A correlação entre opiniões sobre ciência e a capacidade de fazer ciência
Educação

A correlação entre opiniões sobre ciência e a capacidade de fazer ciência



O método Delphi é uma técnica criada nos anos 1960 e até hoje amplamente usada para obter informações convergentes sobre opiniões de profissionais de áreas específicas de atuação. 

Em 2003, por exemplo, Jonathan Osborne (Stanford University) e colaboradores publicaram artigo no qual empregaram o método Delphi para apurar opiniões convergentes sobre a natureza da ciência entre profissionais da filosofia, educadores, historiadores, divulgadores científicos e cientistas. Uma das visões em comum apuradas é a de que cientistas não seguem a tal da metodologia científica até hoje lecionada em instituições de ensino. Talvez por isso mesmo inúmeros professores de metodologia científica de nosso país insistem tanto em doutrinar alunos para seguirem as amalucadas normas da ABNT para a produção de textos. Afinal, para esses docentes forma parece ser mais importante do que conteúdo, quando o assunto é ciência.

Já em outubro do ano passado, Irene Y. Salter e Leslie J. Atkins (ambas da California State University) publicaram um fascinante artigo em Science Education no qual as autoras comparam opiniões de alunos sobre a natureza da ciência com a capacidade desses alunos se engajarem em atividades de investigação científica. Os discentes avaliados nesta pesquisa foram de um curso de licenciatura em ciências da própria California State University

O resultado da pesquisa de Salter e Atkins foi contundente. Opiniões de alunos sobre a natureza da ciência não constituem medida confiável para avaliar a capacidade de se engajarem em atividades de investigação científica. Reciprocamente, a competência para a realização de atividades científicas investigativas não garante que alunos tenham opiniões sobre a natureza da ciência que sejam consistentes com aquilo praticado por eles mesmos. 

Estes são resultados importantes, se levarmos em conta alguns fenômenos sociais bastante comuns, como a existência de fóruns populares destinados à discussão de ciências e o fato de existirem pesquisadores altamente qualificados que preferem seguir caminhos periféricos em suas vidas profissionais. 

No fórum Clube da Física, por exemplo, há quase dezenove mil membros. Em um país como o Brasil este é um número muito elevado para um fórum de discussões sobre física. Entre as regras do grupo há uma que estabelece o seguinte: "Caso você queira desbancar a teoria da relatividade, por exemplo, sinta-se a vontade para cursar a graduação em física, fazer seu mestrado, seu doutorado, começar suas pesquisas e provar que você está certo." Além de ser um argumento da autoridade e, portanto, de postura não científica, esta visão não encontra interseção alguma com a lista de convergências apuradas por Orborne, no trabalho acima citado. Pelo contrário, segundo Osborne e colaboradores, uma das opiniões convergentes apuradas entre profissionais ligados às atividades científicas é a de que cientistas são humanos e, portanto, as questões, respostas e explicações escolhidas por eles dependem de histórico pessoal e cultura local. Por isso mesmo a última regra da lista imposta pelo Clube da Física faz menos sentido ainda: "Por favor evite ser idiota."

O outro lado da moeda é a existência de profissionais altamente qualificados que insistem em uma ruptura com o senso crítico, como se estivessem em busca de auto-conhecimento alimentado por um senso próprio de popularidade. 

Recentemente recebi e-mail de um ex-aluno, intitulado "Sabedoria quântica, cura quântica, saúde quântica." Ele está preocupado com iniciativas como a de meu ex-aluno Gabriel Guerrer. 

Guerrer foi um dos pupilos mais brilhantes que já tive. Um de seus primeiros trabalhos científicos foi escrito em parceria comigo. Com doutorado obtido no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e estágio realizado no Grande Colisor de Hadrons do CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), hoje Guerrer segue um caminho que muito se assemelha ao de Amit Goswami, o famoso indiano que busca unificar física quântica com espiritualidade. E não são poucas as pessoas que gostam de ouvir discursos de uma suposta harmonia entre ciência e misticismo. Afinal, bastam intuições pessoais para muitas pessoas se regozijarem com uma suposta sabedoria conquistada sem os necessários cuidados que somente podem ser avaliados através da próxima interação com uma quantia considerável de profissionais qualificados. É justamente este o ponto analisado por pessoas como Osborne, Salter e Atkins. Ciência é uma atividade social desenvolvida por aqueles que estão diretamente envolvidos com ciência e não uma especulação propagada por meros curiosos, alunos ou ex-pesquisadores cercados por pessoas sedentas por conhecimento mas desprovidas de energia para encarar trabalho sério. 

Como Orborne observa, os próprios cientistas discordam entre si, justamente porque o conhecimento científico não emerge apenas a partir de dados, mas também de um processo de interpretação e concepção teórica. Neste sentido a atividade de divulgação científica é uma das mais arriscadas do ponto de vista social, justamente porque conhecimentos científicos devem ser informados para um público leigo, não comprometido diretamente com ciência. E, neste contexto, é um ato de irresponsabilidade divulgar ciência combinada com uma postura mística de auto-conhecimento espiritual. Não afirmo isso por negar quaisquer relações entre misticismo e ciência, mas por reconhecer que se tais relações existirem ainda estão muito distantes de evidências suficientemente convincentes.
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Clicando aqui o leitor tem acesso a críticas de Gabriel Guerrer.



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