A Cultura do Medo
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A Cultura do Medo



Na edição deste mês de Scientific American Brasil foi publicado um artigo sobre a Polyteck. Enquanto eu negociava com Ulisses Capozzoli (editor da revista) sobre minha proposta e redigia o texto, pedi para Laïs Marcelino (pronuncia-se Laís), estudante de artes visuais, fotografar a equipe Polyteck. A sessão de fotos foi feita com dois meses de antecedência, no campus Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná. Uma das fotos foi selecionada e publicada junto com o artigo. 

Pois bem. Neste mesmo mês de abril Lais Marcelino foi vítima de um assalto. E nesta postagem discuto sobre a cultura do medo em nosso país, usando este sádico evento criminoso como gancho para a discussão.

Na madrugada do dia treze deste mês Lais participou de uma festa. Às cinco horas e quarenta minutos da manhã do mesmo dia ela voltava para o apartamento onde vive com os pais, acompanhada de uma amiga. Já em frente ao prédio onde mora, ambas foram abordadas por um homem alto, com cerca de trinta anos. Ele se colocou no caminho das duas e, abrindo a jaqueta, exibiu um objeto preto, alegando que era uma arma. Em seguida, o homem anunciou, falando em tom baixo e com muita calma: "Isso é um assalto."

Lais reagiu e foi fortemente agredida no rosto diversas vezes. Segundo ela, o assaltante demonstrava prazer ao agredi-la. Em seguida um segundo homem surgiu por trás, o qual tentava examinar o que havia na bolsa de Lais. A amiga rapidamente colaborou com os assaltantes, entregando telefone celular e dinheiro. Chegou então um terceiro homem. Os três tinham a mesma faixa etária. Lais e amiga estavam cercadas por três assaltantes, a dez passos de casa.

O porteiro do prédio onde Lais mora estava dormindo na portaria. Do outro lado da rua havia um posto da polícia militar. Mas estava fechado. Segundo uma moradora da região, aquele posto abre somente às nove horas da manhã, por motivos de segurança. 

O primeiro homem era claramente o mais agressivo e sádico. Ele queria que as duas os acompanhassem para longe daquele lugar. Em um dado momento, Lais gritou pelo nome do porteiro. Este acordou e correu na direção delas. Os três assaltantes fugiram, levando dois telefones celulares e quatro reais. 

O porteiro imediatamente telefonou para a polícia militar, a qual apareceu uma hora depois. Isso tudo ocorreu no Batel, um bairro de classe média de Curitiba, muito próximo do centro da cidade. 

Enquanto Lais e amiga aguardavam pela polícia no apartamento, os pais da primeira estavam muito preocupados. O pai queria perseguir os assaltantes. A mãe estava angustiada.

Quando a viatura policial finalmente chegou, os dois policiais militares não desceram do carro. Ficaram apenas esperando, enquanto olhavam para o prédio. O porteiro avisou Lais, por interfone, que havia uma viatura do outro lado da rua. Ela desceu, acompanhada da amiga. 

Apenas Lais prestou depoimento. Ela teve que se agachar ao lado da viatura, pois os policiais se recusavam a sair do carro. O Boletim de Ocorrência foi preenchido em quinze minutos. O evento todo foi descrito em cinco linhas, com uma caligrafia graúda. [Posteriormente Lais soube que uma via do Boletim de Ocorrência ficaria disponível para ela em cinco dias úteis. Cinco dias úteis para emitir um documento de cinco linhas.]


Quando o pai de Lais apareceu, os policiais finalmente desceram da viatura. Neste momento eles foram atenciosos. Segundo Lais, um dos policiais disse algo como "Curitiba está complicada. Sei que vocês são jovens e gostam de se divertir. Mas nunca voltem sozinhas. Peça para os pais buscarem vocês. Há casos de velhinhas que são cegadas, moças que são estupradas, pessoas que são aleijadas." 

A reação imediata da amiga e dos pais de Lais foi simplesmente concordarem com o policial. A mãe chegou a afirmar que a filha nem deveria ter saído de casa. 

A amiga de Lais sentia tanta vergonha que sequer queria conversar com policial algum. Isso porque ela usava um vestido com decote e estava fortemente maquiada. Certamente ela sabia que, nestas condições, sua credibilidade seria afetada. 

Lais não se conformou com essas reações. Afinal, os culpados eram os assaltantes e não elas! 

Posteriormente Lais conseguiu convencer os pais e a amiga de que elas não tinham motivo para vergonha alguma. Mas a reação imediata dessas pessoas, bem como dos policiais, demonstra claramente o absoluto domínio da cultura do medo em nosso país. 

Este é um blog focado em educação, com especial ênfase em matemática. No entanto, como estudar matemática em uma nação na qual as pessoas são reféns do medo? 

Janelas de residências em nosso país são cobertas por grades. Alarmes e cercas eletrificadas fazem parte do cotidiano. Em um país com impostos tão altos, não temos educação, nem saúde, nem justiça e nem segurança. 

É claro que este discurso já foi repetido milhares de vezes em milhares de veículos ao longo de milhares de ocasiões. Mas a cultura brasileira de se submeter ao medo todos os dias certamente alimenta a ineficiência dos serviços públicos.

Se não existe segurança em nossas ruas, isso não é culpa apenas de governos e da polícia. A culpa é também de todos aqueles que se submetem a este sistema. Se não existe educação de elevado padrão, isso é culpa de todos aqueles que não exigem nada melhor. Se não existe saúde pública de qualidade, isso é culpa de todos nós. Se não existe justiça, que façamos a justiça!

Lais reagiu. Sua reação poderia ter-lhe custado a vida. Mas ela reagiu! Ela não aceitou! E admirável é aquele que não se curva diante do medo. O Brasil precisa reagir. O Brasil precisa reagir. O Brasil precisa reagir.

Se o povo brasileiro, como um todo, não reagir de forma drástica contra a cultura do medo, continuaremos a contar com serviços públicos inaceitáveis para qualquer padrão civilizado. Afinal, vale observar que muitas horas depois do assalto a Lais, uma segunda viatura policial chegou à sua residência. Outros dois policiais militares, completamente desinformados, queriam registrar o Boletim de Ocorrência. Tarde demais.



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