Orgulho, Preconceito, Reação
Educação

Orgulho, Preconceito, Reação



O que define o caráter de uma pessoa é a maneira como ela reage diante de pressão. Não são discursos sobre seriedade, profissionalismo, honra, lealdade, fidelidade, cidadania, nobreza ou tolerância que definem o que realmente interessa a respeito de um indivíduo. Só podemos ser intimamente identificados a partir de nossas reações, quando estamos sob pressão. Quanto maior a pressão, mais transparentes ficamos. Na prática isso significa que revelamos quem realmente somos pela maneira como tentamos resolver nossos problemas. Esta é a visão artística usual sobre caráter em cinema e teatro e esta é a visão que me parece ser mais adequada ao mundo real. 

Nos próximos dias (talvez em umas poucas semanas) teremos alguns textos neste blog que retratam marcantes reações de diversas pessoas muito reais. Enquanto aguardamos essas novas postagens já a caminho, aproveito para discutir um pouco sobre dois problemas muito comuns a (provavelmente) todos os centros de excelência do mundo acadêmico: orgulho e preconceito. 

Uma amiga muito querida recentemente me disse que tem medo de fazer comentários em comunidades da internet porque já foi ironizada por isso. Respondi a ela que desconheço pessoa que não tenha sido ironizada até mesmo por colegas de profissão. A ironia, assim como orgulho e preconceito, fazem parte da vida. Precisamos aprender a lidar com isso. Se ouvimos ou lemos um comentário sarcástico ou irônico de alguém, certamente podemos aprender algo: (i) ou fomos realmente infelizes em nossas ideias e/ou ações (ii) ou o crítico apenas age como um pobre ingênuo (iii) ou a situação não passa de simples brincadeira.

No caso específico do preconceito (frequentemente manifestado por ironia ou sarcasmo), esta é uma falha humana quase (talvez absolutamente) inevitável. Se uma pessoa afirma "é fato que 1 + 1 = 2" já está sendo preconceituosa, pois parece assumir sem questionamento que estão sob operação números naturais na base decimal. No entanto, na notação usual para a base binária (assumindo que estamos falando de números naturais) 1 + 1 = 10. A falta de qualificação de discurso revela facilmente preconceitos. Portanto, se é perfeitamente natural e comum o preconceito em matemática, quem dirá nas demais questões humanas, as quais comumente carecem de qualificação e frequentemente estão sujeitas a aspectos emocionais. Já demonstramos em postagem anterior (usando matemática) como é difícil para qualquer pessoa ser imparcial, justa. Portanto, o preconceito é um fenômeno natural.

Como o tema do orgulho e preconceito é extremamente delicado, uma vez que eu mesmo estou limitado aos meus próprios orgulhos e preconceitos, procuro ilustrar essa questão fazendo um paralelo com o filme Dark Matter (Fúria pela Honra), de Chen Shi-Zheng. Esta é uma raríssima película que retrata com perturbadora fidelidade tanto o mundo acadêmico das melhores universidades do mundo quanto um evento trágico e real que ocorreu anos atrás nos Estados Unidos. O título original remete a uma poética ambiguidade. Pode ser traduzido como "matéria escura" (importante conceito em astrofísica e tema de pesquisa da personagem principal) ou "assunto negro".

No excelente elenco estão Ye Liu, Aidan Quinn e a magistral Meryl Streep (atriz recordista em indicações ao Oscar). Liu Xing (Ye Liu) é um jovem chinês extraordinariamente brilhante que consegue uma posição na equipe do Professor Jacob Reiser (Aidan Quinn). Reiser, responsável pela criação de um recente (mas já famoso) modelo cosmológico sobre a origem do universo, é o orientador de doutorado de Xing. 

De imediato Reiser mostra sua superfície para o jovem Xing: um reconhecido cientista que exala simpatia e que prefere ser chamado de Jake, no lugar de Professor Reiser. Esta demonstração de aparente humildade é extremamente comum. Mas frequentemente esconde um perfil mais autoritário e intolerante, pelo menos no caso de Reiser.

O filme é repleto de atritos pessoais mascarados por humor negro. Um colega de Reiser, por exemplo, conta uma piada em um jantar. 

Um físico experimental e um físico teórico estão no corredor da morte e um último pedido é concedido a ambos, antes da execução. O físico teórico pede, então, para apresentar seu último seminário, no qual poderá expor suas ideias geniais a respeito da origem do cosmos. Em seguida o físico experimental pede para ser executado antes do seminário. 

Em uma conversa supostamente mais séria, Reiser comenta com Xing sobre seu atrito profissional com seu ex-orientador de doutorado. Reiser contestou ideias importantes de seu mestre em um artigo científico. Xing respondeu que na China isso jamais aconteceria, pois discípulos nunca desafiam seus mestres, por simples e automático respeito. No entanto o próprio Xing afirma que esta é uma característica ruim da vida acadêmica chinesa. Afinal, sem desafio não há progresso. Reiser, ainda tentando demonstrar simpatia, responde na forma de brincadeira: "Você pode me desafiar quando quiser. Apenas se lembre de uma coisa: estou sempre certo." Naturalmente ambos riem, sem que Xing seja capaz de avaliar o que realmente está em jogo.

Investindo em sua tese de doutorado, Xing acredita ter resolvido um problema importante do modelo de Reiser, o qual não estava em pleno acordo com dados experimentais. Xing aplica, em seu trabalho, o conceito de matéria escura. Reiser não deu atenção à solução de Xing porque acreditava que seu modelo já estava perfeito. Como Xing ainda confiava em seu próprio trabalho, submeteu suas ideias para publicação em um importante periódico de astrofísica. O artigo foi publicado e Reiser ficou furioso, alegando que foi traído pelo seu discípulo. Somando a esta situação o forte desequilíbrio emocional do jovem Xing, temos uma situação que encerra com violenta tragédia. O pior é saber que situação muito parecida aconteceu de fato. 

Pessoas como Reiser eu conheci em carne e osso, especialmente nos Estados Unidos. São cientistas de renome internacional que esperam de seus discípulos algo próximo de trabalho escravo. Contestar ideias fundamentais sobre ciência de um renomado cientista, especialmente quando os questionamentos surgem de um discípulo, é uma manobra extremamente arriscada. Comumente se transforma em grave atrito pessoal. 

Este tipo de problema é virtualmente impossível de acontecer, por exemplo, com o Professor Newton da Costa. Mas o Professor Newton é uma rara exceção de honestidade intelectual. 

Por isso sempre insisto com alunos e demais pessoas que desejam abraçar a carreira acadêmica: o que destrói carreiras no mundo científico geralmente é a contraparte emocional e não o intelecto. 

Mesmo em países como Inglaterra, com forte tradição científica, o preconceito é extraordinariamente marcante. Um exemplo claro é o sexismo. Não são raros os cientistas, e mesmo pesquisadores, que resistem fortemente a ideias vindas de mulheres. Em outros países, como Estados Unidos e mesmo o Brasil, o preconceito contra mulheres na ciência também existe. Mas na Inglaterra este sentimento misógino é quase institucional, apesar de estar oficialmente mascarado por frequentes discursos de igualdade.

Para aqueles que gostam de analisar reações humanas, especialmente em ciência e educação, peço que aguardem. Teremos novidades bastante interessantes. Até breve.



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