Educação
Ciência e Pseudociência
São muitos os autores que apontam para a miséria intelectual dos fundamentos da astrologia. Outros preferem questionar a cientificidade da homeopatia, da antropologia e da psicanálise. Há ainda aqueles que denunciam as frágeis bases epistemológicas e metodológicas da ufologia e da parapsicologia. Todas essas áreas citadas já foram associadas à pseudociência. Mas não serei capaz de definir claramente o que é pseudociência, pois sequer existe o conceito de ciência, de maneira a ser aceito pela ampla maioria da comunidade científica. O caminho que tento seguir aqui, portanto, para qualificar as diferenças entre ciência e pseudociência, é meramente pragmático. Ou seja, ciência é uma atividade exercida por uma comunidade profissional de pesquisadores e cientistas, os quais veiculam suas descobertas científicas e/ou tecnológicas em periódicos especializados que atendem aos seguintes requisitos básicos: têm que ter corpo editorial, sistema de avaliação promovida por pares, circulação internacional e indexação representativa (preferencialmente no Science Citation Index). No âmbito desta atividade, toda publicação científica está automaticamente sujeita ao espírito crítico e analítico da própria comunidade científica. Se uma dada contribuição publicada frutificar na forma de citações (seja por conta de aplicações, desenvolvimentos de novas ideias e teorias ou meros esclarecimentos), temos então um exemplo de trabalho científico relevante.
Mesmo que este critério social possa parecer sensato à primeira vista, ainda é possível localizar estranhos focos de atividades suspeitas na rede social científica, mesmo quando se procura atender às exigências básicas citadas. Somos obrigados a perceber que a comunidade científica é uma intrincada rede social, cujos nós fundamentais são pessoas. E pessoas são sempre miseravelmente falíveis.
Cito o exemplo do brasileiro André Koch Torres Assis, professor livre docente de física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele é um exemplo muito sutil, ainda que ocasional, daquilo que chamo de pseudo-intelectualismo, e que poucos percebem. Mas é um exemplo de pseudo-intelectualismo que deve ser levado muito a sério, dado o fato da sua influência ser muito mais significativa do que a de um místico que publica uma coluna de astrologia em um jornal ou de um médico homeopata que cura fobias usando gotas de água. Parte do que se segue é parcialmente inspirado em um artigo que publiquei anos atrás na Scientific American Brasil.
Quando se estuda eletrodinâmica clássica na universidade, a abordagem usual é através das equações de Maxwell, um sistema de equações diferenciais que descreve a dinâmica do acoplamento entre campos elétricos e magnéticos. Mas a eletrodinâmica de Weber, também originada no século 19, fornece uma visão alternativa para fenômenos associados à dinâmica de cargas elétricas, e que não é compatível com a teoria de Maxwell. Então, uma pergunta natural é a seguinte: “Por que se estuda eletrodinâmica de Maxwell nas universidades e não a de Weber?”
Alguns anos atrás, André Assis provou um resultado fascinante, do ponto de vista dos fundamentos de teorias físicas. Ele mostrou que, se a eletrodinâmica de Weber estiver correta, então a massa inercial de uma carga elétrica depende da distribuição de cargas ao seu redor. Vale lembrar que a massa inercial é aquela associada à dificuldade de se exercer mudanças no estado de movimento de um corpo com massa de repouso não-nula.
O interessante é que esse efeito previsto por Assis não ocorre no âmbito da teoria de Maxwell. Ou seja, tal conseqüência lógica dos princípios da eletrodinâmica de Weber não deixa de fornecer um fascinante teste de comparação entre as duas formulações que descrevem a dinâmica de corpos com massa inercial e carga elétrica. Além disso, esse conhecimento pode contribuir até mesmo no estudo de história da física, principalmente na eventual comparação entre ideias que se consagraram e aquelas que foram esquecidas.O surpreendente foi o fato de que V. F. Mikhailov publicou nos Annales de la Fondation Louis de Broglie um artigo no qual se afirma que essa dependência entre massa inercial e distribuição de cargas elétricas se confirma experimentalmente. Um artigo desses, se estivesse correto, estaria colocando em xeque vasta porção do conhecimento tradicional sobre física clássica. Como há, em diversas teorias usuais, uma equivalência entre massa inercial e massa gravitacional (essa última é a massa responsável pelos processos de atração gravitacional), tal resultado estaria fornecendo uma pista valiosa sobre uma possível unificação entre os campos gravitacional, elétrico e magnético, algo sonhado há muito tempo pelos físicos.
Posteriormente, porém, a revista Canadian Journal of Physics enviou para mim um artigo de Johann E. Junginger e Zoran D. Popovic, no qual os autores não apenas mostram a principal falha no experimento de Mikhailov, como também refazem a experiência corretamente e demonstram que a massa inercial de elétrons independe da distribuição de cargas ao redor, com uma margem de erro inferior a 1%. A revista canadense queria meu parecer sobre o artigo. Imagino que me procuraram porque anos antes eu havia publicado um texto (em parceria com Clóvis Maia) sobre algumas das idiossincráticas ideias de Assis na Foundations of Physics Letters, apontando erros fundamentais em sua obra sobre gravitação à la Weber. Recomendei a publicação do esclarecedor texto de Junginger e Popovic e o artigo acabou sendo veiculado pelo periódico canadense.
As discrepâncias experimentais entre as formulações de Weber e de Maxwell não param por aí. A força eletrodinâmica de Weber dá a direção errada da radiação gerada por uma carga elétrica acelerada e também não explica a luz síncroton, amplamente confirmada em aceleradores de partículas.
Até aí não há problema algum, do ponto de vista científico. Apesar do fracasso da eletrodinâmica de Weber ser um fato experimental, não deixa de ser uma curiosidade fascinante a comparação entre duas formulações distintas para explicar um mesmo universo de fenômenos físicos, a saber, os que estão associados à dinâmica de cargas elétricas. O interesse filosófico sobre essas distinções epistemológicas é igualmente evidente.
Mas Assis resolveu ir além: abraçou a eletrodinâmica de Weber como projeto de vida em sua carreira, recusando-se a aceitar que eletrodinâmica de Weber é uma teoria que explica bem menos fenômenos do que o eletromagnetismo de Maxwell. E, além disso, desenvolveu um programa de descrição de forças gravitacionais, inspirado nas ideias de Weber para a eletrodinâmica, chamando-a de mecânica relacional.
Assim como há semelhança em forma entre as leis de Coulomb e da gravitação universal de Newton, Assis investiu fervorosamente em uma proposta de “gravitacionalização” das equações de Weber, insistindo que suas ideias formam um novo mundo que coloca a teoria de relatividade geral de Einstein como ultrapassada. Aliás, pior do que ultrapassada, segundo Assis, a relatividade geral está errada!
Em seu livro Mecânica Relacional (CLE, 1998) Assis escreve à página 193 o seguinte: “Parece-nos que todos esses conceitos teóricos de contração de comprimento, dilatação do tempo, invariância de Lorentz, leis covariantes e invariantes, métrica de Minkowski, espaço-tempo quadridimensional, tensor energia-momento, geometria riemanniana aplicada na física, elemento de Schwarzschild, álgebras tensoriais em espaços quadridimensionais, quadri-vetores, tensor métrico, símbolos de Christoffel, super cordas, curvatura do espaço,..., desempenham o mesmo papel que os epiciclos na teoria ptolomaica.”
Em outras palavras, Assis simplesmente afirma que a maioria absoluta dos físicos é formada por tolos, mas que ele tem a solução para seus problemas. Pior do que isso, apesar de seu livro propor uma comparação entre sua mecânica relacional e a relatividade geral, o parágrafo acima promove uma confusão muito grande ao incluir o termo “super corda”, que nada tem a ver com qualquer uma das teorias aventadas.
É claro que ciência não se faz por opinião ou votação entre cientistas. E, a princípio, podemos até admitir o caso de que Assis tenha razão, ou seja, que é um gênio à frente de praticamente todos os demais físicos do planeta, e que Einstein errou.
Mas no momento em que Assis compara suas ideias próprias sobre gravitação com a teoria da relatividade geral de Einstein, ele claramente demonstra profunda ignorância sobre a última. Não posso me estender sobre todos os detalhes, os quais demandariam um livro inteiramente dedicado ao tema. E no passado troquei inúmeros e-mails e conversas com Assis, o qual sempre se mostrou muito simpático, apesar da mente impenetrável a críticas. Mas posso dar um breve exemplo ilustrativo da estranha mentalidade deste importante físico. Afirma ele o seguinte: “Nada na física leva à conclusão de que a velocidade da luz deva ser constante qualquer que seja o movimento do observador ou do detector. [... isso] só pode gerar a necessidade de introduzir conceitos estranhos e desnecessários como os de dilatação do tempo, contração de comprimento [...].”
Assis demonstra, desse modo, desconhecer referências básicas de astrofísica e física de partículas, além de aplicações tecnológicas como o GPS (Sistema Global de Posicionamento). Se o sistema de localização global via GPS não levasse em conta efeitos relativísticos de velocidade do satélite relativamente à Terra e efeitos de diferença de potencial gravitacional (relevantes no âmbito da teoria da relatividade geral), jamais teríamos a precisão que este sistema oferece para posicionamento. O GPS funciona e funciona bem. E ele leva em conta efeitos previstos tanto da relatividade restrita quanto da relatividade geral. Contração de comprimento e dilatação do tempo são fenômenos reais, mensuráveis e mensurados em diversos testes independentes realizados ao longo de décadas pelo mundo todo, incluindo aqueles executados em aceleradores de partículas.
Vale observar que o livro sobre mecânica relacional de Assis tem versão em inglês (publicada pela curiosa editora canadense Apeiron).
O mais incrível é que Assis foi membro notável durante anos da Natural Philosophy Alliance (NPA), uma instituição de dissidência em ciência. Isso mesmo! Dissidência não existe apenas em política, mas em ciência também. Naquela época constava no site oficial que a NPA era “devotada principalmente à ampla crítica, em seus mais fundamentais níveis, contra as doutrinas frequentemente irracionais e não-realistas da física moderna e da cosmologia, mantendo um espírito de mente aberta.” Ela também propunha a “substituição dessas doutrinas por ideias muito mais válidas desenvolvidas com completo respeito à evidência, à lógica e à objetividade.”
Entre os membros da NPA há físicos e engenheiros, sendo que um dos ex-membros, Ronald Hatch, publicou um artigo em 1995 no qual afirma que o GPS fornece evidências contrárias às teorias de relatividade de Einstein. Duas curiosidades: (i) Hatch é especialista em GPS e (ii) ele publicou esse bizarro artigo na revista dissidente e não indexada Galilean Electrodynamics.
Para aqueles que não conhecem física, vale observar que o próprio nome desse periódico é, por si só, uma afronta violenta ao bom senso. Isso porque a eletrodinâmica, como usualmente se entende, é incompatível com a visão galileana de física. As leis da eletrodinâmica clássica não são invariantes sob transformações de Galileu, usualmente empregadas em mecânica newtoniana. E as leis da física, relativamente a algum grupo de transformações de coordenadas, precisam ser invariantes do ponto de vista de diferentes observadores; caso contrário, não seriam leis. Por isso foram concebidas, há mais de um século, as transformações de Lorentz, que mais tarde foram empregadas por Einstein para compatibilizar eletrodinâmica de Maxwell com mecânica, criando-se assim a teoria da relatividade restrita. Ou seja, enquanto pessoas como Einstein procuraram por uma visão mais unificadora para a física, alguns grupos de pessoas tentam simplesmente provocar demais profissionais com periódicos de títulos meramente cômicos, como o Galilean Electrodynamics. Tanto é assim que os membros da NPA chegam a se referir ao conhecimento físico vigente como uma doutrina.
No entanto, a postura de Assis é evidentemente doutrinária. Ele afirma em seu livro sobre mecânica relacional que a teoria da relatividade geral de Einstein não é compatível com o princípio de Mach. Em seguida, mostra como sua mecânica relacional demonstra o princípio de Mach na forma de teorema, indicando uma vitória de suas ideias. No entanto, aquilo que Assis entende por princípio de Mach é apenas uma das diversas visões existentes na literatura sobre o tema.
Ernst Mach foi um dos críticos mais contundentes da mecânica newtoniana. E uma das críticas que ele promovia se referia a fenômenos de inércia. Na opinião de Mach o fenômeno de inércia dos corpos com massa não estava fundamentado de maneira inequívoca na teoria de Newton para os fenômenos mecânicos. No entanto, Mach jamais escreveu explicitamente qualquer princípio físico de inércia que pudesse ser chamado de princípio de Mach, como hoje se insinua na literatura. Este nome se refere a toda uma classe de interpretações das ambíguas ideias de Mach sobre inércia. E Assis adota apenas uma das visões, ignorando as demais. Uma postura como essa é certamente doutrinária, praticamente isenta de crítica.
É surpreendente também saber que este mesmo livro de Assis sobre sua mecânica relacional foi publicado pelo Centro de Lógica e Epistemologia (CLE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a principal referência institucional em lógica e filosofia da ciência do Brasil. Isso novamente ilustra o quão distantes estão os filósofos da ciência em relação à ciência, principalmente aqui no Brasil.
Mas meu objetivo principal não é simplesmente promover críticas à mecânica relacional ou à NPA, os quais estão sendo citados aqui apenas para firmar um ponto que julgo importante: “Como julgar se uma proposta intelectual está correta?”
O leitor poderia questionar o seguinte: “Tudo bem, Assis, Hatch e outros são meros dissidentes que são contrários às teorias físicas atuais simplesmente porque não as entendem; mas o autor desta postagem que agora leio também está nadando contra a corrente, a partir do momento em que usualmente se coloca contra a maioria dos autores e docentes de ensino médio, bem como uma boa parte de profissionais do ensino superior do Brasil. Não será Sant’Anna tão mal informado quanto os dissidentes da NPA?”
Minha resposta é uma só: “O leitor que decida isso!”
É claro que só escrevo sobre aquilo que acredito. Se escrevo e publico é porque creio profundamente em tais ideias. Mas ciência e educação com responsabilidade se fazem com trocas de ideias. Ciência e educação são eventos sociais. Tolo é aquele que acha que tenho a pretensão de ditar o que é certo ou errado. Até porque minhas opiniões podem mudar e constantemente mudam, ao contrário do que vejo nos membros da NPA. Meu único propósito desde o início tem sido o de jogar sementes. Se tais sementes germinarem, ótimo. É sinal de que não errei tanto assim.
É claro que a mecânica relacional tem sido estabelecida por Assis e seguidores de maneira quase religiosa ou partidária. Mesmo assim, a experiência tem mostrado que ideias justificadas que funcionam bem são mais fortes do que a oposição de pessoas irracionais. Um exemplo interessante é o da teoria de conjuntos de Georg Cantor. Cantor enfrentou forte resistência durante quase toda a carreira, mas suas ideias apresentavam resultados tão convincentes que os matemáticos não tiveram escolha: passaram a estudar teoria de conjuntos, como disciplina legítima, e aplicá-la em inúmeros ramos da matemática.
Eu mesmo me dispus a estudar mecânica relacional e até publiquei artigo nos Estados Unidos sobre o tema. Ou seja, não fechei os olhos para algo que apenas cheirava mal. Estudei, conheci, analisei, desenvolvi. Em parceria com um ex-aluno, provei, usando método axiomático, que certas ideias defendidas por Assis a respeito de inércia estavam erradas. Qualquer julgamento sobre qualquer atividade intelectual demanda exatamente o mesmo empenho. Isso porque os conteúdos abordados nesta postagem estão extraordinariamente distantes de se esgotarem.
Ou seja, para o leitor que deseja genuinamente saber a diferença entre um trabalho intelectual sério e um pseudo-intelectual, só existe uma solução: escolha um tema de interesse e verdadeiramente se aprofunde nele. Não confie nas minhas palavras e nem nas palavras de pessoa alguma. Confie no seu discernimento e submeta suas ideias a críticas realizadas por pares profissionais. Ciência é uma batalha.
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