Alunos babilônicos
Educação

Alunos babilônicos



Enquanto produzo a série de vídeos educativos que, em breve, serão disponibilizados gratuitamente, aqui vai uma discussão sobre um tipo muito peculiar de aluno que tem se tornado cada vez mais comum nas salas de aula. É aquilo que chamo de aluno babilônico

Babilônia foi uma região que abrigou uma civilização no Oriente Médio, milhares de anos atrás. Os textos babilônicos mais antigos, sobre matemática, datam de 1900 a 1600 a.C.. É bem sabido, por exemplo, que os babilônios sabiam extrair a raiz quadrada de números (hoje chamados de positivos), usando média aritmética. O método era muito simples e intuitivo.

Digamos que os babilônios quisessem calcular a raiz quadrada de 17. Neste caso, o número 4 era considerado como uma primeira aproximação. Afinal, o quadrado de 4 é 16, algo próximo de 17. Em seguida, eles calculavam a média aritmética entre 4 e 17/4. Apesar de 17/4 ser diferente de 4, o produto entre ambos ainda é 17. A média aritmética entre esses dois valores resulta em 4 + 1/8. Este resultado é uma segunda aproximação, bem mais próxima da raiz quadrada de 17. Para obter uma terceira aproximação, basta repetir o processo, calculando a média aritmética entre 4 + 1/8 e 17/(4 + 1/8). O resultado será um número real mais próximo ainda da raiz quadrada de 17. Enquanto se desejar aproximações melhores, basta repetir este processo. 

O leitor deve perceber que o método babilônico para calcular raiz quadrada (de números reais positivos que não sejam quadrados perfeitos) é um rudimento de método numérico, criado muito antes de computadores serem sequer imaginados. 

Hoje em dia existem múltiplas maneiras para justificar o método babilônico, do ponto de vista matemático. Mas quero focar em uma justificativa em especial: o método de Newton-Raphson. 

A aplicação do método de Newton-Raphson para determinar os zeros de uma função real f, com domínio nos números reais e dada por f(x) = x^2 - 17, nos leva ao processo iterativo

x(n+1) = [x(n) + 17/x(n)]/2,

onde n é um número natural. Esta é uma tradução do método babilônico (no exemplo acima) para uma linguagem atual.

No entanto, há uma característica nesta aplicação do método de Newton-Raphson que mostra algo interessante. Poderíamos usar procedimento análogo para determinar os zeros de uma função g(x) = x^m - a. Desta forma seria possível calcular a raiz m-ésima (m é um inteiro positivo) de qualquer número real positivo. Por que os babilônios não sabiam disso?

Bem. Apesar de Isaac Newton e Joseph Raphson não terem vivido em um império babilônico quatro mil anos atrás, este fato não responde à questão dada acima. O método de Newton-Raphson estabelece que uma raiz m-ésima de um número real a ainda pode ser calculada por aproximações, envolvendo simples média aritmética entre m parcelas. 

Ou seja, se os babilônios sabiam que a raiz quadrada pode ser calculada por aproximações envolvendo média aritmética entre duas parcelas, por que não cogitaram que a raiz cúbica pode ser calculada por aproximações envolvendo média aritmética entre três parcelas? Parece um passo natural. 

A resposta que Lucas Bunt e colaboradores apresentam neste fabuloso livro sobre história da matemática elementar é a seguinte: a matemática babilônica não era sustentada por generalizações ou justificativas, mas apenas por exemplos pontuais. E este é um aspecto crucial para que eu defenda a tese da presença do espírito babilônico nos dias de hoje.

Tomo como exemplo uma turma de cálculo diferencial e integral que tenho atualmente. A maioria dos alunos dessa turma é completamente incapaz de exemplificar a aplicação de um teorema, mesmo após a sua demonstração. Mas é perfeitamente capaz de repetir um procedimento se eu apresentar um exemplo. Ora. Esta é justamente a forma de pensar dos matemáticos babilônicos de quatro milênios atrás! 

Teoremas, lemas, proposições, corolários, definições, equações e funções, para muitos alunos, constituem aquilo que eles chamam de "letrinhas". Se houver um x ou um y ou um n, eles nada compreendem. Não são capazes de usar as tais das "letrinhas" como ferramenta de generalização. E são incapazes também de fazer inferências elementares. Mesmo diante de uma média aritmética escrita na lousa, não são capazes de reconhecer aquilo como uma média aritmética. Isso porque média aritmética, pelo menos em suas vidas, sempre se limitou à aplicação sobre notas em provas, para determinar média final. Sem um exemplo pontual de qualquer outra aplicação de média aritmética, este conceito passa a ser imperceptível diante de suas mentes. 

Como lidar com mentes babilônicas no mundo de hoje, que tanto evoluiu ao longo de quatro mil anos? Como lidar com jovens definidos por mentes tão velhas e antiquadas?

Em artigo recente, publicado em um dos mais prestigiados periódicos especializados em educação, Emily Schoerning e colaboradores defendem a adoção de técnicas comuns à investigação científica para lecionar ciências, especialmente no ensino elementar. Sem métodos de investigação baseados em argumentação, não é possível lecionar ciências. 

Sim. Claro! Mas como promover isso se os próprios professores de ciências não têm contato direto com a prática científica do questionamento, da validação, da busca por evidências, da generalização, da argumentação? Nossos professores não passam de meros repetidores daquilo que está escrito em livros péssimos.

Professores medíocres que abandonaram seus próprios cérebros, alunos defasados em quatro mil anos, livros ruins, internet com conteúdos limitados e não confiáveis e famílias que não estimulam o conhecimento científico, fazem parte de uma poderosa rede social que alimenta apenas a si mesma. 

A solução que vejo? Vender perucas auriculares. Talvez mentes babilônicas tenham interesse nisso.



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