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Educação

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Uma pesquisadora como Johanna Döbereiner, tcheca naturalizada brasileira, exerceu forte impacto social em nosso país. Ela identificou uma bactéria que fixa o nitrogênio ao solo, dispensando o emprego de adubos químicos em certas culturas. Essa descoberta e sua aplicação transformaram o Brasil no segundo maior produtor mundial de soja, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Na opinião dela, o maior desafio da humanidade é vencer a fome.


O apelo de Döbereiner certamente deve ser ouvido. Mas temos que tomar cuidado com as possíveis impressões que uma afirmação dessas possa causar. Combater a fome é fundamental, sem dúvida. Mas assim como o avanço da matemática brasileira depende da ação de outros setores, como até mesmo o de ensino de línguas estrangeiras modernas, o combate à fome não pode se restringir a pesquisas e ações promovidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, principalmente se não houver articulação com outros setores da sociedade. 


Não devemos confundir metas bem definidas com métodos bem delimitados. A sociedade brasileira é extremamente complexa, operando como uma rede, ainda que governos se esforcem quase em vão para centralizar as decisões estratégicas. Investimentos sérios na educação apresentam reflexos no problema da fome de nosso povo. Tivemos a sorte de contar com a vinda de Döbereiner ao Brasil, pois isso intensificou e melhorou a produção de soja e de outras culturas. Mas nem sempre a sorte pode sorrir para nós. O trabalho dessa brilhante pesquisadora foi conseguido, em parte, por sua formação como engenheira agrônoma na Universidade de Munique, Alemanha. 


Por isso, me ocorre uma dúvida que considero crucial sobre o perfil social de nossa nação. 


No aniversário de quinhentos anos da descoberta (oficial!) do Brasil, a Editora Abril lançou um volume contendo quinhentas biografias de personalidades que tiveram relevância para a construção do país. Na área de ciências surgem quinze nomes, contra cinquenta em literatura e cento e sessenta e dois em uma seção chamada de história e política. Entre os minguados quinze nomes da ciência temos seis médicos, três físicos, um geneticista, uma agrônoma, um bioquímico, uma arqueóloga, um aviador e um lógico. 


É surpreendente que a maioria dos cientistas da lista seja de médicos, levando em conta o péssimo sistema de saúde pública que temos. Certamente precisamos de mais nomes nessa área. 


É curiosa também a ausência de nomes da matemática brasileira. É claro que há um lógico, mas os matemáticos daqui têm certos preconceitos contra lógica. Ainda assim esse lógico está entre os pesquisadores brasileiros com maior volume de citações em periódicos de matemática. Mas nem sempre o reconhecimento internacional se reflete nas mentalidades daqui. Por isso, dentro dos padrões brasileiros, podemos afirmar que não há um único matemático mencionado na publicação desta que é uma das maiores editoras do país. Digo isso, em parte, para acalmar os matemáticos que não estão listados.


A ausência de nomes da matemática brasileira nessa lista não parece remeter a incompetência na área. Afinal, matemáticos como Leopoldo Nachbin, Maurício Peixoto e Jacob Palis deixaram para trás obras marcantes com grande repercussão internacional. Não foi coincidência a indicação de Jacob Palis para a Presidência da União Internacional de Matemática. Por que então eles não figuram nessa lista? Será que essa ausência se deve a um baixo impacto da matemática na sociedade brasileira? Ou será que isso espelha a pouca importância que nossa sociedade confere à matemática? Essas são questões que merecem uma boa análise para serem respondidas. 


Mas, de qualquer modo, há uma contradição. O Brasil conta com grandes matemáticos no passado e no presente e nossa sociedade simplesmente não sabe disso! Qual é a correlação entre tamanha ignorância e o fato de que temos uma péssima educação matemática? Por que até mesmo professores de matemática desconhecem os nomes de nossos mais ilustres matemáticos? 


Conheci muitos docentes de matemática de ensino fundamental e médio. Raros foram os casos daqueles que já tinham ouvido falar de algum dos nomes citados. Até mesmo entre professores de ensino superior esse incômodo fenômeno acontece. Quando pergunto sobre matemáticos brasileiros, ainda ouço o nome de Oswald de Souza. Essa figura televisiva jamais fez qualquer contribuição relevante em matemática. Como diferenciar comédia de tragédia?


Mesmo Elon Lages Lima, apesar de não ser tão conhecido por contribuições relevantes na pesquisa matemática (mesmo tendo feito algumas), foi uma figura de grande importância na formação de milhares de matemáticos e professores. Seus livros usados em inúmeros cursos de graduação e suas contribuições para a formação e atualização de professores de matemática certamente tiveram um impacto social de peso. Será que educadores deste porte não poderiam estar presentes na histórica lista da Editora Abril? 


Compreendo que a seleção de apenas quinhentos nomes é um limitante considerável. Mas será mesmo que o apresentador de televisão Chacrinha teve uma importância social mais significativa em nosso país do que Elon Lages Lima, Maurício Peixoto, Leopoldo Nachbin ou Jacob Palis? Podemos dizer o mesmo dos jogadores de futebol Zico e Garrincha, também presentes nessa lista?


Que tipo de país é este? Podemos julgar a publicação da Editora Abril por uma falha cultural? Ou será essa lista de quinhentos nomes um inevitável reflexo sobre o quanto valorizamos a ciência e a matemática?


Se uma lista de personalidades famosas de Cuba não incluísse um único nome na área de filosofia, eu compreenderia tal atitude sem problema. Não acho que Cuba tenha produzido algum filósofo relevante. Mas o Brasil produziu ótimos matemáticos! Por que não estão lá?



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