Como escrever artigos científicos
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Como escrever artigos científicos



Recentemente descobri algo que me deixou perplexo. A internet está repleta de cursos sobre escrita científica. Descobri, por exemplo, que a Universidade Stanford é uma das instituições de renome que oferece curso sobre como escrever artigos científicos. No Brasil, a Universidade de São Paulo também oferece algo parecido. Fiquei sonolento quando acompanhei um dos vídeos. Isso tudo me faz lembrar do péssimo livro de Umberto Eco, intitulado "Como Se Faz Uma Tese". Este texto de Eco pode ser uma ótima referência para aqueles que não têm a menor aptidão para a atividade científica, mas que desejam se tornar sócios do Clube da Ciência, publicando textos desinteressantes que apenas acumulam pó em prateleiras de bibliotecas. É o tipo de público que fica fascinado com as normas da ABNT. Mas o autor nada discute sobre aquilo que realmente interessa: o ato da criação. E nem poderia! 

Preocupar-se sobre como escrever um artigo científico é equivalente à preocupação sobre o que vestir no dia do próprio casamento. É claro que a roupa usada no casamento trata-se de uma demonstração de respeito e seriedade perante a cerimônia. Mas o que realmente importa, no final das contas, ainda é o casamento. Évariste Galois que o diga! Seus artigos eram definidos por afirmações ambíguas, com problemas de pontuação e um estilo irregular. Em um trabalho publicado em 1830 no Annales de Mathématiques, até mesmo o nome de Galois estava escrito errado. No entanto, a obra deste grande cientista francês se consagrou como um monumento incontestável na história da matemática. 

Os inúmeros cursos que existem por aí sobre escrita científica são um mero sintoma de um fenômeno muito grave que assola o planeta: a crise na ciência. 

Temos, hoje em dia, teses repletas de plágios, artigos com erros graves, ideias absurdas defendidas por pesquisadores que escrevem muito bem, periódicos de acesso livre que publicam qualquer coisa que autores escrevam (desde que paguem), insanos movimentos de dissidência científica, filósofos que não filosofam, e pelo menos um Membro da Academia Brasileira de Ciências que defende o Criacionismo. 

Pois bem. Aqui vai o meu "curso" sobre escrita científica. 

A pessoa interessada em publicar artigos científicos precisa de apenas duas aptidões:

1) Saber desenvolver uma ideia científica relevante e inédita.

2) Saber escrever de forma persuasiva.

Como desenvolver ideias científicas relevantes e inéditas? Bem. Se milhares de exemplos históricos, ao longo de séculos de atividade científica sistemática, ainda não deixaram claro o suficiente o processo de criação, eis as três informações-chave: estudo, troca de ideias e busca por soluções. 

Sem conhecer ciência profundamente, não é possível desenvolver ciência inédita e relevante. E, para conhecer ciência, é necessário muito estudo. Livros clássicos e artigos recentes veiculados nos melhores periódicos são um excelente ponto de partida. 

Mas não adianta apenas estudar. É necessário trocar ideias com experientes pesquisadores e cientistas, periodicamente. A experiência dos mais velhos precisa ser confrontada com a ousadia e a criatividade dos mais jovens. "Pensar fora da caixinha" é fundamental. Mas saber ouvir é igualmente importante. 

A busca por soluções é a parte mais difícil. Um problema genuinamente importante e difícil só pode ser resolvido diante de um compromisso ininterrupto com o mesmo. Problemas científicos sérios não são necessariamente resolvidos em horas estipuladas para reflexão. Não basta agendar: "durante este horário do dia eu penso". Cito o famoso exemplo de William Rowan Hamilton. Este célebre cientista irlandês sabia que os números complexos podiam ser compreendidos como pontos em um plano e que as operações algébricas sobre eles eram associadas a operações geométricas. Pensou, então, em estender esses resultados para pontos em um espaço tridimensional. Mas sempre fracassava quando tentava definir multiplicação entre triplas ordenadas. Foi durante um passeio com a esposa, sobre uma ponte de Dublin, que Hamilton vislumbrou a solução para o seu problema: basta considerar quádruplas ordenadas ao invés de triplas. E assim nasceram os quatérnions. Um agradável passeio com a esposa não é o bastante para alienar a mente de um cientista. Ciência é uma atividade extraordinária. Problemas científicos acompanham a mente do pesquisador nos momentos mais inesperados, pelo menos aos olhos daqueles que não são cientistas. 

Agora vamos à aptidão número 2: escrita persuasiva. 

Textos científicos, assim como a maioria dos textos não-ficcionais, devem ser persuasivos. Textos científicos devem convencer seus leitores. Esta é a arte da eloquência, a arte de bem argumentar, a arte da palavra, também conhecida como retórica. E a história da retórica, como bem coloca o físico Anthony Garrett, não é a história da ciência. 

Quem não sabe escrever artigos científicos, também não sabe ser persuasivo. É possível sim aprender as técnicas da retórica. Mas há pessoas muito persuasivas que jamais estudaram retórica. E isso é algo interessante, uma vez que não é possível fazer ciência sem conhecer ciência. 

Nos ensinos fundamental e médio estuda-se português, inglês e filosofia. E há um motivo para isso: para aprendermos a ler, escrever e argumentar. 

Não sabe escrever um artigo científico? Então escreva uma ideia qualquer e procure defender esta ideia da melhor maneira possível! Em seguida mostre o seu texto para outras pessoas e acompanhe as críticas. A internet é uma oportuna ferramenta de exposição de ideias e que jamais esteve à disposição da maioria das grandes mentes da ciência. Algumas críticas serão absurdas. Outras serão inócuas. Mas eventualmente alguém apresentará uma crítica que aponte para os seus erros. Errar dói. Mas é aquela história: errando se aprende.

Quando eu era aluno de ensino médio, submeti um artigo para um periódico científico. O resultado foi um desastre. O artigo foi recusado. Anos depois percebi: "onde eu estava com a cabeça, para escrever uma coisa daquelas?" 

Durante o mestrado escrevi um artigo em parceria com meu orientador, Germano Bruno Afonso. O texto foi aceito e publicado. Era algo pequeno, mas eu estava no caminho. Jamais teria conseguido realizar aquele trabalho, naquela época, sem o senso crítico e a experiência de meu orientador. E é justamente esta a função do orientador: orientar.

Durante meu pós-doutorado em Stanford, aventurei-me com o primeiro artigo solo escrito seriamente. Era um trabalho sobre mecânica de Hertz. Escrevi com extremo cuidado, mostrei versões preliminares para colegas, recebi críticas, apliquei minhas próprias críticas, procurei ser convincente, evitei redundâncias e ambiguidades, procurei demonstrar familiaridade com o tema. Tudo o que eu queria era descrever as ideias de Hertz sobre mecânica em uma linguagem formal axiomática. Isso contrastaria com a usual noção de que forças são indispensáveis em mecânica newtoniana. Consultei pesquisadores experientes a respeito de opções de periódicos adequados para submissão. Apresentei o trabalho em um evento na Itália, para uma plateia de físicos e filósofos de diferentes cantos do mundo. E somente então submeti o artigo. Foi aceito, sem necessidade de fazer modificações. Hoje este trabalho é citado por Max Jammer, em seu clássico livro sobre conceitos de massa em física. 

Patrick Suppes dizia: "Jamais termino de escrever livro algum, artigo algum. Apenas os abandono." Resultado: centenas de publicações científicas e filosóficas que transformaram o século 20.

Conheço minhas limitações. Então, o que faço? Parcerias com profissionais de altíssimo nível e extremamente exigentes. Raramente publico artigos solo. Por quê? Porque assim recebo críticas. Críticas impulsionam resultados melhores, quando sabemos ouvir. Meus trabalhos mais citados são, em sua maioria, artigos feitos em parceria. 

Como se aprende a namorar? Namorando! Como se aprende a escrever? Escrevendo! Como se aprende a pensar? Pensando! 

Se quiserem discursar sobre como discursar, fiquem à vontade. Mas acho que existem coisas mais importantes para se fazer. Casei com a ciência, sem terno e sem sapato italiano. Mas vivo uma relação estável e relativamente afetuosa.



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