi enviado a 300 pesquisadores que costumam trabalhar como avaliadores para aquele periódico. Nenhum dos avaliadores encontrou mais do que cinco erros. A média foi de dois erros encontrados, para cada revisor. E 20% desses revisores não encontrou erro algum. Se o atual sistema de avaliação de artigos científicos - para fins de publicação em periódicos especializados - fosse uma droga sob testes, jamais entraria no mercado. Isso por conta de inúmeras evidências de indesejáveis efeitos colaterais, mas sem evidências convincentes de benefícios, afirma Smith.
A raiz do problema reside, entre outros fatores, em conflitos de interesses entre pesquisadores e obsessão por modismos científicos. E este fenômeno tem criado também enormes obstáculos para a veiculação de ideias genuinamente originais e relevantes.
Ora. Se a própria comunidade científica encontra crescente dificuldade para conferir credibilidade no que faz, mesmo entre seus pares, o que deve pensar um leigo que se interesse por ciência?Por conta disso, fiz uma breve lista de dicas para ler e ouvir ciência. Espero que o leitor aproveite bem essas recomendações.
1) Não se impressione com vocabulário técnico. Ciência é uma atividade humana que faz uso de termos linguísticos e modos de pensar nem sempre encontrados no cotidiano do público leigo. Portanto, é muito fácil usar terminologias e modos de inferência que simplesmente induzem ao erro. Um exemplo bem conhecido é o célebre embuste do monóxido de dihidrogênio. Esta substância é o principal componente da chuva ácida, contribui para o Efeito Estufa, pode causar queimaduras severas, acelera a corrosão e oxidação de metais e já foi encontrada em tumores retirados de pacientes com câncer. No entanto, é empregada na fabricação de refrigerantes e sucos industrializados, bem como na produção de fast food. Devemos combater o emprego de monóxido de dihidrogênio na indústria alimentícia? Certamente que não. Afinal, monóxido de dihidrogênio é simplesmente um termo técnico para água.
2) Desconfie de afirmações exageradamente surpreendentes. Se um autor afirma categoricamente algo que lhe parece muito estranho ou surpreendente, consulte especialistas ou outras fontes confiáveis, para cruzar informações. Jamais confie em um único autor, mesmo que publique suas ideias em um veículo científico bem conhecido e respeitado. Procure conhecer a repercussão dessas ideias na comunidade científica. Por exemplo, nenhum físico sensato afirma de maneira categórica que o Big Bang determinou o nascimento do universo bilhões de anos atrás. O que se afirma, de maneira responsável e bem qualificada, é que existem evidências muito convincentes de que o universo conhecido surgiu a partir de uma grande explosão hoje conhecida como Big Bang. Citando mais um exemplo, este mês o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis publicou um pequeno livro em parceria com Ronald Cicurel, no qual defende que máquinas de Turing jamais conseguirão simular o cérebro humano. Este é um belo exemplo muito recente de afirmação bombástica que certamente gera muita desconfiança. Cuidado!
3) Desconfie do senso comum. Com intimidadora frequência, "senso comum" significa simplesmente "repetição de jargões populares resultantes de reflexão superficial". Afirmações como "é lógico que x = x", "a toda ação corresponde uma reação", "tudo é relativo", "o homem descende do macaco", "é impossível dividir por zero", "postulado é uma verdade evidente", "o gato de Schrödinger está vivo e morto ao mesmo tempo", entre outras, nada têm a ver com ciência. Toda ideia de caráter científico depende de um contexto que deve ser cuidadosamente avaliado. Não se resume ideias relevantes da ciência, de maneira responsável, em uma ou duas frases.
4) Evite autores que opinam sobre ciência sem jamais terem feito contribuições científicas. Para opinar, é preciso conhecer. E, para conhecer, é preciso fazer. Quem faz ciência, publica suas ideias em veículos especializados. Quem não publica em veículos especializados, não conhece ciência. Simples assim. Não existe conhecimento científico passivo, que se aprende apenas lendo. Ciência é uma atividade que demanda sofisticado requinte intelectual, o qual só pode ser desenvolvido com muita prática. Assim como um atleta nada aprende de relevante apenas acompanhando atividades físicas de seu treinador, nenhuma pessoa aprende ciência sem fazer ciência. Livrarias e internet estão repletos de livros e artigos de autores que opinam sobre ciência sem jamais terem se qualificado para isso. É claro que fazer ciência não é suficiente para opinar sobre o tema. Afinal, não são poucos os experientes profissionais que erram gravemente em seus pareceres, como ilustrei acima. No entanto, é fundamentalmente necessário.
5) Desconfie de quem grita e de quem especula. Aqueles que tentam impor ideias, são meros doutrinadores. E ciência não é uma doutrina. Quem tenta impor que "ciência é uma atividade racional", não demonstra racionalidade. Quem afirma ser cético, deve cultivar o ceticismo sobre seu próprio ceticismo. Quem afirma que uma máquina de Turing jamais poderá simular as funções do cérebro humano, está apenas especulando. Conhecimento científico só pode ser adquirido com muito empenho, muita discussão e muita paciência.
6) Conheça noções básicas de argumentação. Saiba diferenciar argumentos dedutivos de indutivos. Conheça pelo menos as formas mais comuns de falácia. E perceba a diferença entre debates e embates.
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