O que este japonês estava fazendo no Mato Grosso?
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O que este japonês estava fazendo no Mato Grosso?




Um dos erros mais frequentes no estudo de história da ciência é a exagerada ênfase sobre o resgate histórico das teorias que venceram as barreiras da crítica intelectual e dos exaustivos testes experimentais. Entendo que o estudo das origens das teorias que se consolidaram socialmente durante significativo período de tempo despertem grande atenção. No entanto, deveríamos ficar atentos também nas ideias fracassadas. Certamente podemos aprender muito com elas.


Cito aqui uns poucos exemplos. Mas meu foco principal é sobre a teoria não-espaço-temporal do ilustre físico japonês Takao Tati.


Tati começou a estudar física teórica quando Japão e Estados Unidos entraram em guerra na década de 40 do século passado. Naquela época a eletrodinâmica quântica ainda era uma teoria recente, que encontrava terríveis obstáculos teóricos. As quantidades físicas eram calculadas via teoria das perturbações. A primeira ordem dessas perturbações coincidia com dados experimentais. Porém os termos de segunda ordem (que deveriam refinar as previsões teóricas) divergiam. E aquelas parcelas infinitas certamente eram desprovidas de significado físico. 


Naquela época Tati era discípulo de Sin-Itiro Tomonaga. Mas a parceria durou pouco. Tomonaga investiu em uma teoria hoje conhecida como renormalização. Por conta disso, ele dividiu o Prêmio Nobel de Física com Julian Schwinger e Richard Feynman, os quais também apostaram na mesma solução. E a teoria de renormalização é até hoje empregada em teorias quânticas de campos, apesar de suas graves limitações. Afinal, a teoria de gravitação de Einstein é não-renormalizável, o que dificulta consideravelmente qualquer tratamento quântico para a teoria da relatividade geral. 


Tati, porém, apostou em outra ideia. Ele considerava que a origem das divergências nas teorias quânticas de campos estava no emprego do espaço-tempo clássico nas mesmas. Para Tati, cada teoria física deve ter seu próprio conceito de espaço-tempo. E, no caso das teorias quânticas, as grandezas físicas definidas sobre o espaço-tempo devem ser tratadas via equações de diferenças finitas e não através do cálculo diferencial e integral usual, o qual se aplica sobre um espaço-tempo contínuo. Ou seja, para Tati, o espaço-tempo do mundo microscópico das partículas elementares é discreto (especialmente no caso dos fenômenos de alta energia). Neste sentido, não se tratava mais do espaço-tempo usual. Daí o nome descrição não-espaço-temporal, como ele costumava chamar. 


Como a teoria da renormalização se tornou extremamente popular entre os físicos, as ideias de Tati foram completamente esquecidas ou ignoradas. Ninguém mais lembra. Ninguém mais fala sobre isso. Desafio o leitor a encontrar algum físico que conheça essa história. 


Eu mesmo conheci o trabalho de Tati por mero acaso. Isso porque um amigo meu, Fabio Antonio Filipini, conheceu o físico japonês pessoalmente. E isso aconteceu no Mato Grosso, quando Filipini era aluno de graduação de engenharia elétrica.


No dia 22 de junho de 1988 Takao Tati ministrou uma palestra na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá. Na época estava acontecendo um evento que reuniu grandes nomes da física mundial, incluindo Cesar Lattes e Erasmo Recami, os quais dispensam apresentação. E um dos resultados deste evento foi a publicação do livro Mecânica Quântica, do próprio Tati. 


Isso mesmo! Tati publicou um livro em português, com pouco mais de 100 páginas, pela editora da UFMT. A tradução é de João de Vasconcellos Coelho. Apesar do título, a obra trata de teorias de primeira e segunda quantização. É um texto raro que felizmente tenho em mãos. 


Quando eu soube das ideias de Tati, procurei imediatamente por referências. Descobri que a maior parte de suas publicações sobre física não-espaço-temporal foram veiculadas pelo periódico japonês Progress of Theoretical Physics. Na época esta era uma das mais importantes revistas de física do mundo. No entanto, jamais vi citação alguma a esses trabalhos de Tati, exceto em publicações minhas. Uns poucos textos técnicos dele foram publicados também na italiana Nuovo Cimento, outra referência importante mais de meio século atrás.


Um dos artigos em especial, publicado em 1964, descreve detalhadamente, em quase cem páginas, as ideias centrais da descrição não-espaço-temporal, bem como aplicações em teorias clássicas e quânticas. Li aquele artigo dezenas de vezes durante anos. E confesso que até hoje não consigo entender com clareza as principais ideias ali colocadas. O melhor que posso dizer é que sinto haver algo de valor ali, apesar de não conseguir qualificar o que seria exatamente esse algo.


Tentei desenvolver a teoria de Tati durante meu doutorado. Foi com este projeto que fui aprovado no programa. No entanto, após várias discussões infrutíferas, fui obrigado a desistir daquela meta. Cheguei a trocar correspondências com Tati, o qual foi sempre muito gentil e receptivo. Mas ainda assim não consegui superar minha dificuldade para assimilar aquela teoria.


Não são raras as teorias físicas que se denunciam confusas e até mesmo inconsistentes. A própria gravitação newtoniana é um exemplo bem conhecido. Além de empregar os conceitos metafísicos de força e ação-a-distância, ela se propõe a deduzir as leis de Kepler sem de fato conseguir. Afinal, para inferir órbitas planetárias elípticas em torno do Sol, faz-se necessário considerar que esta estrela é inercial, o que contradiz a lei de ação-reação de Newton. Ou seja, a possibilidade de que as ideias de Tati não sejam claras não deve ser o único motivo que justifique o seu desconhecimento por parte da comunidade internacional de físicos. Creio que um fator vital que explique o esquecimento das ideias de Tati seja o fato de que ele se afastou de colegas importantes, como Tomonaga. 


Talvez a realidade da era nuclear tenha exercido importante influência também. Afinal, a pressão por resultados imediatos na compreensão da estrutura da matéria, e de suas interações com campos, era intensa. Como a teoria de renormalização ofereceu resultados práticos e rápidos, não importava se se tratava de uma teoria sem elegância e de fundamentação questionável.


Steven Weinberg, Prêmio Nobel em Física, cita Tati em seu monumental livro sobre fundamentos das teorias quânticas de campos. No entanto, ele menciona brevemente apenas uma contribuição de início de carreira, feita em parceria com Tomonaga.


Já houve casos interessantes de teorias abandonadas que foram resgatadas. A interpretação que o Príncipe Louis de Broglie forneceu para a mecânica quântica, no início do século 20, foi esquecida por muito tempo. Mas o físico britânico (ex-professor da Universidade de São Paulo) David Bohm, recuperou as ideias principais e as desenvolveu com considerável receptividade internacional até os dias de hoje.


É claro que existem riscos na tentativa de resgate de ideias científicas abandonadas no passado. Mas não vejo motivo para ignorar o trabalho de Tati sem uma cuidadosa revisão. Afinal, ciência é investimento. E todo investimento apresenta riscos.


O fato é que, como observa Tati, a teoria de renormalização não resolveu de forma alguma o problema da divergência nas teorias quânticas de campos. Apenas o evitou, contornando o problema, como se ele não existisse. Se tais divergências existem, faz-se necessária uma análise sobre as causas. E o fato de que espaço, tempo e espaço-tempo sejam tratados na forma usual, como um contínuo, parece justificar as infinidades que despontam na aplicação da teoria das perturbações. Afinal, por que não usar somatórios no lugar de integrais?


Aliás, historicamente falando, são justamente as diferenças entre integrais e somatórios que permitiram H. Casimir prever o efeito quântico que hoje leva o seu nome. Mas sobre esta questão prefiro discutir em postagem futura sobre a matemática do vácuo.



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