Educar é não saber
Educação

Educar é não saber




Aos seis anos de idade meu filho estudava em uma escola de padres. Um dia, voltando da aula, ele me disse de forma empolgada que a professora ensinou os alunos a ouvir Deus. Fiquei preocupado. Perguntei como isso era possível. Ele disse que bastava ficar de olhos fechados e prestar bastante atenção. Em poucos segundos era capaz de ouvir claramente a voz de Deus. 


Aquilo me deixou seriamente perturbado. A professora estava se aproveitando, de forma extremamente covarde, da inexperiência de seus alunos com relação à vida. Escola, seja mantida por instituições religiosas ou não, é ambiente para exercer o tirocínio crítico. E estimular crenças cegas a partir de técnicas elementares de sugestão, ainda mais sobre crianças, está muito longe dos objetivos de uma educação crítica.


Resolver o problema com meu filho foi muito fácil. Como o garoto era fã incondicional do músico norte-americano Michael Jackson, pedi a ele para fechar os olhos e se concentrar no rei do pop. Eu lhe disse que desta forma seria capaz de ouvir claramente a voz de Michael Jackson. Ele fez isso e quase instantaneamente a expressão em seu rosto mudou de empolgamento para decepção. Abriu os olhos e me disse que escutou a voz do cantor de forma clara. 


Mesmo com seis anos, meu filho sabia que Deus deveria ser mais importante do que Michael Jackson. E se ele era capaz de ouvir a voz do compositor de Billie Jean, seria capaz de ouvir o que bem entendesse, assim que fechasse os olhos e se concentrasse. 


Até hoje meu filho diz aos amigos que perdeu a fé aos seis anos. Hoje ele encara este episódio com muito humor. Mas esta foi uma das experiências que mais me preocupou em toda a minha vida. A dúvida que martela minha mente até hoje é se tomei a atitude certa. 


Que a professora cometeu um grave erro, me parece claro. Mas aquele erro me forçou a tomar uma atitude que não estava acima da crítica. Afinal, usei exatamente a mesma técnica de sugestão. Na época fiz uma reclamação formal na escola para garantir que ela jamais tentasse aquilo novamente. Mas o fato é que a educação de crianças na escola e em casa tem um papel fundamental para definir a vida adulta dessas pequenas criaturas. 


Meu filho é hoje uma pessoa que não demonstra o menor interesse em religião ou religiosidade. E o que questiono é o papel deste breve incidente na escola, quinze anos atrás, sobre o atual perfil dele. É saudável uma pessoa ser absolutamente desprovida de qualquer sentimento de religiosidade? Simplesmente não sei.


As pessoas mais tolas que conheço são aquelas que têm certeza inquestionável sobre o valor de suas ideias e atitudes. Um indivíduo que tem certeza sobre a importância de Deus no mundo é tão ingênua quanto aquela que tem certeza sobre a inexistência de Deus. E em educação algo semelhante ocorre. A certeza é inimiga do senso crítico e, consequentemente, da ciência. Mas é fato que ciência não é o único alicerce de nossa sociedade. 


O problema do episódio acima descrito é que ele envolve uma variável naturalmente polêmica: Deus. E a maioria absoluta das pessoas tem uma opinião própria a respeito de Deus. No entanto, não vejo o mesmo entusiasmo para discussões quando os temas sociais são matemática, ciências, línguas, filosofia, artes. 


No Brasil praticamente não existe ensino de filosofia. O que existe é o estudo de história da filosofia. E ainda assim este estudo não se fundamenta em referências originais, mas em traduções e exegeses escritas por supostos especialistas. Ou seja, a palavra desses especialistas é final. Onde está o estímulo ao pensamento filosófico original? No Brasil o ensino de matemática é doutrinário, como as palavras da professora de meu filho: "Faça como eu faço e tudo ficará bem." O Brasil é um país cuja educação é dominada por certezas no dia-a-dia, ainda que essas certezas sejam frequentemente contraditórias.


Recentemente perguntei aos meus alunos por que optaram realizar o curso de física. Um deles justificou sua escolha afirmando que a física explica tudo. Perguntei então se a física explicava o motivo para ele estar com o dedo indicador da mão direita encostado em seu rosto. Ele disse que a física explicava isso, sem dúvida. De onde vem esta mentalidade? Como pode um jovem ter a mente tão fechada para o questionamento? Qual tipo de lavagem cerebral foi promovida nele para se transformar nisso? O que se espera de jovens é uma mentalidade mais aberta, para questionar o que se faz hoje. Mas não é assim que meus alunos agem. A maioria deles simplesmente deposita absoluta confiança no que professores e autores afirmam em aulas e livros. E essa confiança alimenta um ciclo eterno de certezas e mais certezas. 


Vejo o mesmo ocorrer entre professores e autores de livros. A maioria desses profissionais afirma em sala de aula: "Espaço vetorial é um conjunto munido de duas operações, satisfazendo os seguintes axiomas..."; "Conjunto é uma coleção de objetos distintos entre si"; "Lógica é o estudo das inferências." etc. Ou seja, espaços vetoriais não podem ser fundamentados em teorias de categorias? Não percebem que na teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel o conceito de conjunto não é definido e sequer está no elenco dos conceitos primitivos? Não sabem que a lógica se ocupa de muito mais áreas do saber do que apenas inferências? 


Até quando vamos insistir nesses discursos prontos e jamais questionados de que matemática é isso ou aquilo? 


Em escolas de periferia dos grandes centros urbanos encontramos tráfico de drogas, batidas policiais semanais, estupro de professoras e alunas, assassinato de professores e alunos e outros horrores que fazem o discurso acima parecer uma absoluta perda de tempo. Mas pelo menos nos ambientes que zelam por uma civilidade mínima poderíamos estar empenhados em uma educação crítica. E educação crítica é aquela que se revisa e questiona a cada momento. Somente assim poderemos sonhar com um futuro melhor no qual se elimine de uma vez por todas as atrocidades óbvias que ocorrem em nossas escolas de periferia.


Todos os dias nossas crianças e jovens estão voltando de suas escolas com cabeças doutrinadas. O exemplo de Deus dado acima é apenas um desses incontáveis casos. Aqueles que leram e analisaram obras como Pensamentos, do matemático francês Blaise Pascal, sabem que até mesmo religião pode ser estudada de forma crítica. Ou seja, não assumo a postura radical de Richard Dawkins, o qual se declara abertamente como inimigo da religião. Religião não é problema. Falta de senso crítico, isso sim é problema grave. 


Mesmo que Deus possa ser mais importante do que matemática, ainda a crença cega em sua existência é menos relevante do que as demais crenças cegas que estão sendo doutrinadas em nossas escolas. A questão é quando e quem vai perceber isso a tempo.



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